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Isso aí é salmão ou truta salmonada?

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A família dos salmões é uma das mais antigas famílias de peixes e remonta há mais de 100 milhões de anos. Estes peixes são considerados espécies-chaves, ou seja, sobre as quais se apoia toda uma rede de vidas de um ecossistema.

O salmão adulto é apreciado como alimento por focas, tubarões, baleias, lobos, ursos, e claro, por nós, seres humanos.

Trata-se de um peixe extremamente versátil que pode ser consumido das mais variadas formas, seja cru, como é muito comum na culinária japonesa, até grelhado, frito, assado no forno, em forma de bolinhos, com legumes ou molhos, de acordo com as preferências individuais. Além disso, são ricos em ômega 3 e fonte de proteínas e potássio, bem como de vitaminas D, B3, B6, B12, fósforo e magnésio.

salmão do Atlântico e as 5 espécies de salmões do Pacífico (real, sockeye, coho, keta e o rosa) são peixes carnívoros, migradores e nativos das águas frias do Hemisfério Norte.

  1. Salmão do Atlântico (Salmo salar, L.), chamado assim justamente porque enquanto o Pacífico é o lar de várias espécies de salmão, o Atlântico abriga apenas esta única espécie, que muito provavelmente é aquela que você encontra nos supermercados do Brasil. Praticamente todos os salmões do Atlântico disponíveis comercialmente são cultivados. Possui peso médio de 4 – 5,5 kg;
  2. Salmão chinook (Oncorhynchus tschawytscha), também conhecido como “salmão real”, considerado por muitos como o que possui o melhor sabor, porém, é o mais raro do Alasca. Eles têm um teor de gordura alto e carne que varia de branco para uma cor vermelha profunda. Possui um peso médio de 8 – 9 kg;
  3. Salmão sockeye (Oncorhynchus nerka) é conhecido como “salmão vermelho” pela sua carne vermelha-laranja brilhante e sabor rico e profundo, sendo a segunda espécie de salmão mais abundante no Alasca. Possui um peso médio de 2 a 4 Kg;
  4. Salmão coho (Oncorhynchus kisutch) às vezes é chamado de “salmão prateado” ou simplesmente “prateado” devido à cor de sua pele. O seu tamanho médio, a boa cor vermelho brilhante da sua carne e sua textura extremamente delicada lhe garantem a preferência entre os chefs de cozinha. Possui um peso médio de 4 a 5 kg;
  5. Salmão keta (Oncorhynchus keta) às vezes é chamado de “salmão cão”, devido aos dentes da frente dos machos serem maiores do que nos outros salmões. O salmão keta produz o melhor e mais apreciado caviar de salmão do mercado (ikura em japonês). Possui peso médio de 3 a 6 kg;
  6. Salmão rosa (Oncorhynchus gorbusha) é o de menor tamanho, mas constitui o estoque natural mais abundante. Eles são às vezes chamados de “humpies“, “corcunda” ou “salmão jubarte” por causa da corcova distinta que os machos desenvolvem nas costas quando vão desovar. Possuindo uma carne de cor muito clara e um menor teor de gordura, são muitas vezes enlatados, mas também vendidos frescos, congelados e defumados. Possui um peso médio de 1,5 a 2,0 kg.

Cerca de 99% do salmão do Atlântico comercializado mundialmente é produzido em cativeiro, enquanto cerca de 80% dos salmões do Pacífico são normalmente pescados em estado selvagem.

Na natureza, os salmões, seja qual espécie for, têm uma vida que é uma verdadeira epopeia, seguindo a programação de seus genes que garantem a sobrevivência da espécie. Nascem nas águas doces dos rios, depois vão viver nas águas salgadas dos mares e, anos depois, voltam exatamente para o mesmo rio, às vezes a apenas alguns metros de onde nasceram, para pôr ovos de cor âmbar, brilhantes e translúcidos e, enfim, morrer, numa missão que inclui nadar até 1500 km, subindo no sentido contrário ao das correntes dos rios, enfrentando obstáculos, a gravidade em elevações de até 2 mil metros, e para completar, lobos, ursos e pescadores no caminho querendo comê-los.

O salmão tem a capacidade de nadar contra a corrente com uma velocidade média de 6,5 km/ h, além disso, são capazes de saltar até aproximadamente 3,7 m de altura, permitindo-lhes superar os obstáculos em seu caminho.

Como não é um peixe propício para a salga, como é o caso do bacalhau, seu transporte deve ser bem refrigerado para garantir sua preservação, requerendo cadeia de frio, elevando as dificuldades logísticas, e consequentemente, os custos operacionais, o que torna o preço do pescado natural praticamente inviável para ser trazido de seus habitats naturais para o hemisfério sul, fora que estes habitats sozinhos não produzem o que é requerido pela demanda internacional de consumo atual.

Por esse motivo, praticamente 100% do salmão consumido no Brasil é criado em cativeiro, em condições adaptadas que buscam recriar os estágios de vida do peixe em seu ambiente natural, portanto, certamente, não é este disputado com os ursos, lobos e focas, mas de uma criação provavelmente no Chile.

Sobre bacalhau, leia: Aprenda a escolher um bacalhau de qualidade

PRODUÇÃO EM CATIVEIRO DE SALMÃO

A Noruega foi o país pioneiro que inventou na década 60 a produção em cativeiro do Salmo salar, o nome científico do salmão do Atlântico, que atualmente representa a segunda maior indústria do país, atrás apenas do petróleo.

Como se vê, não existem salmões nativos na América do Sul, porém, nos anos 80 foram introduzidos no Chile, justamente por conta das similaridades geográficas com a Noruega.

Nos dias atuais, o Chile produz 900 mil toneladas por ano na Patagônia — dos 2,3 milhões de toneladas da produção mundial —, tornando-se o 2° maior produtor de salmão de cativeiro do mundo, atrás apenas do país escandinavo.

As exportações de salmão do Chile somaram mais de US$ 4 bilhões em 2020 representando 6% das exportações totais e só perdendo para o cobre. Para comparação, os vinhos chilenos responderam por US$ 1,5 bilhão.

Chile e Noruega são responsáveis por mais de 70% do salmão consumido no mundo.

Atualmente, o Brasil é o terceiro maior importador de salmão chileno, atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão.

A COLORAÇÃO DO SALMÃO

O salmão quando nasce, diferentemente do que muitos pensam, naturalmente não possui a cor salmão (laranja-rosada), ele tem uma carne de cor branca: o que o deixa com aquela coloração característica é a bioacumulação do pigmento natural astaxantina, produzido por diversas microalgas.

Na cadeia alimentar do salmão, essas microalgas servem de alimento para crustáceos como pequenos camarões e lagostins (motivo pelo qual esses animais também possuem a coloração alaranjada) que, por sua vez, são comidos pelos salmões.

Como a dieta do salmão selvagem é muito variada, pode existir uma enorme variedade de cores, desde totalmente branco ou um cor-de-rosa suave até um vermelho vivo, dependendo da espécie, habitat e hábitos alimentares.

Muitos peixes armazenam a astaxantina na pele e nos ovários, mas só os salmões a armazenam também nos músculos. Dessa forma, o peixe acumula o pigmento em sua carne, adquirindo a tonalidade que foi batizada segundo seu nome e que lhe é tão característica.

A astaxantina também influencia o cheiro e o sabor da carne do salmão, que, apesar de gordurosa, não tem o mesmo sabor forte que peixes como arenques e cavalas, igualmente gordos, possuem.

No cativeiro ele não se alimenta de pequenos camarões e lagostins, mas de ração. Então, para que mantenham a cor que os caracteriza no ambiente natural, os peixes são alimentados com uma ração contendo astaxantina ou cantaxantina (um pigmento semelhante), que pode ser tanto de fonte natural, extraído de algas, quanto sintético.

Porém, para a produção em larga escala de salmões, é mais comum a utilização do aditivo sintético, mais barato, que é produzido a partir de derivados de petróleo.

No entanto, em tese, não há nenhum problema de food safety nisso, lembrando que vários outros produtos também têm substâncias oriundas do combustível fóssil, incluindo cosméticos (principalmente maquiagem), medicamentos (aspirina e pomadas), base para gomas de mascar (pode ter ou não), etc.

RISCO DE FRAUDE NO SALMÃO

No mercado consumidor de salmão de cativeiro, como explicado, “colorido artificialmente”, nos deparamos com um concorrente: a truta salmonada (Oncorhynchus clarkii clarkii),  um peixe eurialino do gênero Oncorhynchus, sendo uma subespécie da truta e membro da família  dos salmonídeos.

O salmão e a truta são peixes bastante semelhantes (ambos da família Salmonidae), porém a última  adaptou-se melhor às águas doces de regiões montanhosas do Brasil. Ambos os peixes são muito ricos em proteínas e outros nutrientes, tais como ômega 3 e vitamina B12.

Em geral, as trutas não se alimentam de crustáceos, apresentando, naturalmente, carne de coloração branca, porém, existem produtores que incluem astaxantina em suas rações, fazendo com que o peixe também desenvolva uma tonalidade salmão, daí o nome truta salmonada.

Até aí não há nenhuma irregularidade. O problema ocorre quando alguns estabelecimentos vendem aos seus consumidores truta salmonada como se fosse salmão, já que aquela é mais barata, e neste caso, temos uma fraude econômica.

Esta fraude não é muito fácil de se perceber pelos consumidores, principalmente quando o peixe é consumido pronto ou na forma de sushis/sashimis.

Sobre fraudes em alimentos, leia também:

DIFERENÇAS BÁSICAS ENTRE O SALMÃO E A TRUTA SALMONADA

Todas as diferenças entre salmão e truta salmonada são muito sutis. Assim, a menos que seja um grande especialista, dificilmente um consumidor detectará num prato pronto se o peixe servido é um salmão ou uma truta salmonada. Por isso, tão importante frequentar estabelecimentos honestos que garantem a rastreabilidade de suas matérias-primas, insumos e ingredientes.

Porém, seguem algumas dicas das diferenças mais marcantes entre salmões e trutas salmonadas que podem ajudar:

  1. Pintas na pele – A truta salmonada possui algumas pintas avermelhadas, mas ao contrário do salmão, é uma diferença que só é possível identificar se os peixes forem servidos com a pele;
  2. Fibras – A truta salmonada possui fibras mais firmes, diferente do salmão, que possui fibras bem suaves;
  3. Sabor – Tanto o sabor da truta quanto o do salmão são marcantes, não precisando de muito tempero, porém, normalmente, o salmão é um pouco mais intenso;
  4. Formato do peixe – A truta tem uma forma mais arredondada do que o salmão, o que, em termos de aproveitamento do peixe, faz dele um peixe mais versátil, de onde se conseguem os melhores filetes;
  5. Espinhas – A truta tem menos espinhas do que o salmão e são mais fáceis de remover.

DICAS NA HORA DA COMPRA DO SALMÃO

No final, ao comprar um salmão, é extremamente importante que ele esteja seguro, ou seja, livre de contaminantes ou iniciando processos de deterioração. Seguem algumas dicas úteis para sua compra:

  1. Para que realmente seja salmão e não uma truta salmonada, prefira estabelecimentos sérios, honestos e que mantenham a rastreabilidade daquilo que comercializam;
  2. O peixe deve estar fresco, mantido sob refrigeração ou sobre uma espessa camada de gelo;
  3. Dê preferência àqueles que estão por baixo, evitando escolher o peixe que está por cima dos outros, pois ele não está em contato com o gelo;
  4. O peixe não pode apresentar manchas, nem conter furos e cortes em sua superfície.
  5. As escamas têm que estar firmes e resistentes e de coloração translúcida e brilhante;
  6. A pele tem que estar úmida e bem aderida;
  7. O corpo do peixe deve estar firme e resistente;
  8. O peixe deve exalar um cheiro de mar e a cor deve estar viva, de acordo com a espécie escolhida;
  9. Os olhos não podem apresentar pontos esbranquiçados no centro, devem estar brilhantes e ocupar toda a cavidade ocular;
  10. A parte interna das brânquias deve estar brilhante e vermelha, apresentando vasos sanguíneos cheios e fixos e não apresentar mucos como um líquido pastoso.
  11. No salmão em postas é importante observar se a carne está com a cor homogênea entre rosa e laranja, textura firme e com um fresco aroma de mar;
  12. No salmão defumado, no qual o peixe é submetido a um procedimento de conservação, defumado em lenha e essências aromáticas, o ideal é que a defumação seja recente. A parte central é a de maior qualidade, enquanto as postas próximas ao rabo são mais secas e salgadas. O salmão defumado deve ser mantido sempre refrigerado.

RISCO DE PARASITAS (ANISAQUÍASE)

A anisaquíase é uma parasitose intestinal provocada por vermes nemátodes da família Anisakinae, nomeadamente Anisakis simplexAnisakis physeteris e Pseudoterranova decipiens, que habitualmente são  adquiridos após a ingestão de frutos-do-mar ou peixes crus.

Felizmente, a anisaquíase ainda é uma doença rara, mas que, devido à crescente popularização dos pratos à base de peixes crus ou mal cozidos, tais como sushis, carpaccios de salmão, salmão defumado ou ceviches, tende a se tornar cada vez mais descrita.

No Japão, país com maior incidência dessa verminose, a taxa anual de infecção é de 3 casos novos para cada 1 milhão de habitantes, o que significa, aproximadamente, 400 novos casos por ano.

Nos países ocidentais, a incidência da anisaquíase é praticamente desconhecida. No Brasil, por exemplo, não há casos registrados de anisaquíase, entretanto, o verme já foi encontrado pela vigilância sanitária em diversos tipos de peixes, tais como anchova, bacalhau, cavala, dourado, peixe-espada e vieiras, por isso, não se pode descartar a hipótese de que as pessoas estejam sendo infectadas, mas o diagnóstico não esteja sendo feito.

O risco de anisaquíase existe, mas a probabilidade ainda é baixa no Brasil.

As melhores medidas preventivas são a cozedura do peixe a uma temperatura no mínimo de 70°C, ou congelamento a -20ºC por um período mínimo de 72 horas, ou a -35°C por no mínimo 24 horas, lembrando que o processo de defumação não elimina o parasita.

POR FIM…

O salmão é um peixe nutricionalmente muito rico e organolepticamente gostoso, por isso, tão apreciado na culinária.

O peixe de cativeiro, como mais comumente encontramos no Brasil, se criado seguindo boas práticas de manejo na aquicultura, é um excelente alimento, nutritivo e seguro.

A truta também é um ótimo peixe, só é fraude se for comercializada como sendo salmão.

Escolha bem o seu salmão para que esteja dentro das condições de frescor e tome cuidado para não levar truta salmonada em seu lugar, a menos, é claro, que deseja comer truta e não salmão.

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Aprenda a escolher um bacalhau de verdade

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Para surpresa de alguns, não existe uma espécie de peixe chamada bacalhau, pois damos este nome a alguns peixes pertencente à família Gadidae, que passam por um processo de desidratação por salga e secura.

O que o título deste artigo chama de “qualidade” é que o bacalhau, de fato, seja um tipo de peixe que possa ter esta denominação, sem fraudes, e em segundo lugar, que esteja livre de contaminantes ou deterioração, portanto, seja seguro.

De forma geral, os peixes que processados dão origem ao bacalhau possuem alto teor proteico e baixo valor calórico. Uma porção de bacalhau cru com cerca de 100 g possui em média 140 calorias, 25 g de proteína e gordura total inferior a 4 g, sendo considerado um peixe magro. Também fornece ômega 3 e as vitaminas A, D, E, B2, B6 e B12, além de manganês, magnésio, fósforo, cálcio, potássio e sódio.

O bacalhau pode compor pratos e ser servido nas mais diversas formas, seja em postas, pedaços, desfiado, em bolinhos, em caldos, tortas e em saladas, podendo ser cozido, grelhado, e de preferência, regado com um bom azeite e acompanhado de uma boa taça de vinho.

Sobre vinho e azeite, leia também:

Este artigo trata justamente desta iguaria, tão apreciada na culinária internacional, chamado de stockfish para os anglo-saxônicos, baccalà para os italianos, bacalao para os espanhóis, morue para os franceses, codfish para os ingleses, bakaliáros para os gregos, bakalar para os croatas, kabeljauw para os holandeses, tørfisk ou klippfisk para os escandinavos, saltfiskur para os islandeses, e claro, bacalhau para os povos de língua portuguesa, incluindo nós, brasileiros.

Os portugueses elevaram o preparo do bacalhau ao estado da arte, com diversas receitas desenvolvidas como à Gomes de Sá, com natas, à Brás, à lagareiro, ao Zé do Pipo e muitas outras,  e eles criaram a sua própria definição, “bacalhau não é peixe nem carne, bacalhau é bacalhau“.

Do ponto de vista técnico, o que chamamos de bacalhau é um peixe salgado e seco, elaborado com peixe limpo, eviscerado, com ou sem cabeça e convenientemente tratado pelo sal, contendo não mais do que 40% de umidade.

Por ter sido desidratado, concentra propriedades nutricionais, e devido a este fato, em média, 1 kg de bacalhau pode equivaler a 3 kg de peixe fresco.

Dentro destas características, existem 6 tipos diferentes de peixes salgados e secos no mercado brasileiro:

  1. Gadus morhua, habita o Atlântico Norte, conhecido popularmente como bacalhau do Porto, tem postas altas e claras e se desfaz em lascas tenras quando cozido, sendo perfeito para a culinária;
  2. Gadus macrocephalus, muito parecido com o primo do Atlântico Norte, porém habita o Pacífico Sul. Sua carne é ainda mais branca, porém não se desmancha em lascas tão uniformes;
  3. Gadus ogac, conhecido como bacalhau da Groelândia. Esta espécie não é comumente importada pelo Brasil;
  4. Ophiodon elongatus, conhecido como Ling, possui uma carne clara, tem uma espessura mais estreita e mais rígida e firme;
  5. Pollachius virens, conhecido com o Saithe, tem a carne mais escura ou mais amarelada, com sabor mais forte e desfia facilmente depois de cozido, sendo uma opção recomendada para bolinhos e recheio de tortas;
  6. Brosmius brosme, chamado de Zarbo, é um peixe pequeno e claro, com postas pequenas e com menos intensidade de sabor, de carne mais fibrosa, também uma opção para bolinhos e recheio de tortas.

Os três primeiros peixes são produtos de maior valor agregado devido a sua aparência e sabor, reconhecidos como verdadeiros bacalhaus, e os três últimos são espécies que possuem menor valor comercial e não podem ser chamados de bacalhau, mas de “peixe tipo bacalhau”. Por isso, é comum serem alvos de fraude econômica nos pontos de venda quando se tenta vender uns pelos outros.

Mas isso não significa que Ling, Saithe ou Zarbo não sejam bons peixes para o consumo, pois nutricionalmente são, podendo ser apropriados a muitas receitas como bolinhos, recheio de tortas e caldos, mas não são boas opções culinárias quando se requer postas que soltem lascas firmes, que são, geralmente, as características mais apreciadas nos verdadeiros bacalhaus.

CLASSIFICAÇÕES DE QUALIDADE E FORMAS DE COMERCIALIZAÇÃO

Os bacalhaus podem ainda ser classificados em 3 categorias comerciais quanto a sua qualidade percebida:

  1. Imperial, que é a melhor classificação e significa que o peixe está bem cortado, escovado e curado. O Porto Imperial é exemplo do melhor dos melhores bacalhaus;
  2. Universal, uma classificação que identifica o bacalhau que apresenta pequenos defeitos, muitas vezes decorrentes da captura ou pesca, em função das redes e anzóis, mas que não chegam a comprometer sua qualidade, visto que o sabor é o mesmo do Imperial;
  3. Popular, que apresenta manchas e falta de pequenos pedaços extirpados pelo arpão, redes ou anzóis, mas obviamente, assim como os outros, isento de problemas de food safety.

Este tipo de pescado pode chegar aos mercados consumidores em quatro condições que requerem diferentes técnicas de processamento:

  1. Fresco, distribuído especialmente para a Europa, primeiramente para a Noruega, Dinamarca, Suécia e Holanda, países que estão próximos das áreas de produção. O mais apreciado é o chamado Skrei, Gadus Morhua já adulto, pescado em Lofoten após migrarem do Ártico para o Mar da Noruega para procriarem;
  2. Seco sem salga, considerado o produto mais nobre, produzido no arquipélago de Lofoten, seguindo a tradição herdada dos vikings: seco ao vento frio do Ártico por três meses,  não tem seu corpo aberto e nem recebe sal, tal como o conhecemos no Brasil;
  3. Salgado sem cura, também chamado de bacalhau verde. Neste caso, no máximo 2 h depois de pescado, o peixe deve ser descarregado nas fábricas situadas nos cais dos portos para degola e limpeza das tripas, para só então, já sem cabeça e vísceras, ser lavado e espalmado, tendo retirado dois terços da espinha central, depois empilhado em grandes fardos com sal em camadas onde permanece ao menos por 8 dias, ao fim dos quais fica com aproximadamente 16% de sal e entre 51 – 58% de umidade. Nesta condição é exportado, sobretudo para Portugal, onde é submetido ao processo final de secagem;
  4. Salgado e seco, como conhecemos mais popularmente no Brasil. A salga é uma das mais antigas técnicas de conservação de alimentos, cujo método se baseia na utilização do cloreto de sódio (NaCl) que possui uma dupla ação: desidratar por diferença de pressão osmótica entre o meio externo e interno, e penetrar na carne, baixando a atividade da água.

UM POUQUINHO DE HISTÓRIA

A história do bacalhau é milenar, os registros mais antigos falam de sua manufatura na Escandinávia ainda no Século IX, especialmente onde atualmente fica a Islândia e a Noruega,  pelos povos que conhecemos como vikings, considerados os pioneiros na pesca do Gadus morhua, espécie farta nos mares por onde navegavam.

O clima seco e frio favorecia seu processamento, por isso apenas secavam o peixe ao ar livre, até que perdesse quase a quinta parte de seu peso e endurecesse como uma tábua, para ser conservado e depois consumido aos pedaços nos longos e rigorosos invernos da região e nas viagens que faziam pelos oceanos.

A cidade de Kristiansund, na Noruega, tornou-se um lugar importante de compra de bacalhau, lá chamado de klippfisk, peixe precipício, pois era seco nos penhascos de pedra dos fiordes.

Os bascos, povo que habitava as duas vertentes dos Pirineus Ocidentais, utilizavam outra técnica para a conservação, a salga, realizando o comércio deste peixe curado, salgado e seco, o que também apurava o sabor.

Foi, portanto, na costa norte da atual Espanha e fronteira com a França, que o bacalhau começou a ser salgado e depois seco nas rochas, ao ar livre, para que fosse melhor conservado e facilitasse seu transporte e comércio.

Devemos aos bascos,  como se vê, o comércio do bacalhau, fazendo com que o produto ganhasse notoriedade e se difundisse por novas fronteiras, em especial na Península Ibérica, chegando aos reinos que compunham a Espanha, Galícia e Portugal.

Justamente por estar seco e salgado, o que aumenta a shelf life, o bacalhau foi uma revolução na alimentação, afinal, na época os alimentos perecíveis como os peixes estragavam facilmente pela precária conservação e tinham sua comercialização limitada, lembrando que a geladeira só surgiu no século XX.

Assim, o bacalhau se tornou um protagonista essencial para as grandes navegações. Por volta do século XV, os portugueses “descobriram” este produto, que se tornou a solução para oferecer às tripulações das naus e caravelas uma alimentação mais saudável durante as longas viagens marítimas.

O bacalhau durante as navegações tornou-se tão presente que passou até a ser chamado pelos portugueses de “fiel amigo”.

A cidade do Porto foi a primeira a receber e preparar o bacalhau que os pescadores buscavam nas águas geladas da Terra Nova, Islândia e Groenlândia, por isso, ainda hoje, a cidade de Porto é a capital culinária do bacalhau.

Rapidamente, o consumo do bacalhau se espalhou também entre a população de Portugal, tornando o país um dos maiores consumidores do tradicional pescado, por isso, o país também foi o primeiro importador do bacalhau da Noruega.

Os portugueses comem cerca de 70.000 toneladas de bacalhau por ano, num país com 10 milhões de habitantes, o que resulta, em termos médios, que cada português come 7 kg de bacalhau por ano.

Em Portugal, diz-se, há mais de 365 maneiras de cozinhar bacalhau, uma para cada dia do ano.

Os portugueses levaram o hábito culinário de comer bacalhau para suas colônias em diversos continentes, assim ele chegou  ao Cabo Verde e Angola na África, Macau na Ásia, e claro, aqui no Brasil na América do Sul, onde é muito requisitado, mas sua demanda cresce especialmente na quaresma, um período entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Domingo da Páscoa, devido a uma tradição na qual os católicos renunciam ao consumo de carne vermelha em respeito à crucificação de Jesus Cristo.

Convenhamos que deixar de comer carne vermelha para apreciar um bom bacalhauzinho não é assim um sacrifício, não é mesmo?

Provavelmente, por tradição cultural, no Brasil o nome “Porto” passou a identificar o bacalhau de melhor qualidade, ou seja, aquele proveniente da cidade do Porto que era comercializado nos portos das capitais do Rio de Janeiro e Salvador.

Atualmente, só em Portugal, o bacalhau movimenta 420 milhões de euros por ano (mais de um bilhão e 900 milhões de reais), mas a indústria portuguesa também alimenta o mercado internacional. Para se ter uma ideia, cerca de 25% de toda a produção portuguesa de bacalhau é exportada, e destes, mais de um terço são para o Brasil.

O bacalhau corresponde a cerca de 10% da indústria de pescados do mundo.

Atualmente, para garantir uma pesca sustentável, na qual se pesque a cada ano mantendo matrizes para que se reproduzam para o próximo período de pesca, vários países assinam tratados internacionais de controle da pesca, com o objetivo de assegurar a reprodução e a preservação do “Príncipe dos Mares”.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS BACALHAUS

Como se viu até aqui, nem todo peixe seco e salgado é um bacalhau de fato, pois para ser considerado bacalhau, o peixe deve pertencer a uma dessas três espécies: Gadus morhua (bacalhau do Porto ou Cod),  Gadus macrocephalus (bacalhau do Pacífico) ou Gadus ogac (Babalhau da Groelândia).

As fraudes mais comuns ocorrem quando outros peixes são rotulados e/ ou vendidos como bacalhau sem de fato serem, o que pode ocorrer especialmente com  o Ophiodon elongatus (Ling), Pollachius virens (Saithe) e Brosmius brosme (Zarbo).

Mas como saber qual espécie o consumidor está adquirindo? A tabela a seguir pode ajudar a identificar as principais diferenças entre cada uma destas espécies:

Peixe Gadus morhua Gadus macrocephalus Gadus ogac Ophiodon elongatus Pollachius virens Brosmius brosme
Nome popular Bacalhau do Porto Bacalhau do Pacífico Sul Bacalhau da Groelândia Ling Saithe Zarbo
Características do produto salgado Largo e com postas altas, coloração palha uniforme, pele se solta com facilidade. Largo e com postas altas, coloração bem clara, pele se solta com facilidade. Largo e com postas altas, coloração clara, pele se solta com facilidade. Produto claro, estreito e alongado. Produto de coloração mais escura, tom amarelado e até acinzentado e um pouco fibroso. Pequeno e alongado, considerado o menos característico a bacalhau.
Sabor Muito saboroso. Muito saboroso. Muito saboroso. Sabor suave. Sabor mais forte. Menos sabor.
Características após cozido Quando cozido se desfaz em lascas bem-feitas. Se desfaz em lascas, mas não tão bem quando o Gadus mohua. Se desfaz em lascas, mas não tão bem quando o Gadus mohua. Permite um bom corte, produto firme, porém, lascas pequenas. Quando cozido, desfia e é mais fibroso, forma lascas que se desmancham. Quando cozido, desfia ou forma lascas mais duras e fibrosas.

De fato, se você não é um especialista, será difícil identificar visualmente, porém, a Instrução Normativa Nº 1 de 15 de Janeiro de 2019, determina que os fabricantes informem na rotulagem os nomes científicos das espécies das famílias dos peixes utilizados para produtos salgados.

É importante comprar um bacalhau devidamente embalado e rotulado, com sua respectiva rastreabilidade, pois assim se poderá efetivamente saber que peixe está comprando.

CUIDADOS QUANTO À SEGURANÇA DOS ALIMENTOS

Quanto a questões associadas a food safety, independentemente se o peixe comprado é um bacalhau ou um peixe tipo bacalhau, esteja atento a estas características:

  1. Ausência de coágulos e manchas de sangue ou de fígado afetado;
  2. Ossos claviculares expostos, com rasgo do músculo;
  3. Excesso de sal aderente ao peixe;
  4. Deficiência de salga;
  5. Muco na face dorsal, em consequência de o peixe não ter sido devidamente lavado antes da secagem;
  6. Pegajoso na face dorsal, com desorganização da textura, resultante do excesso de calor;
  7. Manchas avermelhadas, devido à alteração provocada pela existência de bactérias halofílicas;
  8. Bolor de qualquer cor;
  9. Manchas amarelo-alaranjadas, devido à alteração provocada pela existência de colônias de fungos halofílicos;
  10. Coloração anormal, devido à existência de manchas de cor não característica ou coloração, em todo o peixe, que não seja própria do processo tecnológico de fabricação;
  11. Odor nitidamente desagradável, indicativo de decomposição ou não característico da espécie ou do tipo de tratamento a que o peixe foi submetido;
  12. Aspecto cozido, em decorrência da alteração na textura do peixe resultante da decomposição do tecido adiposo, devido à ação enzimática, resultante da armazenagem deficiente em temperatura e/ ou arejamento.

Cuidado ao servir crianças e idosos, pois mesmo que tenham declarado no rótulo a ausência de espinhas, o bacalhau pode apresentar eventuais espinhas, pois a regra fala da ausência de mais de uma espinha por kg de produto com dimensão maior ou igual a 10 mm em comprimento ou maior ou igual a 1 mm em diâmetro.

Outro ponto importante é o cuidado também com o armazenamento, pois o peixe salgado seco deve ser armazenado e transportado sob temperatura máxima de 7° C, justamente para manter sua qualidade e evitar eventuais crescimentos microbiológicos.

POR FIM…

A conclusão é que vender como bacalhau aquilo que decididamente não é bacalhau configura fraude, um crime contra as relações de consumo, pois o consumidor é levado a acreditar que está adquirindo um peixe de maior valor comercial e está levando outro inferior.

Analogamente e obviamente, um bolinho feito com peixe tipo bacalhau não é um bolinho de bacalhau, mas de peixe tipo bacalhau.

Por isso, para não cair na fraude, é importante que o consumidor leia as embalagens, conheça as principais espécies de peixes sagados e secos comercializados no Brasil e entenda as diferenças entre eles para que não seja enganado e leve par casa gato por lebre, ou melhor, não leve “tipo bacalhau” por bacalhau”.

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Dicas para prevenir a compra de azeite de oliva fraudado

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O azeite de oliva é obtido pela prensagem das azeitonas, os frutos da oliveira, Olea europaea. As olivas contém até 25% de óleo, sem colesterol, como todo óleo vegetal, rico em ácidos graxos insaturados que são benéficos para incrementar os níveis de HDL (Lipoproteínas de alta densidade), o chamado “bom colesterol”. Também  são uma boa fonte de ácidos graxos essenciais que nosso organismo não sintetiza, contêm antioxidantes naturais como tocoferóis (vitamina E) e polifenóis que se mostram efetivos contras os processos biológicos oxidativos, e claro, possuem substâncias aromáticas que tornam o azeite de oliva sensorialmente especial e único.

O azeite representa em torno de 3% do consumo humano de óleos vegetais e seu valor econômico representa cerca de 15% do comércio mundial de oleaginosas, o que indica ser um produto de alto valor agregado.

O azeite de oliva é muito apreciado na gastronomia internacional, possuindo, dependendo de seu terroir, atributos sensoriais que conferem e combinam notas de tom frutado, amargo e/ ou picante, sendo indispensável em pratos mediterrâneos, indo muito bem com frutos do mar, bacalhau e molhos acompanhando massas.

É possível encontrar azeites de oliva com uma gama de cores que vai do amarelo claro ao dourado profundo e ao verde. Quanto mais clorofila estiver presente no óleo, mais verde será o produto e estes tendem a ter mais antioxidantes e um sabor apimentado mais intenso, com um leve toque de amargor.

O consumo atual per capita de azeite de oliva pelos brasileiros ainda é muito baixo, inferior a 0,5 litro por ano, o que demonstra seu potencial de crescimento no mercado nacional, considerando especialmente o grande interesse pelo produto extravirgem. Já os países que mais o consomem são a Grécia com 22 litros per capita por ano e a Itália com 12 litros.

As oliveiras precisam de sol, terreno inclinado e pedregoso, além de 200 horas de temperatura abaixo de 10°C por ano. O custo para implantação dos pomares gira entre R$ 20 mil e R$ 25 mil por hectare, considerando que os principais gastos são com as mudas e a correção do solo.

Uma oliveira começa a produzir apenas depois de três anos e meio e pode viver por milênios, porém, sua produtividade máxima é atingida a partir dos 8 até os 50 anos de idade, e em média, produz cerca de 10 a 40 quilos de azeitonas por ano, o que após processo equivale a cerca de 2 a 8 litros de azeite.

Os investimentos necessários e a baixa produtividade fazem com que os custos de produção do azeite de oliva em média sejam maiores do que o de outros óleos vegetais, como por exemplo, derivados de soja, canola, girassol ou milho. Por isso, logicamente, o azeite de oliva é um produto mais caro que os demais.

UM POUQUINHO DE HISTÓRIA

Acredita-se que o cultivo de oliveiras é um dos mais antigos da história, tendo início ainda no final do período Neolítico entre 5000 – 3500 a.C., mas a primeira evidência histórica com menção ao azeite de oliva está no Código de Hamurabi, o conjunto de leis regidas na Mesopotâmia, datado de 2.500 a.C., área localizada entre os rios Eufrates e Tigre, onde hoje fica o Iraque. Depois, via trocas comerciais, o produto foi levado para as países do Mediterrâneo que passaram a produzi-lo e se tornaram uma referência.

A cidade grega de Atenas deve o seu nome à deusa que a protegia, mas também das oliveiras. Segundo os registros, os atenienses a escolheram após uma espécie de competição entre os deuses para conquistar sua simpatia, na qual Atenas ofereceu-lhes uma oliveira que poderia gerar lenha, fogo para iluminar e alimento, então, depois deste presente magnífico, os cidadãos a elegeram para representá-los.

Também foi em Atenas que surgiu a tradição de presentear atletas vencedores com coroas de oliveiras, sendo que os ramos eram recolhidos com facas de ouro e este era o prêmio máximo concedido aos ganhadores, fazendo o papel das atuais medalhas.

O Império Romano, que durou de 27 a.C. até 476 d.C, ocupando mais de 5 milhões de quilômetros quadrados e abarcando 70% da população mundial em sua época, difundiu o consumo do azeite e da azeitona.

A Bíblia traz mais de 300 referências sobre azeite e oliveiras, como o ramo carregado pela pomba até Noé para demonstrar que havia terra seca para o desembarque de sua família e dos animais era de uma oliveira, assim como a árvore que cresceu no túmulo de Adão.

Enfim, a cultura das oliveiras faz parte da história humana desde a antiguidade até os dias atuais. Na missão da Apollo 11, que ocorreu em 1969, quando o astronauta Neil Armstrong fez o seu breve passeio pelo solo Lunar, lá deixou um ramo de oliveira, por ser considerado um símbolo mundial de paz.

CULTIVO NO BRASIL

Atualmente, segundo o Conselho Oleícola Internacional (International Olive Council, ou IOC) são produzidos um total de 3,2 milhões de toneladas de azeite de oliva por ano, com a Espanha respondendo por 40% desta produção, seguida pela Itália com 22% e a Grécia com 14%, mas ao todo, cerca de 59 paíse produzem azeite de oliva como pode ser visto neste link.

No Brasil, o azeite de oliva chegou junto com os portugueses, uma vez que faz parte da cultura gastronômica daquele povo. Já as oliveiras foram trazidas ainda durante o século XVI também pelos portugueses e o produto obtido era utilizado inicialmente como combustível para as lamparinas. No entanto, tinha uma qualidade tão boa quanto o português, e por isso, a Coroa Portuguesa proibiu a produção brasileira, além de ordenar a destruição dos olivais, pois prejudicaria as exportações para esta colônia.

Muito provavelmente devido a este fator, mais o desinteresse por investir nesta cultura que tem retorno financeiro entre 7 e 10 anos, criou-se um paradigma que o clima brasileiro não era apropriado para o cultivo da planta, mas hoje já se sabe que isto não é verdade. Este cenário vem mudando gradativamente, pomares de oliveiras vêm sendo plantados no Brasil desde 1950 e a produção começou a engrenar nas últimas décadas.

Apesar de marcas nacionais estarem surgindo, a produção de azeite de oliva no Brasil ainda engatinha, somos um gigante na exportação de gêneros agrícolas, porém, em azeite de oliva dependemos das importações, ocupando a posição de segundo maior importador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Dados do Conselho Oleícola Internacional mostram que em 2020 o Brasil importou 104 mil toneladas de azeite de oliva e bagaço de oliva, 20% a mais que no ano anterior, o que representa quase a totalidade do consumo nacional, mas o pouco que já produzimos tem alta qualidade e vem ganhando reconhecimento e premiações.

Um azeite produzido no Rio Grande do Sul venceu a categoria de melhor azeite do hemisfério Sul no prêmio EVO IOOC Italy 2022.

O volume produzido no Brasil diretamente a partir das oliveiras, e não da diluição do produto importado, cresceu 773% nos últimos cinco anos no Rio Grande do Sul, o Estado que lidera com 70% da produção nacional, que saiu de 58 mil litros em 2018 para o recorde de 448,5 mil em 2022.

A olivicultura ocupa quase 6 mil hectares de 321 produtores em 108 municípios gaúchos, sendo que 3,4 mil desses hectares já estão produtivos, com oliveiras de idade superior a 4 anos. Além do Rio Grande do Sul, grande parte dos olivais do Brasil estão localizados na Serra da Mantiqueira, na divisa de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.

Os pomares em todo o Brasil ocupam cerca de 10 mil hectares e, até 2025, o Instituto Brasileiro da Olivicultura (Ibraoliva) espera que a área de cultivo possa dobrar e alcançar 20 mil hectares.

O PROBLEMA COM AS FRAUDES

No entanto, infelizmente, o azeite de oliva está no pódio entre os alimentos mais fraudados no Brasil e no mundo. Isso acontece porque o azeite de oliva reúne características que o tornam muito atrativo aos “malandros”: um cenário de demanda em alta, escassez do produto, alto valor agregado e preços elevados.

Só em 2021, como exemplo, 24 marcas irregulares foram interceptadas em ações do MAPA e da ANVISA em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Goiás, Paraná e Santa Catarina, incluindo produtos sem registros, fraudados, clandestinos e contrabandeados.

Fábrica clandestina que adulterava azeites importados da Espanha interditada por agentes da 82ª DP (Maricá) no Rio de Janeiro, em 2021.

O consumo de azeite de oliva “alterado”, em geral, não representa uma ameaça direta à saúde, sendo uma fraude de viés econômico com o propósito de enganar os consumidores que pagam mais pelos benefícios alimentares do azeite de oliva, mas acabam levando outros óleos vegetais mais baratos e com outra composição de nutrientes e sensoriais.

Apesar dos danos à saúde por este tipo de fraude serem raros, para a gastronomia isto é um grande problema, pois no preparo de receitas, além dos atributos nutricionais, o uso do azeite de oliva é necessário para conferir notas sensoriais próprias a diversos pratos.

Porém, no início dos anos 2000, foram identificados indícios, de casos raros e absurdos, de óleos vegetais adulterados com óleo velho de motor, visando escurecer o produto para “parecer mais” com azeite de oliva. Neste caso, pode carrear contaminantes químicos que colocam em risco a saúde dos consumidores.

Quando há fraude, não há controle, e se não há controle, há espaço para riscos em segurança dos alimentos, pois fraudadores que desejam enganar consumidores não se preocupam com contaminantes ou regras de boas práticas de fabricação.

TIPOS DE AZEITE DE OLIVA

Para entender os motivos por trás das fraudes no azeite de oliva é preciso conhecer os tipos de azeite e como eles são obtidos. Em linhas gerais, são divididos em quatro categorias:

  1. Extravirgem, obtido na primeira prensa das azeitonas bem formadas em temperatura ambiente, sem uso de calor ou processos químicos e sua acidez deve ser inferior a 0,8%;
  2. Virgem, passa por alguns processos adicionais que incluem calor para garantir a retirada total do óleo presente no interior dos frutos, o que eleva um pouco a acidez do produto, ficando entre 0,8 e 2,0%;
  3. Lampante, obtido a partir de azeitonas muito fermentadas ou machucadas, cuja acidez supera os 2%. Seu gosto é forte e desagradável, o que o torna inapto para consumo, sendo mais apropriado como combustível, inclusive, o nome “lampante”, vem do uso no passado para acender lamparinas;
  4. Tipo único, no qual o lampante passa por refinação via processos físico-químicos e depois é misturado com o azeite virgem, tornando-se apto para ser comercializado para fins alimentícios.

A fiscalização do azeite de oliva no Brasil tem como base a Lei nº 9.972/2000, regulamentada pelo Decreto Federal 6.268/2007 e pela Instrução Normativa do MAPA nº 1/2012, que estabelece o regulamento técnico do produto.

Um dos primeiros fatores que ajuda a entender as fraudes tem a ver justamente com essas classificações, pois uma classificação indevida, visando, por exemplo, considerar com o extravirgem o que não é, caracteriza uma fraude.

Apesar de existirem testes laboratoriais para determinar se um azeite é virgem ou extravirgem, os tipos considerados mais “nobres”, a avaliação sensorial realizada por um grupo de analistas treinados para detectar problemas no gosto, no aroma e nos demais aspectos do azeite de oliva ainda é a melhor ferramenta.

A Espanha, Portugal, Itália e a Grécia, por serem grandes e tradicionais produtores já possuem um sistema de avaliação sensorial bem padronizado, enquanto o Brasil ainda dá os primeiros passos nessa área, mas vem avançando rapidamente.

AS FRAUDES MAIS COMUNS

A adulteração mais comuns no azeite de oliva acontece quando o sumo da azeitona é diluído em outros óleos mais baratos, como o de soja, uma vez que o fato deles serem muito parecidos e se misturarem bem ajuda a enganar os consumidores.

Contudo, as fraudes estão se tornando cada vez mais complexas e sofisticadas, com um amento de fraudes associadas a misturas de azeite de oliva de várias classificações, como os virgens e os extravirgens, adulterações com o óleo do bagaço da oliva ou até o uso de azeite lampante em altas proporções ou mesmo puro em alguns produtos.

DICAS PARA EVITAR COMPRAR AZEITE DE OLIVA FRAUDADO

  1. Priorize as marcas cuja extração e o envase do azeite de oliva acontecem no mesmo local, pois geralmente são mais seguros do que aqueles que são envasados por terceiros que compram a granel para reenvasar, onde pode ocorrer manipulação indevida e diluição;
  2. Desconfie sempre de preços muito abaixo da média, pois trata-se de um produto nobre, de baixa produtividade. Lembre-se de que uma oliveira precisa de um ano inteiro para produzir de 2 a 8 litros de azeite, portanto, pela lógica, não tem como ser muito barato;
  3. Confira a lista de produtos já aprendidos em ações do MAPA ou ANVISA, na qual constam produtos que foram associados a fraudes ou contrabando;
  4. Fique atento à embalagem que deve preferencialmente ter vidro escuro para melhor proteção dos produtos de boa qualidade;
  5. Sempre leia o rótulo. Informações como “óleo composto” ou “tempero misto” são expressões que indicam que o produto não se trata de um verdadeiro azeite de oliva e foi misturado propositalmente a outros óleos vegetais, como o de soja ou de girassol. No entanto, neste caso não há fraude, o produtor está informando no rótulo.

Termino este texto indicando que experimentem os produtos nacionais, pois os esforços com a qualidade para se firmar no mercado têm sido intensos, fato que já vem dando literalmente bons frutos, azeites de oliva excepcionais e de alta qualidade.

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Cachaça boa é a cachaça segura

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Entre os produtos tipicamente brasileiros, a cachaça se destaca. Sua cadeia produtiva movimenta cerca de R$ 15,5 bilhões anualmente, sendo que 98% dos produtores são de pequeno e médio porte, produzindo em alambiques, especialmente os de cobre. Em volume, porém, 70% da produção ocorre em escala industrial, em colunas de destilação.

O consumo per capita de cachaça no Brasil gira em torno de 6,9 L/ habitante/ ano. A bebida ocupa a 3ª posição como o destilado mais consumido no mundo, perdendo apenas para a vodka em 2°, e o soju, um destilado coreano, que é o 1°.

A cachaça começou num espectro mercadológico bastante popular, mas nos últimos anos vem alcançando um elevado status gastronômico, pois sua fabricação tem chegado ao estado da arte por parte de alguns produtores, e claro, isso vem agregando valor ao produto, e com isso, conquistando novos paladares e mercados.

Por enquanto, apenas aproximadamente 1% da cachaça produzida é exportada. Ainda assim, as exportações em 2022 alcançaram a cifra de 18,47 milhões de dólares, o maior valor dos últimos 12 anos e 54,74% maior que as exportações de 2021.

A cachaça tem recebido diversos prêmios em competições internacionais, fazendo com que entrasse na lista dos destilados mais apreciados do mundo, e somado ao papel de marketing da caipirinha, o mais famoso drink brasileiro, o nosso destilado tem se disseminado mundo afora e atualmente é exportado para mais de 60 países. Entre os principais importadores descatam-se os EUA, com cerca de 18% do total exportado, seguido pela Alemanha com 17%, Paraguai com 12%, França com 7,2%, Portugal com 6,7%, a Bolívia com 5,2%, a Espanha com 5,1%, a Itália com 4,9% e o Reino Unido com 4,1%.

Muito se fala, mas pouco efetivamente se escreveu sobre a história da cachaça, apelidada de pinga, birita, água-que-passarinho-não-bebe, caninha, mé, goró e mais uma centena de outros nomes dependendo da região.

Porém,  há algum consenso de que tenha surgido em algum local do litoral brasileiro entre 1516 e 1532, sendo que o início de sua popularização está intrinsecamente ligado ao ciclo do açúcar no Brasil, compreendido entre a metade do século XVI e a metade do século XVIII. No entanto, a única certeza é que a primeira cachaça produzida em escala comercial ocorreu em 1756 em Pernambuco: a Monjopina.

O nome cachaça provavalmente deriva do espanhol “cachaza”, que significava bagaceira, um destilado obtido a partir da casca da uva. Por analogia, por ser uma bebida ligada inicialmente ao subproduto da produção de açúcar, a mesma palavra virou uma referência para o destilado produzido na colônia brasileira. Logo, cachaza virou cachaça, pelo “abrasileiramento” do português falado por aqui.

Atualmente, segundo o IBRAC (Instituto Brasileiro da Cachaça), a capacidade produtiva do Brasil é de 1,2 bilhões de litros anuais de cachaça, mas a produção efetiva atual é de cerca de 800 milhões de litros.

O Brasil conta com aproximadamente 1.000 produtores que produzem mais de 5.500 marcas de cachaças e aguardentes registradas no MAPA (Ministério da Agricultura e Pecuária). Elas estão disponíveis para comercialização, coleção e degustação pelos apreciadores e colecionadores, considerando também diferentes terroirs, pois a cachaça é produzida em todas as regiões do Brasil, sendo que 68% da produção concentra-se na região Sudeste, 16% no Nordeste, 12% no Sul, 3,5% no Centro-oeste, e menos de 0,5% nos estados do Norte. Confira o mapa a seguir:

Pontos onde há produção de cachaça, com Minas Gerais liderando, seguido em ordem decrescente por São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

Tecnicamente, a cachaça é uma aguardente com graduação alcoólica de 38 a 48% (v/ v), a 20°C, obtida pela destilação do  mosto fermentado e destilado da cana-de-açúcar (um grupo de espécies de gramíneas perenes altas do gênero Saccharum, tribo Andropogoneae), com características sensoriais peculiares, podendo ser adicionada de açúcares até 6 g/L, conforme artigo 53 do decreto nº 6.871 de 2009 e IN 13 de 29 de junho de 2005.

Toda cachaça é uma aguardente, contudo, nem toda aguardente é uma cachaça.

Veja que para receber o nome “cachaça” o destilado deve prover exclusivamente da cana-de-açúcar, sem adição de extratos e sabores, devendo ser obtido exclusivamente da destilação do mosto fermentado da cana; já o termo aguardente é genérico e pode ser usado para outras bebidas obtidas a partir da fermentação e destilação de diversos insumos. Por exemplo: o uísque e a vodca são aguardentes de cereais, bourbon deve ter pelo menos 51% de milho, steinhäger de trigo (com zimbro), aquavit de batatas ou grãos (com sementes de alcarávia). A tequila é uma aguardente de agave, o soju e o saquê do arroz, o shoochu de batata-doce, o sliovitz de ameixa, o kirschwasser de cereja, o poire de pêra, o conhaque, a grapa, o pisco e o arac (com anis) semelhantemente são aguardentes destiladas da uva, mas pode-se fazer aguardentes de outros insumos, por exemplo, de banana, beterraba, laranja, mandioca como a tiquira, produzida especialmente na região Norte do Brasil, etc.

Diferentes sociedades utilizaram da criatividade e desenvolveram diferentes bebidas destiladas, mas seja de uma origem ou outra, as aguardentes fazem parte da história da humanidade, sendo fundamentais em suas festas e comemorações.

Para complicar um pouquinho mais, pela lei, pode haver também o aguardente de cana. Neste caso, a bebida pode ter graduação alcoólica entre 38% a 54% (v/ v), a uma temperatura de 20ºC, podendo ser feita a partir do destilado alcoólico simples de cana-de-açúcar, ou também, pela destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar.

A cachaça é uma bebida genuinamente brasileira e integra a identidade nacional, sendo inegável sua grande importância cultural, social e econômica para o povo brasileiro, estando presente em nossas músicas, folclore, lendas, histórias e acompanhando nossa culinária. Por isso, em 2001,  por meio do Decreto 4062, o Governo Federal reconheceu a “Indicação Geográfica Cachaça do Brasil“.

 

“Eu bebo da pinga porque gosto dela,

Bebo da branquinha, bebo da amarela,

Eu bebo no copo, bebo na tigela,

Pura ou temperada com cravo e canela,

Se é pinga, vou pingar no goela, oi lá.”

Trecho de “A Marvada Pinga”, música imortalizado na voz de Inezita Barroso, de autoria desconhecida.

Atualmente sua produção é realizada por grandes destilarias, mas também por pequenos alambiques, e há uma crescente produção artesanal, inclusive de ótimas e premiadas cachaças. Infelizmente, porém, entre os produtores artesanais, existem muitos alambiques que atuam de forma clandestina. Estima-se que sejam a maioria, mais de 85%, portanto, sem registro no MAPA, o que exige do consumidor uma atenção especial quanto à origem do produto.

Visita ao alambique da premiada cachaça Princesa Isabel, na cidade de Linhares, ES.

O processo de fermentação é a etapa mais importante para a qualidade da cachaça, ocorrendo pela ação de leveduras, principalmente a Saccharomyces cerevisae, por apresentar uma melhor resistência a altos teores alcoólicos. Nesta etapa, ocorre a conversão dos açúcares em etanol e outros compostos secundários, alguns com benefícios ao sabor como álcoois superiores e outros que causam malefícios como ácido acético, propanol e acetaldeído.

O controle apurado das variáveis operacionais da fermentação com o caldo de cana com brix entre 14 – 15º, temperatura mantida entre 32 a 34º C, o pH entre 4,5 – 5,0, a contagem de leveduras, o tempo de fermentação e a verificação da formação de bolhas são fundamentais para a eficiência do processo, que dura em média de 24 horas, sendo o teor de sólidos solúveis o indicativo do final do processo.

É imprescindível a assepsia dos equipamentos antes de se iniciar a fermentação, já que a contaminação bacteriana durante este processo pode prejudicar a ação das leveduras, além de resultar em compostos indesejáveis no produto final.

Na destilação da cachaça artesanal há 3 frações distintas do destilado: cabeça, coração e cauda, e para a garantia da qualidade e segurança da cachaça, a separação de cada uma dessas frações é de fundamental importância.

A cabeça é recolhida nos primeiros minutos e corresponde aos primeiros vapores condensados contendo altas concentrações de álcool, geralmente acima de 60% v/v, sendo a que requer maior atenção, pois arrasta elevados teores de metanol, acetaldeído e acetato de etila, indesejáveis e potencialmente perigosos, dependendo da concentração. A fração a seguir é o coração ou a cachaça propriamente dita, sendo seu teor alcoólico entre 38 – 48% (v/ v). Abaixo de uma graduação alcoólica de 38% (v/ v), a cachaça começa a ficar turva e, portanto, indesejável, constituindo a cauda ou “água fraca”. O ponto final da destilação ocorre quando o teor alcoólico do destilado atinge o limite de 14% (v/ v).

Como fica evidente, os perigos microbiológicos não são um problema para a cachaça, afinal, o teor alcoólico da bebida é capaz de inibir este risco. Perigos físicos também não são algo a se preocupar, uma vez que corpos estranhos tornam-se visíveis na bebida, que é translúcida. O problema ocorre com os perigos químicos, que no caso da cachaça podem ser congêneres ou contaminantes.

Muitos contaminantes e congêneres são formados ou introduzidos durante a fermentação e depois podem ser arrastados na etapa de destilação, podendo afetar de forma adversa o produto, trazendo os chamados off flavors ou componentes nocivos para a saúde, entre eles:

  1. Metanol – Também chamado carbinol ou álcool metílico, é um álcool indesejável na cachaça e sua origem se dá pela hidrólise da pectina, um polissacarídeo presente na parede celular da cana-de-açúcar, catalisada pela enzima pectinase durante o processo de fermentação. Por isso, pode aparecer naturalmente no início da destilação, sendo por este motivo, no caso da produção artesanal, considerada uma má prática a comercialização ou reutilização da fração de cabeça. Uma vez ingerido, o metanol diminui o pH sanguíneo afetando o sistema respiratório, podendo levar ao coma, a cegueira e até à morte. Uma destilação modulada e controlada diminui a formação de metanol e seu limite deve ser mantido em no máximo 20 mg/100 ml de álcool anidro;
    1. Para citar um caso, em 1999, no Sudoeste da Bahia, principalmente nos municípios Dário Meira, Ibicuí e Nova Canaã, foi comercializada uma cachaça proveniente de alambique clandestino contaminada com níveis acima de dez vezes o limite permitido de metanol, causando sintomas de intoxicação em mais de 400 pessoas. Destas, 105 foram hospitalizadas e 35 vieram a óbito.  
  2. Carbamato de etila – É um composto potencialmente cancerígeno e representa uma barreira recente à exportação de cachaça. Por isso, não deve constar em quantidade superior a 150 µg/ L. Várias fontes são responsáveis por sua formação, como o tipo de leveduras e os subprodutos do metabolismo delas, contaminação bacteriana, falta de controle de temperatura, do teor alcoólico, da acidez ou do pH. Uma destilação lenta, um ambiente limpo e higienizado, com leveduras e equipamentos adequados, são formas de diminuir a incidência de carbamato de etila;
  3. Álcoois superiores – São desejados por serem os responsáveis diretos pelo odor peculiar da bebida. Contudo, em excesso, diminuem o valor comercial e a qualidade da cachaça. Formam-se em maior quantidade quando a fermentação ocorre de forma desequilibrada. Por isso, o uso de fermentos não selecionados ou reaproveitados da indústria não é indicado. Outros fatores que influenciam são temperatura alta e aumento de acidez, assim como o armazenamento inadequado da cana. A soma dos álcoois isobutílico (2-metil propanol), isoamílicos (2-metil-1-butanol + 3-metil-1-butanol) e n-propílico (1-propanol) não deve ser superior a 360 mg/ 100 ml de álcool anidro;
  4. Acidez volátil – Uma alta acidez pode ser atribuída à contaminação da cana ou do próprio mosto fermentado por bactérias, o que pode ocorrer desde a plantação com ataque de pragas que abrem os canais de contaminação, na forma e tempo de estocagem da cana, ou com uso de fermentos inadequados que fazem com que parte do substrato sofra fermentação acética. Isso também diminui o rendimento da produção. Acidez volátil, expressa em ácido acético, não deve ultrapassar 150 mg/100 ml de álcool anidro;
  5. Cobre – As principais contaminações por cobre, um metal pesado que não deve ultrapassar o limite máximo de 5 mg/L, acontecem por falta de cuidados no alambique ou no sistema de resfriamento, cujos equipamentos são total ou parcialmente feitos de cobre. A primeira destilação deve ser feita com água, de modo a eliminar todos os resíduos, inclusive da limpeza. Ao final, a boa prática dita manter o alambique e as serpentinas cheios com água para evitar oxidação;
  6. Arsênio e Chumbo – São metais pesados que podem estar presentes em soldas inapropriadas feitas nos equipamentos, cujos limites máximos permitidos são de até 100 µg/L e 200 µg/L respectivamente. O chumbo causa danos ao cérebro, sistema nervoso e rins, enquanto o arsênio é classificado como potencial agente cancerígeno. Para evitar contaminação, deve-se sempre realizar reparos no alambique com solda apropriada à base de cobre e nunca usar misturas sem procedência;
  7. Aldeídos – São compostos muito voláteis, de odor marcante, que afetam o aroma das bebidas alcóolicas e são responsáveis pela famosa “ressaca”. Os aldeídos podem estar presentes no caldo, quando a cana é queimada. As cachaças ricas em aldeídos também são provenientes de alambiques que não separam apropriadamente os produtos da cabeça durante a destilação. A intoxicação por aldeídos pode levar a sérios problemas de saúde. Aldeídos totais, em acetaldeído, não devem ultrapassar 30 mg/100 ml de álcool anidro;
  8. Acroleína – Também conhecida como 2-propenal, é uma substância extremamente tóxica e cancerígena formada pela desidratação do glicerol, composto contido na célula das leveduras que foram arrastadas para o alambique, ou por contaminação bacteriana. Descansar o fermentado, também chamado de mosto ou vinho, por algumas horas em dorna volante, para sedimentação da biomassa, reduz o arraste. Quanto mais limpo, menores as chances de contaminações. Sua presença deve ser inferior a 5 mg/100 mL de álcool anidro.

Como visto, a clandestinidade é um problema grave no setor de cachaças. Há um fundo econômico, mas também cultural, com consumidores que valorizam a cachaça de alambique “sem nenhum rótulo”, como se isto fosse um sinônimo de qualidade e “rusticidade”. Contudo, a clandestinidade significa falta de fiscalização e aumenta a probabilidade de produção sem técnica, e, portanto, aumentam os riscos de contaminantes e congêneres off flavors, e logicamente, não há rastreabilidade de origem caso ocorram problemas.

Uma boa cachacinha é um excelente aperitivo, ou um ingrediente fundamental em nossa deliciosa caipirinha, que diga-se, deve ser feita sempre com cachaça branca e nunca com a envelhecida. Porém, escolha produtos de alambiques sérios e registrados, comprometidos com a qualidade e a segurança, para que sua cachaça tenha apenas o melhor desta iguaria alcoólica nacional, e lembre-se, aprecie com moderação.

NOTA DE AGRADECIMENTO: Deixo um agradecimento ao amigo Robson Valle, engenheiro químico, pós-graduado em qualidade da cachaça, que contribuiu com este artigo fornecendo valiosas informações.

Gostou do artigo? Tem alguma curiosidade sobre cachaça para nos contar? Quer me convidar para tomar uma pinga? Deixe seu comentário, ficarei feliz em ler e responder.

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Você sabe qual é o papel da GFSI?

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A GFSI (Global Food Safety Initiative), ou Iniciativa Global de Segurança de Alimentos, é uma coalizão do Consumer Goods Forum (CGFI) que:

  1. Reúne cerca de 400 varejistas, fabricantes e prestadores de serviço cujas vendas combinadas dos membros totalizam mais de € 3,5 trilhões;
  2. Possui mais de 150 empresas, consultorias e organizações que colaboraram com os grupos de trabalho técnico;
  3. Atualmente mais de 25500 stakeholders seguem a GFSI em todo o mundo.

Não se pode deixar de considerar como um fator de grande relevância que o GFSI reúne como principais colaboradores ativos a participação dos 45 grandes players do mercado de alimentos internacional listados a seguir, que por sua influência na cadeia produtiva de alimentos em relação aos seus fornecedores e consumidores, acabam por ditar as regras que serão adotadas no segmento.

O trabalho principal do GFSI é realizar benchmarking entre os esquemas e padrões normativos para sistemas de gestão em segurança dos alimentos, visando uma harmonização que permita promover a aceitação mútua de programas de certificação reconhecidos, permitindo, com isso, reduzir as ineficiências decorrentes da duplicação de auditorias, evitando redundâncias e como resultado reduzir as barreiras comerciais, tema abordado no artigo Por que existem tantas normas em Food Safety?

Embora a GFSI em si não seja um programa de certificação e não realize atividades de acreditação ou certificação, o reconhecimento da GFSI confere autoridade aos respectivos esquemas e padrões normativos, atuando como um “passaporte de segurança dos alimentos” no mercado global.

Estes requisitos de benchmarking da GFSI foram criados pela primeira vez em 2001 por um grupo de varejistas motivados pela necessidade de harmonizar os padrões usados para gerenciar e auditar a segurança dos alimentos em toda a cadeia de abastecimento, justamente para facilitar o comércio global.

Tais requisitos são frequentemente atualizados com informações de especialistas em segurança dos alimentos para se manterem atualizados com as tendências frente a novos riscos, desafios e demandas dos stakeholders em escala global.

Portanto, para que os CPOs (Proprietários de Programas de Certificação) tenham seus esquemas e padrões normativos reconhecidos, devem verificar se atendem aos Requisitos de Benchmarking da GFSI.

Entre os CPOs de maior relevância e reconhecimento para produção de alimentos, bebidas e embalagens, destacam-se:

Há muitos outros CPOs com diferentes abrangências, que podem ser consultados clicando aqui.  Sobre os esquemas/ padrões normativos no cenário brasileiro, não deixe de ler o artigo Panorama das Certificações em Segurança dos Alimentos no Brasil.

Com o reconhecimento da GFSI, espera-se que uma organização certificada por um dos esquemas/ padrões normativos seja reconhecida por todos seus membros, mesmo que adotem outro esquema/ padrão normativo, sem que exijam que possua a mesma certificação, o que quase sempre acontece, mas há exceções.

Outro ponto muito importante: a GFSI também possui um conjunto de requisitos de benchmarking para órgãos de reconhecimento profissional que ajuda os auditores a demonstrar sua competência no ecossistema de certificação em segurança dos alimentos por meio de um único registro em um órgão de reconhecimento profissional reconhecido pela GFSI de sua escolha, eliminando as necessidades de verificações redundantes.

O processo de benchmarking da GFSI vem se tornando cada vez mais amplamente reconhecido na indústria de alimentos em todo o mundo. Com isso, vem contribuindo para um alinhamento dos requisitos normativos e para a garantia da segurança abrangendo toda a cadeia produtiva de alimentos, além de apoiar as inciativas de auditorias que acabam por validar tais ações.

A GFSI, acima de tudo, fornece uma plataforma para colaboração entre especialistas em segurança dos alimentos em todo o mundo, junto com varejistas, produtores e empresas de serviços de alimentação, prestadores de serviços associados à cadeia de fornecimento de alimentos, organizações internacionais, academia e governos, permitindo assim a troca de informações e a manutenção de um forte processo de melhoria contínua visando alimentos cada vez mais seguros.

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Reconhecimento profissional do GFSI para auditores em segurança dos alimentos

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A Iniciativa Global de Segurança de Alimentos (GFSI) lançou o primeiro piloto com Requisitos de Benchmarking para Órgãos de Reconhecimento Profissional (PRBs) de Auditores em Segurança dos Alimentos.

“O lançamento deste piloto marca um momento crucial na implementação dos novos Requisitos de Benchmarking do GFSI para órgãos de reconhecimento profissional. Estamos confiantes de que isso ajudará a reconhecer o papel vital dos auditores de segurança dos alimentos e a salvaguardar a aceitação contínua da profissão nos próximos anos.

Erica Sheward, Diretora do GFSI

Os requisitos de benchmarking serão testados por meio de um piloto com a Exemplar Global, que se inscreveu para se tornar um PRB reconhecido pela GFSI e os Proprietários de Programas de Certificação (CPOs) voluntários testarão o novo modelo, incluindo FSSC 22000, BRC Global e SQFI.

Um dos fatores que motivaram tal medida é que, embora os auditores sejam uma parte importantíssima para garantir alimentos seguros, a indústria vem enfrentando dificuldades de recrutamento, com mais auditores deixando a profissão do que novos recrutas entrando nela, fato que está pressionando a capacidade dos Organismos de Certificação de atender à crescente demanda por auditorias em segurança dos alimentos.

A situação piorou devido aos requisitos cada vez mais complexos e duplicados aplicados aos auditores, sejam os novos ou os que já atuam, que precisam capacitar-se e realizar testes em diferentes e distintos esquemas e padrões normativos, cada um com suas particularidades e critérios, porém, todos com o mesmo propósito: food safety.

Para ajudar a solucionar tal questão, a GFSI desenvolveu uma nova abordagem para a qualificação de auditores de segurança dos alimentos para Programas de Certificação reconhecidos pela GFSI que oferecem a criação de Organismos de Reconhecimento Profissional no setor responsáveis por validar competências comuns em um auditor.

“Ao mutualizar os esforços de qualificação para auditores em todo o setor, podemos tornar a auditoria de segurança de alimentos uma profissão acessível, alcançável e desejável para mais pessoas – ajudando a proteger o futuro profissional de um componente essencial do ecossistema de segurança alimentar.”

Erica Sheward, Diretora do GFSI

O objetivo ao final é que os Proprietários de Programas de Certificação e Organismos Certificadores possam contar com um registro único em um Órgãos de Reconhecimento Profissional reconhecido pela GFSI como prova da competência do auditor, eliminando assim a necessidade de verificações redundantes.

“O mundo depende de uma cadeia de abastecimento de alimentos segura e protegida e a GFSI estabeleceu um papel fundamental para isso. Os auditores dos programas de certificação reconhecidos pela GFSI estão na linha de frente na proteção da cadeia de suprimentos.”

Andrew Baines, presidente e CEO da Exemplar Global

Vamos aguardar ansiosos o desenrolar desta esplêndida iniciativa que poderá ajudar a auditores, certificadoras, proprietários de programas de certificação, e por fim, a todos os stakeholders da cadeia produtiva de alimentos, em especial, os consumidores que poderão contar com bons auditores na linha da frente para segurança de alimentos e bebidas.

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Fraudes históricas no vinho

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A história do vinho confunde-se com a própria história da civilização humana, passando pelos egípcios, gregos, persas, fenícios, etruscos e romanos. As evidências mais antigas de sua produção, segundo o Journal of Archaeological Science, ocorreram na Idade do Cobre há 6100 anos, na região do Cáucaso, especificamente onde atualmente situa-se a Armênia.

O consumo de vinho está arraigado em nossas histórias. Noé, segundo os textos bíblicos, embriagou-se de vinho após o dilúvio, quem sabe para aliviar o estresse de sua aventura; o primeiro milagre de Jesus foi transformar água em vinho para alegrar uma festa de casamento, e segundo o texto, de ótima qualidade; e mais importante, foi a bebida servida na última ceia.

A bebida resulta da fermentação alcoólica total ou parcial do suco extraído de uvas, que são os frutos de uma planta da família das Vitaceae. Estes frutos podem ser tintos ou brancos em diversos degradês, sendo que para tornar o vinho tinto é preciso que as cascas das uvas tintas descansem no mosto, o que é chamado de maceração.

Há cerca de 60 espécies de videiras catalogadas no mundo, entre as quais está a Vittis vinífera L. que produz as uvas utilizadas para a produção dos vinhos classificados como finos, cujas variedades apropriadas são cerca de 5 mil. Entre elas estão os cultivares mais conhecidos, ao menos no Brasil: Cabernet Sauvignon, Merlot, Sauvignon Blanc, Chardonnay, Pinot Noir, Tannat, Malbec e Syrah.

O vinho tem um papel importante na gastronomia, acompanhando pratos, utilizado como uma forma de equilibrar sabores, e até mesmo, usado como ingrediente no preparo de carnes, risotos e molhos. Um vinho pode harmonizar organolepticamente com o prato, além disso, ao limpar as papilas gustativas, permite que a cada garfada se obtenha a melhor experiência gastronômica renovando o potencial gustativo na identificação dos sabores.

O vinho está entre os 100 produtos mais importados e exportados no mundo e movimenta bilhões de dólares anualmente. Segundo os dados da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV), com sede em Paris, são produzidos por ano cerca de 260 milhões de hl de vinho (1 hl = 100 litros) em todo o mundo.

E como é de se esperar num mercado tão relevante, sempre surgem os aproveitadores querendo lucrar indevidamente fraudando o produto, e infelizmente, comprar vinhos adulterados pode não ser tão incomum.

Falsificar vinhos é uma prática muito antiga. Na Roma antiga, Plínio, o Velho, reclamava que estava impossível distinguir o bom vinho romano das diversas adulterações que eram colocadas à disposição dos cidadãos romanos.

 In vino veritas, in aqua sanitas.”

O provável autor deste provérbio seria o filósofo Caio Plínio Cecílio Segundo, mais conhecido por “Plínio, o Velho” e traduzida significa: “No vinho está a verdade, na água está a saúde”.

Na Idade Média, as tabernas londrinas foram proibidas de estocar numa mesma adega os vinhos de origens diferentes, que eram vendidos em barricas, para evitar que um consumidor fosse enganado comprando “gato por lebre”. As penas para quem fosse pego vendendo um vinho fraudado eram severas e podiam variar desde a obrigação de beber todo o estoque até ser enforcado.

Vários tipos de falsificações são possíveis, passando pela simples troca de rótulos, rolhas e garrafas até elaborados esquemas de forjar garrafas de vinhos míticas para serem colocadas em leilões e vendidas por pequenas fortunas.

Outros tipos de adulteração podem incluir:

  1. Aromatizantes para conferir notas especiais, como madeira em vinhos que não envelheceram em barril de carvalho;
  2. Mosto de baixa qualidade com o acréscimo de água e açúcar até obter o brix necessário para alcançar o teor de álcool na fermentação
    1. O uso de açúcar, em casos restritos e em condições controladas, é aprovado pela legislação de alguns países e recebe o nome de chaptalização;
  3. Uso de alcalinizantes para reduzir acidez de vinho azedo;
  4. Combinação de vinho de boa qualidade para mascarar o de má qualidade, para que a bebida fique com sabor e aroma apreciáreis;
  5. Mistura de um vinho qualquer em parte de um lote de uma marca conhecida para aumentar garrafas da marca conhecida.

Ao longo do tempo foram criadas diversas legislações e mecanismos de controle como certificações de selos de origem objetivando manter a produção e comércio vinícola sob boa vigilância, mas nem assim foi possível eliminar totalmente os produtores ou comerciantes inescrupulosos.

Atualmente, a fraude mais comum é a falsificação, cujos principais alvos são os vinhos bem conhecidos e com maior valor agregado, ou seja, os mais caros que permitem mais ganhos aos fraudadores e são mais fáceis de colocar no mercado. Aproveitam-se daqueles que conhecem pouco as características sensoriais do produto, mas que querem ostentar a garrafa.

Um exemplo que vem ocorrendo aqui no Brasil é com o vinho D.V. Catena Tinto da Argentina, um dos vinhos que mais vem sendo falsificados e contrabandeados, estima-se por isso, que circule no comércio brasileiro um volume deste vinho maior do que aquilo que a vinícola Catena Zapata produz.

Entre os vinhos europeus mais falsificados, destacam-se: Domaine de la Romanée-Conti, Henri Jayer, Domaine Dujac, Château Cheval Blanc, Château Petrus, Château Lafite Rothschild, Château Latour, Château Mouton Rothschild, Château Lafleur, Château Le Pin, Château Latour à Pomerol, Château Rayas, Jaboulet La Chapelle Hermitage e Sassicaia.

Entre os vinhos americanos há registros de falsificações no Opus One e no Screaming Eagle, já entre os australianos há registros com o Penfolds Grange e Bin 707.

Além disso, o único tipo de açúcar presente no vinho deve ser o da própria uva, pois se houver, por exemplo, adição de açúcar de cana, deixa de ser vinho.

Sempre observe a quantidade de açúcar indicada no rótulo. Para os vinhos secos, até 4 gramas por litro; para os meio secos, até 18 gramas por litro; para meio doces, até 45 gramas por litro; e para doces, não menos que 45 gramas por litro. Se houver maior quantidade de açúcares do que isso e não for indicado no rótulo que o vinho é encorpado, significa que foi adicionado açúcar.

Se o ácido salicílico estiver presente nos ingredientes, o vinho foi produzido com violação da tecnologia de fabricação, pois é um ingrediente não aceito.

Exemplos históricos de fraudes com vinho

USO DE ANTICONGELANTE PARA CONFERIR CORPO E DOÇURA

Em 1985 ocorreu um caso emblemático, um escândalo devido ao uso de anticongelante na Áustria. Os produtores austríacos, em especial os de vinho a granel, estavam misturando dietilenoglicol ao vinho para fazê-lo mais doce e encorpado, como se fossem de colheita tardia, antes de serem enviados para a Alemanha para serem engarrafados, seja como vinho austríaco ou, ocasionalmente, misturado com vinho alemão.

A investigação chegou à conclusão de que, apesar da fraude, não haveria danos à saúde dos consumidores, devido às quantidades ínfimas utilizadas de dietilenoglicol, porém o escândalo representou o colapso da indústria vinícola austríaca, liquidando com sua reputação por muito tempo. Em consequência, as exportações caíram de 45 milhões para 4,4 milhões de litros por ano.

NÍVEIS LETAIS DE METANOL

Após o escândalo do anticongelante na Áustria, algo mais sério ocorreu em 1986, quando um enólogo italiano misturou álcool derivado de madeira que continha metanol ao vinho, objetivando fraudar aumentando o teor alcóolico de seu produto. O problema tornou-se grave porque o metanol é um álcool tóxico que além de cegueira pode levar à morte, e de fato, 23 pessoas morreram e mais de 90 foram hospitalizadas depois de serem envenenadas.

O vinho inicialmente afetado foi o Odore Barbera. Acreditava-se ser um único lote, mas o escândalo se espalhou e acharam metanol também no Fraris Dolcetto del Piemonte e diversos outros rótulos foram investigados.

SASSICAIA FAKE

Outro escândalo italiano chegou às manchetes em 2000, quando a polícia invadiu um armazém lotado com mais de 20 mil garrafas de “Sassicaia 1995”. As garrafas falsas do famoso vinho supertoscano estavam sendo vendidas na beira da estrada pelo líder da gangue.

Em 2020, a falsificação do Sassicaia voltou a ser notícia, quando os fraudadores engarrafaram e etiquetaram garrafas falsas para safras entre 2010 e 2015. Acredita-se que o vinho usado nos produtos falsificados seja originário da Sicília, as garrafas da Turquia e os rótulos, tampas e engradados falsos da Bulgária.

MISTURA DE UVAS NÃO DECLARADAS

Em 2008 a Itália foi atingida novamente por outro escândalo. Os produtores de Montalcino estavam adulterando deliberadamente seus vinhos feitos da uva Sangiovese com a uva Lancellota, que é de qualidade inferior e não é permitida na regulamentação do DOCG (Denominazione di Origine Controllata e Garantita) e é normalmente usada para fazer Lambrusco.

Enquanto isso era investigado, novas sondagens descobriram que uma das maiores propriedades da região estava também misturando Merlot com sua Sangiovese já por cerca de 25 anos.

O MAIOR FALSÁRIO DE VINHOS DO MUNDO (AO MENOS ATÉ AGORA)

Em 2013 Rudy Kurniawan, natural de Jacarta, Indonésia, que alegava ter, em 2007, a maior adega do mundo, foi condenado a 10 anos de prisão por vender vinhos falsificados. Em 2006, apenas em um leilão da Acker, Merrall & Condit, os seus vinhos acumularam um valor total de 24,7 milhões de dólares, mas estima-se que a cifra total comercializada por ele possa ter ido além dos 100 milhões de dólares.

Mas como a malandragem não dura para sempre, num dos leilões em que oferecia seus vinhos raros estava presente o grande produtor Laurent Ponsot, da Borgonha, que ao ver garrafas antigas de seu vinho anunciados em leilão, apressou-se ao local para avisar que no lote a ser vendido estavam vinhos de colheitas inexistentes, como o Ponsot Clos de la Roche de 1929, sendo que este só começou a ser produzido em 1934, e assim o falsário foi pego.

Descobriu-se na investigação que Kurniawan tinha uma oficina que possuía até brocas de dentistas para gravar em baixo relevo nas garrafas fabricadas imitando inscrições dos anos de 1780, cinzelando as letras com as iniciais, dando ares de autenticidade à garrafa de mentira.

VINHO VERDE COM UVAS DE OUTRAS PROCEDÊNCIAS

O Vinho Verde é produzido na Região Demarcada dos Vinhos Verdes, em Portugal, constitui uma DOC (Denominação de Origem Controlada) cuja demarcação remonta o ano de 1908, então, evidentemente, não pode ser produzido com uvas de outros terroirs.

Contudo, no final de 2019, jornalistas do Correio da Manhã de Portugal testemunharam a chegada de caminhões-tanque com uvas de origem desconhecida para a produção de vinho em adegas portuguesas de onde sai como vinho verde certificado, mostrando fraude de rastreabilidade na cadeia de custódia.

BORDOLÊS FAKE

Em 2023 a polícia francesa desmantelou um esquema de falsificação de vinho bordalês e fez mais de 20 prisões relacionadas a um golpe em grande escala envolvendo vinho de Bordeaux falsificado.

O vinho era vendido para supermercados na França e em outros países como sendo de châteaux de renome da região do Médoc, uma importante denominação de origem de vinhos da França – AOC (Appellation d’Origine Contrôlée), localizada na margem esquerda do estuário do Gironde, ao norte de Bordeaux. Porém, os vinhos na realidade eram de outras regiões francesas ou mesmo da Espanha, rotulados de forma fraudulenta.

Outros casos envolviam o uso de outras denominações de prestígio, incluindo Saint-Emilion e Pomerol.

AS FRAUDES NO BRASIL

No vinho nacional, as fraudes identificadas pela Polícia Federal são geralmente no sentido de burlar a alta carga de impostos e não adulterando o produto, há especialmente casos de descaminho, inclusive entre os Estados da Federação, ressaltando que por aqui os impostos podem representar mais da metade da garrafa, enquanto na Europa o vinho é classificado como alimento e a carga tributária é em média 15 – 20%, o que torna nosso País pouco competitivo, sendo este um obstáculo à cultura do vinho por ele se tornar um produto menos acessível e um incentivo aos contrabandistas.

Portanto, até o momento por aqui, a fraude do vinho nacional não é questão de food safety. Ao contrário, os enólogos e sommeliers  brasileiros têm feito um grande esforço para que o produto destaque-se tanto em qualidade percebida quanto intrínseca.

Um reflexo da evolução dos vinhos nacionais é o crescimento das IG (Indicações Geográficas), valorizando produtos tradicionais de determinados territórios e garantindo rastreabilidade.

No Brasil, existem duas modalidades de IG: a Indicação de Procedência (IP) e a Denominação de Origem (DO), sendo que a IP se aplica às regiões que se tornaram reconhecidas e o DO vinhos com qualidades ou características que se devem essencialmente ao meio geográfico, incluídos os fatores naturais e os humanos.

Mapa elaborado por Jorge Tonietto, Luciana Prado, Fábio Ribeiro (Embrapa Uva e Vinho); Ivanira Falcade (UCS); Dezembro 2022.

A produção de vinhos finos no Brasil, comparada à de outros países, é um bebezinho ainda. Por isso, ter ações de Food Fraud é essencial para que esta indústria cresça mantendo sua credibilidade.

Para evitar comprar vinho fraudado siga estas dicas:

  1. Em vinhos tradicionais, veja se a rolha bate com a marca do rótulo, porém, algumas rolhas não tem mesmo nenhuma identificação;
  2. Esteja atento a detalhes no rótulo, erros gramaticais ou fora dos padrões tradicionais em que são habitualmente comercializados;
  3. Observe impressão pobre em detalhes ou papel errado, assim como informações faltantes;
  4. Não se engane, se o preço está muito mais barato do que costuma ser, isso é um indício de que deve desconfiar;
  5. Compre de comerciantes que sejam capazes de demonstrar procedência/ rastreabilidade;
  6. Verifique no rótulo o teor de álcool da safra e outros dizeres de rotulagem e compare com a ficha técnica do fabricante.

Para finalizar o artigo, que fique claro que a fraude é a exceção e não a regra, que apesar de alguns poucos “malandros” querendo dinheiro fácil, o setor no geral é muito sério, fazendo desta bebida consumida há milênios, rótulos que são verdadeiras obras de arte, e são literalmente milhares de rótulos, cada um com uma combinação de uvas, terroirs e técnicas que os fazem únicos, portanto, escolha o que mais lhe agrada e desfrute com moderação.

Quer saber mais sobre fraudes em alimentos e bebidas? Leia também:

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Riscos e oportunidades dos smartphones para a segurança dos alimentos

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Strategy Analytics publicou uma estimativa de que 3,85 bilhões de pessoas possuem smartphones. Considerando que há cerca de 7,9 bilhões de pessoas no planeta Terra, isso significa que 50% de todo o mundo já possui um aparelho destes.

O Brasil é um país cuja população mergulha sem medo nas novas tecnologias. Por aqui, segundo uma pesquisa da FGV, há mais de um smartphone por habitante, pois existem 242 milhões de aparelhos em uso e o País tem pouco mais de 214 milhões de habitantes, de acordo com o IBGE.

Evidente que há pessoas com mais de um aparelho e outras que ainda não o possuem, mas o fato é que a grande maioria dos brasileiros já faz uso dos smartphones como sendo um objeto imprescindível em seu dia a dia.

Quando o homem pisou na Lua em 1969, o computador com o nome de Apollo Guidance Computer (AGC) tinha pouco mais de 4 MB de memória RAM para leitura de dados, além de 72 KB de memória ROM, enquanto um smartphone intermediário atual normalmente tem 4 GB de RAM. Isso significa que um Galaxy J8, por exemplo, tem 4 mil vezes mais capacidade de processamento que o computador da Apollo 11.

Já um iPhone com 512 GB de armazenamento tem o equivalente a 4.398.046.511.104 de bits e isso significa que sua capacidade de processamento é mais de sete milhões de vezes maior que a do AGC.

Estes números servem para mostrar que este aparelhinho que temos em mãos, que se tornou tão banal em nosso cotidiano, possui uma tecnologia muito mais avançada do que a utilizada para chegar na Lua. Claro, isso significa muitas oportunidades para os profissionais da cadeia produtiva de alimentos, mas também muitos desafios, especialmente porque sua chegada foi abrupta e a revolução disruptiva que ele vem causando é gigantesca.

O P O R T U N I D A D E S

Vamos começar pelo copo meio cheio, pois são muitas os benefícios que um smartphone pode trazer aos profissionais da cadeia produtiva de alimentos.

O mais óbvio é a possibilidade de comunicação, facilitando troca de informações, o envio de fotos, vídeos, textos, documentos, áudios gravados, podendo, por exemplo, permitir comunicação de forma rápida, precisa e simples com os membros de uma equipe de Segurança dos Alimentos.

Os smartphones podem conectar também diversos outros stakeholders como clientes, varejistas, distribuidores, transportadores, indústrias, produtores primários etc., tornando muito mais ágil as ações coordenadas, em especial, quando surgem adversidades como numa eventual gestão de crises e recall.

Contudo, o potencial de uso dos smartphones vai muito além da comunicação entre pessoas, permitindo também a comunicação entre homens e máquinas. A partir do uso da Internet das coisas (IoT), com máquinas e equipamentos adotando sensores inteligentes como os de vazão, volume, pH, temperatura, nível, cor, presença, peso e o que mais for imaginável para coletar dados,  pode-se depois remeter estas informações aos usuários que mesmo remotamente terão a possiblidade de monitorar e controlar produtos e processos em tempo real via seus smartphones.

Há diversas outras aplicações úteis dos smartphones nas áreas de vendas de produtos alimentícios, análise de satisfação de clientes, prospecção de mercados, inteligência de mercados e de negócios.

Indo além, como visto no artigo Indústria 4.0, somado ao uso de grandes bancos de dados (Big Datas), Inteligência Artificial (AI) e outras tecnologias emergentes, a indústria nos próximos anos passará por uma transformação profunda e rápida, pois a velocidade com que evolui segue um crescimento em progressão geométrica, e não tenha dúvida, os smartphones são um elo central nisto.

D E S A F I O S

Enxergar os riscos é um exercício importante, pois nos possibilita prever problemas, e como é de se esperar, há também desafios no uso de smartphones para os profissionais da indústria de alimentos.

Vou direto a um dos pontos cruciais: smartphones viciam. Assim, muitos ficam com ele no bolso, mas na primeira oportunidade aproveitam para dar uma olhadinha e alguns cliques navegando em redes sociais, aplicativos, vídeos do YouTube, e espero, também aqui no blog para se informar sobre as novidades em Food Safety, porém este hábito pode trazer riscos.

Por exemplo, suponha que um manipulador de alimentos vai ao banheiro, e naquele momento íntimo de privacidade, aproveita para dar uma clicadinha. Com isso, o ambiente insalubre possibilita contaminação do aparelho, e depois, ao longo do dia, o smartphone será um ponto potencial de contaminação cruzada.

Uma pesquisa publicada pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense coletou amostras nas telas touch screen de smartphones que foram analisadas para determinar a contagem de bactérias aeróbias mesofílicas, enterobactérias, bolores e leveduras, bactérias coliformes totais e bactérias coliformes a 45°C.  Constatou-se que mais de 70% dos aparelhos analisados apresentaram contaminação elevada por bactérias mesófilas aerofílicas e bolores e leveduras, além de 25% por enterobactérias, sendo observada a presença de coliformes a 45°C em 25% dos aparelhos avaliados, como pode ser visto aqui.

Uma outra pesquisa publicada no jornal da Universidade Federal de Goiás indicou a presença de biofilmes bacterianos em smartphones de profissionais de saúde (veja aqui).

Além do evidente risco microbiológico, a distração causada pelo uso dos smartphones em ambientes produtivos pode propiciar erros no controle operacional, na dosagem de insumos, aditivos e ingredientes, no controle de pontos críticos, e com isso, gerar produtos fora da especificação e potencialmente inseguros, e claro, até mesmo acidentes do trabalho.

Outra questão relevante que precisa ser abordada refere-se a Food Defense, especialmente no que se refere à proteção das organizações e suas marcas. Pessoas mal-intencionadas, tendo em mãos câmeras, filmadoras e gravadores que integram os apetrechos de um smartphone, podem criar verdadeiras ciladas, simulando e filmando contaminações que depois podem ser viralizadas em redes sociais com o objetivo em prejudicar determinadas marcas, e aí, até que se explique, o estrago está feito.

Há também, evidentemente, o risco de espionagem industrial ao filmar ou fotografar segredos industriais.

COMO AGIR

O fato posto é que os smartphones já são uma realidade e dificilmente deixarão de ser a curto prazo. Somente deixarão de ser quando forem substituídos por algo ainda melhor e mais prático.

A questão é como devemos agir em relação ao tema, pois ao mesmo tempo que se deve respeitar a individualidade de cada um no uso de seu smartphone, há que se considerar os riscos potenciais de seu uso em ambientes de trabalho para poder preveni-los.

Seguem algumas dicas sobre como lidar com esta questão:

  1. Limite o uso dos smartphones por área e função, mapeando quais atividades desempenhadas podem ou não utilizar os smartphones e em quais ambientes/ locais/ áreas – use um critério de gestão de riscos:
    1. Profissionais que não manipulam matérias-primas, insumos, aditivos e produtos e que precisam smartphone para melhor realizar suas atividades e funções podem ter seu uso autorizado;
    2. Manipuladores diretos de matérias-primas, insumos, aditivos e produtos não devem ter permissão para uso durante horário de trabalho;
    3. Em áreas críticas de manipulação de alimentos, onde o produto, devido às suas características intrínsecas, seja muito susceptível à contaminação, ninguém deve ter autorização de uso dos smartphones;
    4. O ítem anterior também se aplica para áreas onde seja necessária a proteção de tecnologias de produção e propriedade intelectual da organização.
  2. Dentro do tema BPF – Boas Práticas de Fabricação – treine as pessoas sobre os riscos de contaminação cruzada com smartphones e capacite todos sobre como criar uma rotina de limpeza e desinfecção das mãos e dos aparelhos, usando, por exemplo, álcool 70%  ou álcool isopropílico;
  3. O tema uso de smartphones e as regras adotadas pela organização deve ser repassado já em treinamentos de integração com periódicas reciclagens no assunto, fora, é lógico, o monitoramento constante por parte das lideranças;
  4. Para os profissionais que não podem utilizar o smartphone durante o expediente de trabalho, é conveniente que a organização disponibilize armários seguros para sua guarda;
  5. Por fim, fortaleça a Cultura de Segurança dos Alimentos, disseminando um olhar crítico para que todos sejam capazes de perceber os riscos e preveni-los.

Há muito mais a se dizer sobre os riscos e oportunidades que os smartphones podem proporcionar, assim como as formas de lidar com esta questão. Deixe sua contribuição, diga como você age neste tema no seu dia a dia profissional.

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Qual ISO/TS devo usar na minha certificação FSSC 22000?

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FSSC são as letrinhas para Food Safety System Certification, ou seja, Certificação em Sistemas de Segurança dos Alimentos. Trata-se do esquema normativo que no Brasil foi escolhido por cerca de 70% das empresas que optaram por um esquema reconhecido pelo GFSI (Global Food Safety Initiative), que também reconhece a IFS, SQF e a BRCGS, como visto no artigo Panorama das Certificações em Segurança dos Alimentos no Brasil.

O esquema  é administrado pela Fundação FSSC, composta por um conselho de stakeholders independentes com representantes de vários setores da indústria de alimentos. Para garantir a transparência e o envolvimento da indústria, também um comitê consultivo faz recomendações sobre vários tópicos, incluindo aspectos técnicos como auditorias não anunciadas, fraude alimentar, defesa dos alimentos, alergênicos, cultura em segurança dos alimentos e documentos de orientação e revisões de próprio esquema.

Organizações que fazem parte da administração do Esquema FSSC 22000:

  • Organizações com membros votantes do conselho de partes interessadas: Ahold Delhaize, The Coca-Cola Company, FoodDrinkEurope,  FIA, IAAR, IIOC, IQNET, MARS, Metro, Serving Europe, SSAFE e Unilever, além de observadores do Grupo BSI e da CBA;
  • Organizações do comitê consultivo: A própria Fundação FSSC, ANAB, Carry Transit, IAAR, IIOC, IQNET, Nestlé, Pepsico, UKAS, Yum! e Walmart.

Estre os benefícios da adoção deste esquema pelas organizações, os mais relevantes são: garantir a produção de alimentos, bebidas, embalagens e serviços que sejam seguros aos consumidores, incluindo o atendimento de requisitos estatutários; construção de uma abordagem preventiva baseada na gestão de riscos; capacidade de demonstrar conformidade com os requisitos específicos de um  SGSA – Sistema de Gestão em Segurança dos Alimentos.

Para que uma organização consiga obter uma certificação no esquema FSSC 22000, é preciso atender aos requisitos de três documentos que o compõem:

  1. ISO 22000 – Sistema de gestão de segurança de alimentos – Requisitos para qualquer organização na cadeia produtiva de alimentos;
  2. As decisões publicadas do BoSBoard of Stakeholders (Conselho de Grupos de Interesse), cujos requisitos podem ser lidos clicando em “Tradução: Requisitos Adicionais da FSSC 22000 versão 6.0;
  3. Uma ISO/ TS (Technical Specification) de acordo com a subcategoria na qual a organização se enquadra, definida justamente no próprio BoS V.6.

Mas quais ISO/ TS podem ser aplicáveis e qual cada categoria de organização deve seguir?

ISO/ TS 22002-1 – Programa de pré-requisitos na segurança de alimentos – Parte 1: Processamento industrial de alimentos

Aplica-se às subcategorias B III, C 0, C I, C II, C III, C IV e K.

B III é a categoria para pré-processamento e manuseio de produtos vegetais, que incluem atividades em vegetais colhidos que não passam por processamento que modifique a forma original, incluindo produtos da horticultura e hidroponia. Os processamentos típicos nesta categoria incluem limpeza, lavagem, crescimento, irrigação, triagem, nivelamento, aparamento, desbaste, resfriamento, hidrorresfriamento, enceramento, encharcamento, aeração, preparação para armazenamento, partida e carregamento.

C 0 é a categoria para conversão primária de animais, que inclui conservação de carcaças de animais destinadas a processamento posterior, incluindo engorda, abate, evisceração, resfriamento, congelamento e armazenamento a granel de animais de criação, e inclusive, de animais provenientes de pesca e caça onde a prática é permitida.

C I é a categoria para processamento de produtos animais perecíveis, que inclui processamento e embalagem de peixe, produtos derivados de peixe, frutos do mar, carne, ovos, laticínios e alimentação para animais de estimação que requerem controle de temperatura de refrigeração ou congelamento, produzidos a partir de produtos de origem animal.

C II é a categoria para processamento de produtos de base vegetal perecíveis, que inclui processamento e embalagem de frutas e sucos frescos, vegetais, grãos, nozes, leguminosas, produtos congelados à base de água, “carne” à base de plantas e substitutos de laticínios e alimentação para animais de estimação produzidos apenas a partir de produtos vegetais.

C III é a categoria para processamento de produtos mistos de origem animal e vegetal, que inclui processamento e embalagem alimentos com ingredientes mistos como pizzas, lasanhas, sanduíches, bolinhos e refeições prontas, incluindo produtos de cozinha industrial não oferecidos para consumo imediato, além de alimentos para animais de estimação produzidos partir de produtos mistos de animais e vegetais.

C IV é a categoria para processamento de produtos estáveis em temperatura ambiente, que inclui processamento e embalagem de produtos armazenados e vendidos em temperatura ambiente, incluindo enlatados, biscoitos, salgadinhos, óleo, água potável, bebidas, massas, farinhas, açúcar e sal comestível, assim como alimentos para animais de estimação estáveis em temperatura ambiente como é o caso de diversos peletizados.

K é a categoria para produção de químicos e bioquímicos, portanto, produção de aditivos e auxiliares de processamento de alimentos e rações, como aromatizantes, corantes, coadjuvantes, vitaminas, gases e minerais, assim como a produção de bioculturas e enzimas.

ISO/TS22002-2 – Programa de pré-requisitos na segurança de alimentos – Parte 2: Serviço de alimentação

Aplica-se a subcategoria E, portanto, Catering, ou seja, serviço de alimentação.

Neste caso, a categoria E abrange atividades como cozinhar, misturar e fazer preparações de componentes e produtos para consumo direto no local ou levar para casa. Os exemplos incluem restaurantes, fast foods, hotéis, food trucks, instituições diversas como lanchonetes e restaurantes em locais de trabalho, escolas e fábricas, incluindo varejo com preparação no local/ rotisseria, incluindo reaquecimento, catering para eventos, cafeterias e bares.

ISO/TS22002-4 – Programa de pré-requisitos na segurança de alimentos – Parte 4: Processamento industrial de embalagem para alimentos

Aplica-se a subcategoria I, produção de embalagens e materiais de embalagens que terão contato com alimentos, rações para animais de estimação e de abate.

Os exemplos da categoria I são diversos como latas de alumínio, garrafas de PET, filmes de BOPP, tambores metálicos e todos os outros diversos materiais que podem ter contato com os alimentos, podendo incluir também embalagens produzidas no local para uso no processamento.

ISO/TS22002-5 – Programa de pré-requisitos na segurança de alimentos – Parte 5: Transporte e armazenagem

Aplica-se à subcategoria G, para serviços de transporte e armazenamento, portanto, atividades associadas à logística.

Estão na categoria G instalações para armazenamento e veículos de distribuição de alimentos, embalagens e rações perecíveis ou não perecíveis, onde haja necessidade de controle de temperatura ou sejam estáveis em temperatura ambiente, assim como as instalações de guarda, transbordo e armazenamento.

ISO/TS22002-6 – Programa de pré-requisitos na segurança de alimentos – Parte 6: Produção de alimentos para animais e rações

Aplica-se à subcategoria D, para processamento de rações e alimentos para animais, exceto os animais de estimação.

Estão na categoria D o processamento de matérias-primas para alimentação animal destinados ao abate ou não, mas que não sejam animais de estimação mantidos em residências. Como exemplos temos cavalos, vacas, porcos, carneiros, bodes, galinhas etc., incluindo farinha de grãos, oleaginosas, subprodutos da produção de alimentos, mas também mixes para ração de animais destinados ao abate, com ou sem aditivos, como pré-misturas, rações medicamentosas e rações compostas.

Para a categoria F não é aplicada nenhuma das ISOs/ TS.

A subcategoria F I para varejo, atacado e e-commerce deve atender em seu lugar a BSI/ PAS 221, que é justamente um programa de pré-requisitos para varejistas, portanto, aplica-se à armazenagem e fornecimento de produtos acabados a clientes e consumidores como lojas de varejo e atacadistas como mercearias, mercados, supermercados, grandes redes atacadistas, incluindo também atividades de menor processamento tais como fatiar, porcionar ou reaquecer.

Já a subcategoria F II, que aparece na nova revisão do BoS, refere-se a corretoras de negociação de produtos da cadeia produtiva de alimentos e respectivo e-commerce, ou seja, atividades de compra e venda de produtos sem manipulação física ou agentes de negociações de produtos, insumos, aditivos e matérias-primas que entrem na cadeia produtiva de alimentos. Neste caso nenhuma ISO/TS é exigida, sendo necessário cumprir somente a ISO 22000 e as recomendações específicas para a categoria contidas no BoS.

Leia também:

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – PARTE 1

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – PARTE 2

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – PARTE 3

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – Parte 4

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – Parte 5

Principais pontos da ISO/TS 22002-1 e documentação recomendada – Parte 6

Publicação da ISO/TS 22002-3 em português pela ABNT

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O que o BoS 6.0 do FSSC 22000 fala sobre Food Fraud?

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A revisão das decisões publicadas do BoSBoard of Stakeholders (Conselho de Grupos de Interesse) do Esquema FSSC 22000  foi publicada agora em abril de 2023 e encontra-se na versão 6.0. Em sua seção 2.5 – REQUISITOS ADICIONAIS DO FSSC 22000, o tema food fraud não mudou significativamente. Quem já tinha um bom plano implantado sobre este assunto, possivelmente terá de modificá-lo muito pouco ou nada.

A tradução de todos os requisitos adicionais do BoS da FSSC 22000 V 6.0 você encontrará clicando em  Tradução: Requisitos Adicionais da FSSC 22000 versão 6.0.

Primeiro vamos recordar que food fraud refere-se a prevenir atos desonestos, ou seja, transgressões de motivação econômica com a finalidade de ganho financeiro através de modificações intencionais nos produtos, tais como substituição de matérias-primas, diluição ou adição intencional de insumos não autorizados, levando à adulteração.

Ações típicas que configuram fraude podem ser exemplificadas por:

  1. Adição de água para aumento do volume em bebidas;
  2. Adição de reconstituintes como formol ou melamina para mascarar a adição da água e agir como um conservante no leite;
  3. Adição de conservantes, como a água oxigenada, para destruir microrganismos ou impedir sua multiplicação, aumentando a durabilidade do leite, assim como adição de neutralizantes, como a soda cáustica, para mascarar a acidez da fermentação microbiana;
  4. Adição de calda de açúcar, xarope de glicose, melado ou dextrina no mel de abelha;
  5. Adição de óleos como de soja ou milho no azeite de oliva;
  6. Carne moída com carne de segunda vendida como se fosse de primeira ou com excesso de sebo;
  7. Água de coco diluída, tendo o brix corrigido com uso balanceado de sacarose e glicose;
  8. Arroz fora do tipo indicado na embalagem;
  9. Carne de cavalo vendida como carne de vaca;
  10. Farinha diluindo a cúrcuma ou o urucum;
  11. Cássia vendida como canela;
  12. Pescada cambucu comercializada como robalo congelado, bagre como surubim, albaote dente curvo como filé de linguado ou cavalinha como sardinha;
  13. Produto produzido convencionalmente comercializado como se fosse orgânico;
  14. Café com excesso de defeitos vendido como extra forte, tendo como artifício mais tempo de torra para disfarçar os defeitos;
  15. Café misturado com milho, cevada, centeio ou outros grãos;
  16. Venda de produto vencido com data manipulada;
  17. Vinho, uísque ou cerveja com embalagem e rótulo trocados por outros de produtos mais caros.

Voltando ao esquema FSSC V 6.0, o assunto Food Fraud encontra-se no requisito 2.5.4, que se subdivide em dois requisitos como segue:

2.5.4.1 – Avaliação de vulnerabilidades, aplicável a todas as categorias:

A organização deve:

a) Conduzir e documentar a avaliação de vulnerabilidades de food fraud, com base em uma metodologia definida, para identificar e avaliar vulnerabilidades potenciais; e

b) Desenvolver e implementar medidas de mitigação apropriadas para vulnerabilidades significativas. A avaliação deve abranger os processos e produtos dentro do escopo da organização.

Grifado em letra amarela o que foi modificado na versão 6.0 do BoS.

Ou seja, a revisão enfatiza a necessidade de documentar a avaliação de fraude, usando uma metodologia definida, onde cabe bem alguma associada à gestão de riscos, e que deve, por motivos óbvios, abranger os processos e produtos dentro do escopo da organização.

2.5.4.2 – Plano, aplicável a todas as categorias:

a) A organização deve ter um plano de mitigação de food fraud documentado, com base nas saídas da avaliação de vulnerabilidade, especificando as medidas de mitigação e os procedimentos de verificação;

b) O plano de mitigação de food fraud deve ser implementado e apoiado pelo SGSA da organização.

c) O plano deve atender à legislação aplicável, abranger os processos e produtos no âmbito da organização e ser mantido atualizado.

Grifado em letra amarela o que foi modificado na versão 6.0 do BoS.

O requisito 2.5.4.2 complementa o 2.5.4.1, lembrando que documentar uma avaliação de vulnerabilidades com apropriadas medidas mitigadoras para prevenir riscos de fraude é justamente o que configura um Plano de Food Fraud.

Portanto, deve-se identificar e avaliar as potenciais fraquezas do processo através de um plano documentado com uma avaliação de vulnerabilidade que englobe toda a cadeia desde o monitoramento dos fornecedores até análises de seu próprio produto, garantindo que segue os ingredientes declarados, nas dosagens previstas e sem diluições indevidas.

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Continue acompanhando o Food Safety Brazil e a série de posts aprofundando detalhes sobre os requisitos exigidos na versão 6.0 da FSSC 22000. 

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