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Zero NC: uma história bem (mal) contada

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Curupira, mula sem cabeça, saci pererê e Zero NC. É tudo folclore, gente. Não existe. Isso não significa que nossas crianças e nós, adultos, não tenhamos boas histórias para contar. Pelo contrário! Nosso folclore é riquíssimo… mas nossas lendas urbanas da Segurança de Alimentos também são. Para escrever este artigo, consultei a vasta obra de Câmara Cascudo, um dos maiores pesquisadores de nosso folclore, e conversei com muitos colegas consultores e auditores.

O que são empresas “padrão zero NC”?

Reza a lenda que há várias empresas “padrão zero NC”, com objetivo declarado em documentos da gestão e lideranças de topo que cobram este tipo de resultado (e aqui não vamos nem discutir se estas lideranças oferecem ou não as condições mínimas necessárias para a empresa “rodar” bem). O contraditório é que empresas “padrão zero NC” de verdade sabem que nunca serão. E nem querem! Empresas “padrão zero NC” fazem das não conformidades oportunidades de melhoria. Não se frustram e não contestam: agradecem e trabalham. Sabem que olhares criteriosos sempre trarão boas novidades e oxigenação para o sistema. E isto é ótimo!

Vivi o suficiente para confirmar esta lenda. Já vi Alta Direção que manda representante (e não participa) no dia da Análise Crítica com o objetivo de trazer uma única informação de volta: “quantas NC tomamos?”. Também já vi gestores do SGI ou da Segurança de Alimentos que discursam bem, contratam uma consultoria para “melhorar nossa Cultura e ajudar a gente com a Alta Direção”, mas fazem cocô nas calças quando pensam que podem levar uma (uma!) não conformidade na auditoria. Na verdade, temem por seus empregos, aceitam as regras do jogo e não sustentam o discurso. No meio do trabalho, faltando algumas semanas para a auditoria, não querem mais uma “Cultura”: querem pronto. Perdem a chance de aprender, de fazer e se apropriar, e exigem “um modelinho que você já usa”. Já vi consultorias baratinhas aceitarem e já vi coordenadores de ESA se submeterem. Ambos podem ser “demitidos”. Mas não fica só por aí: a lista de “demitidos” pode incluir o organismo certificador. Afinal, ninguém quer auditor chato.  A gente gosta mesmo de auditor bonzinho. Ultimamente, auditores “chatos” também vêm sendo “demitidos” ou vêm desistindo voluntariamente deste esquema. Admiro profundamente meus colegas que resistem com firmeza de propósito mas, neste ritmo, chegaremos ao dia em que um contrato será a fachada de um aluguel de carimbo e uma nova leva de “carimbadores de certificado” estará à solta, aposentando definitivamente os cheios de propósito.

Você Decide

Por fim, esta lenda acaba com dois finais nos quais Você Decide. Nenhum dos dois é fácil, mas seguramente apenas um deles nos traz paz.

O final 1 é o mais comum: você comemora a certificação por 11 meses. Faz propaganda, conta para todo mundo. Só não põe o logo na embalagem porque não pode. Um mês antes da manutenção você mobiliza todo mundo para “fazer os reparos no Sistema”. É neste momento que a gente pinta as paredes, regula as torneiras automáticas que deixaram de funcionar há seis meses, troca as lixeiras cujos pedais estavam quebrados e refaz a junção do forro nos pontos onde há vão. A gente também pede para “a empresa do controle de pragas” checar se está tudo bem, reforça os procedimentos com o porteiro (precisa pedir RG do visitante) e, para os mais ousados, vale aquela assinatura retroativa no treinamento da ESA. Nada inédito, já vimos tudo isso. No dia da auditoria, fogos espantam pombos enquanto o auditor não saiu do hotel e montamos um grupo do whatsapp para nos mantermos atualizados sobre os reparos de urgência: secar um piso molhado em uma área seca; sumir com um palete úmido e mofado que está em uso no almoxarifado; e até abotoar a camisa de motorista de caminhão com peito de Tony Ramos à mostra. Sim, amigos, já vimos de tudo. Dá muita emoção, mas já compartilhamos doses elevadas de Rivotril na véspera e já misturamos café com energético para preencher tratamentos de NC durante a madrugada “para ver se o auditor tira a NC”. Ao final, nos reenergizamos para mais um ciclo. Abraçamo-nos e soltamos balões (ou bexigas). Nunca vi, mas já soube até de banda de música logo após a recomendação (integrantes vestidos de soldadinhos de fanfarra esperavam atrás do palco do auditório com um trombone, dois pratos e uma espécie de corneta). Funciona bem. Trabalhamos um mês só e garantimos 12 meses de certificado. O auditor foi “gente boa”, conseguimos esconder muitas falhas e passamos com zero NC. Excelente padrão.

O final 2 é mais raro: a gente comemora discretamente porque sabe que nosso esforço foi premiado, mas não acaba ali. Sentimo-nos orgulhosos, mas não necessariamente eufóricos. Nem cogitamos colocar o logo na embalagem, mas fazemos uma carta bem escrita a nossos fornecedores e clientes. Passamos o ano inteeeeeeeiro fazendo melhorias. Cansa, mas já fica tudo “meio pronto” para quando o auditor chegar. Dá um friozinho na barriga, mas ok. Afinal, quem nunca? Diante de uma eventual não conformidade, arriscamos até pedir uma opinião ao auditor e mostramos evidências complementares: o importante é aprender. No final, meia dúzia de não conformidades. Às vezes, dez, com uma maior. Paciência. O ritmo de trabalho é constante e não pode parar. Precisamos entregar produtos seguros todos os dias.

Agora, caros leitores, é com vocês. Vocês podem usar os comentários para decidir o final da história que vocês protagonizam. Escreva “1” para final 1, e “2” para final 2.

***

De quebra também preparei um Guia Rápido do Folclore Brasileiro Aplicado ao Setor de Alimentos. Escolha sua empresa-personagem e divirta-se!

Empresa-Saci Pererê: É manca. Anda sempre dando saltos, mas vira e mexe, tropeça. É desastrada. Fica submissa ao auditor quando ele rouba sua carapuça, porque não consegue discutir nada tecnicamente com profundidade. É natural ter medo. “Pede fogo” aos consultores para acender seu cachimbo, porque não consegue fazer nada sozinha. Sua garrafa de cachaça é o certificado: basta mostrar um para ela, que ela vem correndo atrás.

Empresa-Mula Sem Cabeça: A tocha no lugar da cabeça representa os ânimos sempre exaltados nas vésperas da auditoria. As ferraduras de ouro e prata representam as “patadas” distribuídas aos montes pelas lideranças, que querem ver tudo pronto, sem fazer por onde. Esta empresa relincha muito alto quando consegue um certificado, mas imita o gemido humano, fingindo ser uma empresa “legal de se trabalhar”. Só aparece altas horas da madrugada, quando o auditor já está batendo à porta. Prefere as noites de quinta ou sexta-feira, quando tem lua cheia, porque à noite fica mais agradável para levar o auditor para jantar.

Empresa-Curupira: Tem os pés virados para trás e, sendo assim, mesmo quando avança, fica tudo torto e acaba confundindo os invasores: é muito difícil dar consultoria e auditar ali. É capaz de ressuscitar os animais: quando a gente menos espera, um diretor sumido aparece para pedir foco na auditoria. Vive na parte mais densa da floresta e suas documentações, incluindo os registros, são caóticas: não conseguimos encontrar nenhuma informação facilmente.

Empresa-Cuca: Vigia colaboradores que não cumprem ordens para praticar maldades com eles. Assim, todos ficam amedrontados e obedientes. Sua Cultura invade a mente das pessoas e passa a controlá-las. Uma empresa-Cuca pode ser tão ruim que só surge uma a cada mil anos. Ela cria receitas poderosas para passar na certificação e que podem enganar mesmo auditores mais experientes.

Empresa-Boitatá: Come os olhos dos auditores para que não vejam nada. Deixa um rastro de fogo que queima as evidências de não conformidades. Se um consultor tentar fazer um bom trabalho lá, ou fica cego ou fica louco.  Para se livrar de uma empresa-Boitatá, você tem que se fingir de morto.

Empresa-Boto Cor de Rosa: É muito sedutora. Promete condições de trabalho e carta branca, de forma que você se apaixona enlouquecidamente. Muitas delas aparecem sempre nos seus processos seletivos. Cuidado! A tendência é que o abandonem depois da contratação, sozinha (ou sozinho), para cuidar do SGSA, que é o fruto desta união. A empresa-Boto Cor de Rosa também seduz auditores, com o único objetivo de conseguir um certificado. Depois disso, podem abandonar o organismo certificador e trocar por outro “melhor” no próximo ciclo.

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Plant-based food: será que as carnes vegetais são seguras?

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O mercado de alimentos está avançando de forma considerável e já é possível ver todo tipo de alimento à base de plantas nas gôndolas das grandes redes. Grandes conglomerados produtores de carne bovina também já se renderam e montaram linhas de alimentos plant-based.

Inúmeras marcas e tipos de imitação de carnes de origem vegetal estão surgindo e já são consumidas por um número cada vez maior de pessoas. Aí vem a pergunta: será que estas carnes são seguras?

Uma pesquisa realizada pelo GFI (Good Food Institute) realizada em 2020 identificou que metade das pessoas já reduziu seu consumo de carne nos últimos 12 meses. Apesar disso, o consumo de proteína de origem animal ainda é bastante alto, independentemente da categoria.

Outro estudo realizado em 2018 no Canadá mostrou que metade dos canadenses estão procurando consumir produtos alternativos à carne e o interesse dessa nação só cresce desde então.

Os consumidores estão buscando alternativas para a carne, embora apenas cerca de 1% deles tenha de fato abandonado este hábito por completo.

 

O que leva o consumidor a escolher o plant-based food?

  • Saudabilidade: os consumidores relacionam o consumo de produtos à base de vegetais como sendo mais saudável.
  • Questões ambientais: muitos consumidores acreditam que os alimentos plant-based causam menor impacto ao meio ambiente devido à sua forma de produção.
  • Curiosidade: muita gente tem curiosidade de conhecer o sabor dos hambúrgueres vegetais ou dos iogurtes plant-based. Com isso, a curiosidade é uma grande motivação de compra.
  • Diversificação: com a nova tecnologia, o consumidor final hoje tem uma opção diferente para o consumo de proteína sem depender apenas de produtos de origem animal.

Esse mercado nos leva a algumas reflexões:

  1. Esses produtos são modismo ou vieram para ficar?
  2. Quais as vantagens do consumo destes produtos em termos nutricionais?
  3. São realmente melhores para o meio ambiente do que as carnes reais?
  4. Os alimentos plant-based são considerados mais naturais ou ultraprocessados?
  5. Esses produtos são seguros?

1. Ao que tudo indica vieram para ficar e as pesquisas indicam que haverá crescimento expressivo neste mercado ao longo dos próximos anos. Segundo informações do GFI (The Good Food Institute), o mercado global desse segmento está estimado entre US$ 100 bilhões a US$ 370 bilhões até 2035.

2.  Não confunda dieta plant based com alimento plant based. Na dieta recomenda-se o consumo de alimentos vegetais sem processamento ou minimamente processados, enquanto as carnes plant based são processadas e portanto apresentam maior numero de ingredientes, aditivos e conservantes.

3. Essa pergunta é bem complexa e ainda não há uma resposta definitiva. Levando-se em conta a área necessária para a produção animal aqui no Brasil, sim, ainda usamos grandes extensões, mas para produzir a soja (ingrediente muito utilizado nos alimentos plant-based) também se usam grandes áreas e adicione-se a isso o uso de agroquímicos, transgênicos, etc.

4. A maioria dos estudiosos sobre o assunto considera este alimento ultraprocessado, uma vez que a necessidade de apresentar características semelhantes à carne de origem animal exige a utilização de mais ingredientes e processos industriais.

5. Aqui vou me demorar um pouco para responder, e faço um convite para refletirem comigo:

Primeira questão – Quais ingredientes são utilizados?

Para determinar se um alimento é seguro ou não, é preciso conhecer sua composição. As proteínas alternativas utilizadas geralmente são as de soja, do trigo ou glúten. Esses elementos formam a base, enquanto outros são adicionados ou alterados para criar o produto final.

A escolha dos ingredientes tem entre outras funções proporcionar benefícios nutricionais, mas também simular sabores, textura, cores, suculência, aspecto marmóreo e até a sensação de sangue da carne. Para isso são utilizados diversos ingredientes, como trigo, feijão, aveia, maçã, beterraba, etc.

Para se ter uma ideia da diversidade, a leg-hemoglobina (proteína extraída da raiz da soja) tem aspecto e função de imitar o sangue da carne. O dióxido de titânio (de origem mineral) é usado para iluminar e dar a aparência de carne de frango nesses alimentos. Extratos de leveduras, açúcares e especiarias podem ser utilizados para melhorar a palatabilidade, já que esse é um grande desafio quando se trata de alimentos plant-based. Vitaminas e minerais também podem ser utilizados para compensar deficiências nutricionais. Ácidos orgânicos ou compostos de fosfato têm como função aumentar o prazo de validade.

A que tipo de processamento são submetidos?

Algumas carnes passam pelo processo de extrusão que submete os produtos a altas temperaturas e altas pressões para facilitar a moldagem e a textura do produto, além de reduzir a carga microbiana da massa. Os produtos alimentares fabricados por extrusão têm geralmente um elevado teor de amido.

Esses alimentos apresentam alguns desafios aos profissionais da área:

  • Presença de riscos físicos, químicos e biológicos: qualquer alimento pode conter perigos potenciais e eles devem ser bem avaliados
  • Criação de novos alérgenos: proteínas de ervilha, por exemplo, usadas em substitutos de carne altamente processados podem desencadear alergias a amendoim em algumas pessoas
  • Introdução de contaminantes: o consumo repetido de novas proteínas pode ser tóxico a longo prazo, porém isso ainda requer estudos mais aprofundados
  • Presença de elementos transgênicos: embora a pesquisa da GFI (The Good Food Institute) tenha identificado que isso não é um problema para o consumidor, é preciso lembrar que pessoas que são contra o consumo de OGM devem estar atentas aos rótulos.
  • Presença maior de aditivos e coadjuvantes artificiais: muitos aditivos são utilizados para melhorar os aspectos e imitar a carne de origem animal. Produtos com menor quantidade de ingredientes tendem a apresentar sabor bem diferente do de carne.
  • Desafios de legislação: a tecnologia evolui muito rápido e neste caso as regulamentações vão surgindo depois. O Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) iniciou este ano a discussão sobre o tema a fim de criar subsídios para regular este mercado.

Possivelmente, o desafio mais preocupante sejam os  alérgenos desconhecidos presentes nas imitações de carnes. A soja e o trigo são dois dos alérgenos comuns. Leguminosas como grão de bico e ervilha também estão fortemente associados a alergias.

Como as alternativas à carne usam proteínas concentradas isoladas, ao comer um desses produtos, o consumidor poderia inadvertidamente consumir uma dose muito maior de um alérgeno do que comeria em um alimento inteiro.

Como deve ser realizado o preparo deste produto?

Os riscos de comer carne crua ou mal passada estão bem documentados. O mesmo não pode ser dito para carnes de imitação, mas ainda assim devem ser bem cozidas (de acordo com as especificações do fabricante) porque legumes, grãos e vegetais podem ficar contaminados com bactérias patogênicas, então cozinhá-los bem é importante para a segurança.

Carnes à base de vegetais não devem ser tratadas como carne

Os consumidores e as empresas não devem tentar substituir a carne por algo que simplesmente não seja carne, ou tratar esses produtos como uma substituição exata. Não se deve presumir que as não-carnes são necessariamente mais seguras do que a verdadeira carne. Não há uma resposta simples para saber se as carnes vegetais são mais arriscadas do ponto de vista da segurança do que as carnes reais, já que nenhum estudo de longo prazo foi realizado.

As embalagens e rótulos devem apresentar os dados com clareza para evitar induzir o consumidor a erro, achando que este produto é igual à carne. Os ingredientes e a presença de alérgenos deve ser adequada e seguir as recomendações da legislação.

Para o consumidor, a dica é ler os ingredientes e analisá-los, observando principalmente a quantidade de gordura, sódio e açúcar e todo tipo de elementos desconhecidos.

Estes produtos podem sim ser considerados seguros. Como todo produto industrializado, ele está sujeito a falhas e por isso é importante buscar alimentos que demonstrem ter controle de qualidade, processos bem definidos e clareza na descrição do rótulo. Produtos “artesanais” são seguros desde que apresentem credenciais e controle de qualidade, porém é claro que aqueles feitos sem controle e acompanhamento profissional correm mais risco de apresentar problemas, uma vez que a legislação ainda não está bem clara sobre o tema e com isso a fiscalização ainda precisa avançar.

Referências:

https://gfi.org.br/wp-content/uploads/2021/02/O-consumidor-brasileiro-e-o-mercado-plant-based.pdf

https://www.foodsafety.ca/blog/plant-based-meats-food-safety-risk

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/21/nao-se-engane-mesmo-parecendo-saudavel-carne-vegetal-e-ultraprocessado.htm

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/21/nao-se-engane-mesmo-parecendo-saudavel-carne-vegetal-e-ultraprocessado.htm

https://laiob.com/blog/o-mercado-de-carne-vegetal-no-brasil/

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Entrevista com o colunista André Pontes

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O Food Safety Brazil é composto por um time incrível de colunistas que se dedicam a compartilhar conhecimento apresentando conteúdos riquíssimos sobre segurança dos alimentos. Como forma de homenagear cada um deles e para que os leitores tenham a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre esses profissionais, fizemos uma série de posts-entrevistas, nos quais os especialistas do blog fazem perguntas sobre a área específica de atuação dos entrevistados e suas experiências. Neste post, o entrevistado é André Pontes.

André está conosco desde 2018. Ele é formado em engenharia de produção e também é técnico em Química. André atuou por 10 anos na empresa Unilever na área de Alimentos e Personal Care e em grandes marcas como Kibon e Lux e no Sistema de Gestão da Segurança de Alimentos na empresa Perfetti Van Melle. Ele tem experiência na implementação da norma ISO 22000:2005, Controle de Qualidade, Gestão de Indicadores, Key User em SAP QM, Green Belt em Lean Six Sigma e possui cursos de auditor interno da FSSC 22000:2005.

Food Safety Brazil: André, o que funciona e o que não funciona na hora de fazer comunicação com o chão de fábrica?

Penso que a intensidade quanto à clareza e propósitos sobre o que está sendo comunicado é diretamente proporcional à aceitação e adoção da mensagem.

Na correria do dia a dia é comum que uma mensagem seja replicada às pressas. Logo, quem comunica e tem propriedade sobre a informação às vezes pode não se atentar de que quem recebe a informação ainda não tem o domínio sobre o assunto e pode não entender a real necessidade do que foi comunicado. O que é muito óbvio para alguém não é necessariamente óbvio para outra pessoa.

  • Por que eu não posso ter alimento no armário pessoal?
  • Por que tenho que lavar as mãos para entrar na fábrica se acabei de lavá-las ao sair do banheiro?
  • Por que preciso fechar as portas da minha linha se eu passo por ela a toda hora com o palete?

Pelas minhas experiências, ressaltar o motivo e moldar a informação para cada público fizeram total diferença no entendimento e engajamento das pessoas.

Food Safety Brazil: Quais as suas ferramentas de gestão favoritas?

Busco sempre me atualizar nas diversas gamas de possibilidades existentes, desde as clássicas como Ishikawa, 5W2H, passando pelas metodologias de Lean manufacturing, A3, TPM, WCM até ás ágeis como Design Thinking, Scrum, Sprint.

Cada ferramenta tem sua particularidade e melhor uso/aplicação, assim como “para um parafuso o ideal é o uso de uma chave de fenda e para um prego o ideal é um martelo”.

Entre as minhas ferramentas favoritas destaco o Diagrama de Pareto. Depois da primeira análise e com o gráfico já finalizado, naturalmente você consegue visualizar os pontos-chaves para ação. Particularmente, vejo que o Pareto está além disso, pois podemos pegar esse “primeiro problema” e desdobrar suas prováveis causas em causas menores, estratificando os problemas em um segundo nível formando novos diagramas que nortearão outras frentes de ação e assim sucessivamente.

Food Safety Brazil: Qual o maior desafio que você já encontrou na indústria de alimentos? Qual foi a sua maior dificuldade?

Destaco aqui implantações que alterem mudanças de hábitos, como por exemplo, uma manga curta que foi alterada para manga longa, uma utilização de touca em um local onde anteriormente não era necessário, um lava-botas recém-instalado onde não existia.

A implantação tende a ser facilitada ou dificultada conforme a maturidade sobre qualidade na empresa. Quanto mais a qualidade ultrapassar a linha de “departamento” para se consolidar em valores, mais vejo que produzir pode ainda ser prioridade, mas com a premissa indiscutível de um produto com qualidade e seguro para consumidores e clientes.

Food Safety Brazil: A dúvida que sempre tenho em outras indústrias é como é a real conduta da alta direção. Como eles participam na prática dos processos de segurança de alimentos?

Sob o meu ponto de vista, a conduta da alta direção interfere diretamente na cultura de segurança dos alimentos na empresa. Cito alguns perfis:

  • Lideranças com forte posicionamento em qualidade e segurança dos alimentos e que atuam diretamente em campo, executores práticos que buscam investimento para melhorias, cobram resoluções, realizam eles mesmos as auditorias em time e buscam ações imediatas.
  • Lideranças indiretas que apoiam a causa embora dividam sua autoridade com outras frentes. Eles estão dispostos a contribuir com você, mas o orçamento é balanceado entre todos e as ações entram em uma fila de planejamento de execução.
  • Lideranças que não entendem o valor da segurança dos alimentos, mas acreditam em você por sua posição e argumentos. O investimento e ações também entram em uma fila de planejamento de execução.
  • Lideranças que não entendem e focam outras frentes. A argumentação se faz necessária de modo intenso para que suas necessidade não acabem paradas ou esquecidas.

Food Safety Brazil: Quais semelhanças e diferenças são mais marcantes entre as culturas de organizações Personal Care e de Alimentos? Há aprendizados para nossa indústria?

São universos nem tão distintos assim, salvo a terminologia segurança dos alimentos. Vivenciei na prática estas experiências.

Consultando as legislações da categoria de personal care como a RDC Nº 48 de 2013 sobre boas práticas de fabricação é possível verificar várias semelhanças com a RDC Nº 275 de 2002, sobre infraestrutura, capacitação, limpeza, armazenagem, entre outras.

Como ponto de vista pessoal, reafirmando uma percepção minha, vejo que na indústria de personal care e principalmente quando entramos na cosmética, o conceito de validação de processos, equipamentos é bem acentuado. Usam-se programas e protocolos em diversas fases e abrangências como: Qualificação de Projeto (QP), Qualificação de Instalação (QI), Qualificação de Operação (QO), Qualificação de Desempenho (QD). Esse universo da validação pode fornecer muito aprendizado para o segmento alimentício e se alinha com as diretrizes de projeto sanitário. Por outro lado, o estudo de APPCC da indústria alimentícia pode ser aplicado ao segmento de personal care realizando alguns ajustes interpretativos e preservando a segurança do consumidor.

Quer conhecer mais sobre as experiências do colunista André? Veja aqui os posts que ele já publicou no Food Safety Brazil!

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O que você conhece sobre expurgo em alimentos?

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Da dúvida de um leitor, surgiu a ideia deste post sobre expurgo em farinha de trigo e em outros produtos acabados. Sei que, na prática, as empresas fazem e que isso não tem regulamentos específicos. Conhecia apenas em grãos, mas existem alguns produtos químicos, como fosfina, com registro para farinhas sim! Então surgem as questões: como demonstrar a segurança desse procedimento para o alimento? A taxa de absorção não será maior na farinha ou no farelo, que tem maior área de contato do que em grãos, assim a dosagem não deveria ser validada? Para produto acabado, não se configura como fraude por alteração? Se o produto acabado foi devolvido e está contaminado, é considerado impróprio, pode ser expurgado e vendido novamente?

O raciocínio da dosagem é o mesmo usado para outros pesticidas (pensando em perigos químicos). O produto tem registro para a finalidade, mas para tratamento de farinha, antes do uso, na formulação da massa, calculado por volume de farinha nos big bags ou silos. Transforma-se de sólido diretamente para gás e não deixa resíduos, desde que obedeça ao prazo total do tratamento, podendo-se analisar em diferentes tempos de aeração, justamente para acompanhar esta queda.

É habitual e recomendado em bulas, para aplicações em grãos, nos moinhos, atendendo os 5 a 7 dias (128 h) de tratamento. A questão dos 5 dias, o menor período, é muito relativa. Para conseguir o tratamento deverá ser em uma temperatura média de 25ºC. Mas no inverno, em determinadas regiões do país, a temperatura é inferior e isso deve ser considerado no tempo de carência, que aumenta, devendo ficar mais tempo nesta situação mais fria.

Na prática, vejo fazerem o expurgo em 3 dias e garantem eliminação de insetos pela medida adicional que é o plansichter (plansifter) e que param, após o expurgo, uns 4 dias, limpam, deixam dissipar o gás e montam as tubulações novamente nos moinhos de farinha. Fazem recirculação posterior nos silos para garantir a volatização, pois mesmo após os 5 dias, fica um odor, mas que depois que vai para o mercado, através de sensorial percebe-se que não tem mais. Uma fábrica em que já fui fez apenas uma vez a análise seguindo a monografia da Anvisa e com resultado satisfatório e depois não fez mais, considerando como validado.

Outro aspecto importante é que quando ocorre devolução de mercado, os moinhos destinam para indústria de cola e não alimentícia, assim não há porque a preocupação com o atendimento à RDC 14 no produto final.

Compartilhe conosco a sua experiência e referências sobre este tema!

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Microplásticos e nanoplásticos em alimentos: como o apoio à ciência auxilia profissionais a avaliar um novo perigo

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Os microplásticos e nanoplásticos em alimentos foram mencionados pela primeira vez como uma questão potencial de segurança de alimentos pela EFSA em um de seus grupos internos de discussões técnicas (EFSA’s Emerging Risks Exchange Network), que é composto por especialistas nacionais de segurança de alimentos. Com base neste trabalho, o Instituto Federal Alemão de Avaliação de Riscos (BfR) solicitou uma análise pela EFSA e em 2011, o Comitê Científico da EFSA publicou guias sobre nanociências e nanotecnologias na cadeia produtiva de alimentos.

Mas o que são microplásticos e nanoplásticos?

A EFSA define microplásticos como pedaços de compostos plásticos que variam de tamanho entre 0,1 a 5000 micrometros (µm), ou de até 5 milímetros para se ter uma melhor ideia.

Há dois tipos de microplásticos:

– microplásticos primários: são plásticos que foram originalmente fabricados para serem desse tamanho

– microplásticos secundários: têm origem na fragmentação de itens maiores, por exemplo, detritos plásticos.

Já os nanoplásticos são pedaços que medem entre 0,001 a 0,1 µm (ou seja, de 1 a 100 nanômetros).

 E qual o real impacto global dos resíduos plásticos nos mares, rios, lagos etc. na segurança dos alimentos?

Dr. Peter Hollman e um grupo de trabalho do ‘Painel sobre Contaminantes na Cadeia de Alimentos (CONTAM)’ da EFSA (European Food Safety Authority) publicaram um estudo sobre partículas microplásticas e nanoplásticas em alimentos. Nesse estudo a EFSA analisou exaustivamente a literatura existente sobre este tópico e revelou que os nanoplásticos requerem atenção especial já que foram identificadas lacunas de dados, conhecimentos, necessidades de recomendações futuras e pesquisas para combatê-los.

Não é novidade para ninguém que existem flutuando nos oceanos de nosso planeta uma grande quantidade de plásticos do tamanho de um país como a França e que esse lixão plástico está constantemente se degradando nos mares em partículas cada vez menores.

Devido a isso, a principal preocupação em relação aos microplásticos e nanoplásticos está no ambiente marinho. Porém, os peixes apresentam altas concentrações principalmente em seus estômagos e intestinos, esses são geralmente removidos e os consumidores não são expostos a eles de forma direta. Já em crustáceos e moluscos bivalves, como ostras e mexilhões, os seres humanos ingerem seu trato digestivo e podem ter alguma exposição a eles. Os microplásticos e nanoplásticos também foram encontrados em mel, cerveja e sal de cozinha.

Geralmente, quando as partículas plásticas se decompõem, elas ganham novas propriedades físico-químicas, aumentando o risco do seu efeito tóxico sobre os organismos.

Uma preocupação potencial em relação aos microplásticos e nanoplásticos é que eles estão entrando na cadeia alimentar através das altas concentrações de poluentes como: bifenilos policlorados (PCBs) e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (PAHs) que podem se acumular nos microplásticos, bem como os resíduos de compostos utilizados em embalagens como o bisfenol A (amplamente conhecido como BPA).

Os efeitos desses químicos são especialmente problemáticos na fase de decomposição. Aditivos como ftalatos e bisfenol A (BPA) lixiviam-se das partículas plásticas. Estes aditivos são conhecidos por seus efeitos hormonais e podem perturbar o sistema hormonal tanto de vertebrados quanto de invertebrados. Além disso, partículas de tamanho nanométrico podem causar inflamação, atravessar barreiras celulares e até mesmo atravessar membranas altamente seletivas como a barreira hematoencefálica ou a placenta. Dentro da célula, elas podem desencadear mudanças genéticas e reações bioquímicas, entre outras coisas. Alguns estudos sugerem que, após o consumo de microplásticos em alimentos, estas substâncias podem se transferir para os tecidos. Portanto, é importante estimar a sua ingestão média.

Entretanto, a contaminação não é focada somente nos mares. Estudos estimam que um terço de todos os resíduos plásticos vão parar nos solos ou na água doce. Ela pode se originar de outras fontes de contaminação. Ela também pode vir através do solo, já que é muito baixa a porcentagem de plástico que descartamos diariamente e que é reciclado ou incinerado em instalações de resíduos para a produção de energia. A grande maioria dele acaba em aterros e pode levar até 1.000 anos para se decompor. Por lixiviação, essas substâncias potencialmente tóxicas contaminam o solo e a água. Os microplásticos podem até ser encontrados na água da torneira.

Pesquisadores alemães já alertaram que o impacto dos microplásticos nos solos, sedimentos e água doce é muito maior do que a poluição por microplásticos marinhos – estimada de quatro a 23 vezes maior, dependendo do local.

A contaminação também pode vir através de estações de tratamento de efluentes. Como subprodutos desse esgoto são frequentemente aplicados na agricultura como fertilizante, essas milhares de toneladas de microplásticos acabam na superfície terrestre anualmente.

Além disso, um artigo do Science Daily menciona que as superfícies de pequenos fragmentos de plásticos podem carregar organismos causadores de doenças e atuar como vetor de doenças no meio ambiente.

Conclusão

Falta uma definição inequívoca e internacionalmente reconhecida para microplásticos e nanoplásticos.

A EFSA analisou exaustivamente a literatura existente sobre este tópico e concluiu que não existem dados suficientes sobre a ocorrência, toxicidade e destino – o que acontece após a digestão – destes materiais para uma avaliação completa dos riscos. Por exemplo: ainda não há informações sobre o efeito do processamento de alimentos contendo microplásticos.

Os métodos analíticos disponíveis são limitados para identificação e quantificação de microplásticos. Não há métodos disponíveis para nanoplásticos.

Os dados disponíveis sobre a ocorrência de microplásticos em alimentos são limitados a peixes, bivalves, crustáceos, mel, cerveja e sal. Não há dados sobre nanoplásticos em alimentos.

Entretanto, sabemos que os nanoplásticos podem ser produzidos durante a fragmentação de detritos microplásticos e podem originar-se de material de engenharia utilizado, por exemplo, em processos industriais.

Sabemos que as nanopartículas projetadas (de diferentes tipos de nanomateriais) podem entrar nas células humanas, portanto trazer consequências para a saúde humana. Mas são necessárias mais pesquisas e dados para mensurar esses efeitos a longo prazo.

A EFSA ainda não estimou uma ingestão média diária para nanoplásticos, mas mesmo com os dados limitados disponíveis, estimou que uma porção de mexilhões (225g) poderia conter 7 microgramas de microplásticos. Mesmo que esta quantidade de material contivesse a maior concentração de PCBs ou BPA jamais medida, por exemplo, faria uma pequena contribuição para a exposição global a estas substâncias: aumentaria a exposição a PCBs em menos de 0,006%, PAHs em menos de 0,004% e bisfenol A em menos de 2%. Mas este é o pior cenário possível.

Somente microplásticos menores que 150 µm podem translocar (definição genética = mutação em que um fragmento do cromossomo é deslocado para outra posição dentro do genoma) através do epitélio intestinal causando exposição sistêmica. Espera-se que a absorção desses microplásticos seja limitada (menor que 0,3%).

– Somente a menor fração (tamanho < 1,5 µm) pode penetrar profundamente nos órgãos.

Concluindo, ainda é muito cedo para afirmar que os microplásticos e nanoplásticos sejam prejudiciais aos consumidores, mas parece improvável pelo menos para os microplásticos. São necessárias mais pesquisas e dados, sendo importante estimar a ingestão média para seres humanos.

As recomendações da publicação do Dr. Peter Hollman podem ajudar a comunidade científica a construir um quadro mais claro. A pesquisa deve gerar dados sobre a ocorrência de microplásticos e especialmente nanoplásticos em alimentos, seu destino no trato gastrointestinal e sua toxicidade. O conhecimento sobre a toxicidade dos nanoplásticos é particularmente necessário porque estas partículas podem penetrar em todos os tipos de tecidos e eventualmente acabar em células. O estudo também propõe métodos analíticos padronizados para ajudar no monitoramento.

Vejam a importância de se ter entidades presentes, atuantes e sérias no compromisso com a segurança de alimentos para dar suporte aos órgãos públicos e consumidores, assim como a EFSA.

O investimento governamental ou privado em pesquisadores e na ciência abre a oportunidade para a discussão dessas e de outras questões entre especialistas em segurança de alimentos e de outras disciplinas científicas, ajudando na análise e a enxergar os problemas de diferentes perspectivas. Isso permite a nós, profissionais do setor, ter uma visão mais adequada dos problemas emergentes de segurança de alimentos, dando-nos mais subsídios técnicos e científicos para uma adequada tomada de decisão.

Autor convidado: Maurício Kamei

Imagem: Climainfo.org.br

Referências:

(1) EFSA: Microplastics and nanoplastics in food – an emerging issue | European Food Safety Authority (europa.eu)

(2) Programa ambiental das Nações Unidas: Plastic planet: How tiny plastic particles are polluting our soil (unep.org)

5 min leituraOs microplásticos e nanoplásticos em alimentos foram mencionados pela primeira vez como uma questão potencial de segurança de alimentos pela EFSA em um de seus grupos internos de discussões técnicas […]

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A doença da vaca louca está mesmo de volta?

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Em 3 de setembro de 2021, por meio do Ofício Circular nº 67/2021 / DIPOA / SDA / MAPA, foi estabelecida a suspensão provisória e cautelar da Certificação Sanitária Internacional para a carne bovina brasileira a ser exportada para a República da China a partir do dia 4 de setembro.

Da mesma forma, o MAPA confirmou a ocorrência de 2 casos de encefalopatia espongiforme bovina (EEB) atípica em frigoríficos de Nova Canaã do Norte e de Belo Horizonte, esclarecendo que se trata de EEB atípico para diferenciá-la do EEB clássico. O MAPA esclareceu, ainda, que a OIE (Organização Internacional de Epizootias) exclui a ocorrência de casos de EEB atípica como risco de status sanitário do país, mantendo assim a classificação do Brasil como país de risco insignificante para esta doença.

Em 2013, o Food Safety Brazil já havia falado sobre a doença da vaca louca. Veja aqui. Vamos relembrar e reforçar os aspectos e conceitos mais importantes sobre este assunto.

Escopo: Existe um grande grupo de doenças que fazem parte das encefalopatias espongiformes que afetam animais e humanos. Neste artigo, vou me referir apenas à EEB (comumente conhecida como doença da vaca louca) e à nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob.

O que é a encefalopatia espongiforme bovina e qual é o seu agente etiológico?

A EEB faz parte das doenças espongiformes transmissíveis. É uma doença neurológica degenerativa crônica, não febril, que afeta o sistema nervoso central. Provoca a morte em bovinos e constitui um risco potencial para o homem. O período de incubação é longo e podem decorrer anos até o aparecimento dos sintomas clínicos.

“O quadro clínico em bovinos é neurológico, progressivo, debilitante e fatal e o agente infeccioso não induz uma resposta imune no hospedeiro”

Após observação microscópica do cérebro, o tecido parece esponjoso.

O agente etiológico foi inicialmente assumido como um vírus com comportamento diferente de outros vírus conhecidos, até que se determinou que se tratava de uma nova forma de agente infeccioso denominado “príon”. O príon é uma partícula de proteína com características infecciosas, desprovida de ácido nucleico. Vários tipos de príons são conhecidos por causar doenças infecciosas, como scrapie em ovelhas, EEB em bovinos e doença de Creutzfeldt-Jacob no homem. Esta última se tornou uma preocupação para a saúde pública global e foi reconhecida como uma nova zoonose. Aparentemente, o príon dentro da célula do sistema nervoso central (neurônios) usa o ácido nucleico do hospedeiro para sua replicação.

“Algumas doenças infecciosas emergentes, como o príon bovino que causa a EEB e a doença de Creutzfeldt-Jacob em humanos têm seu modo de transmissão através dos alimentos e a causa é o consumo de carne contaminada ou alimentos feitos com ela”

A Organização das Nações Unidas, por meio da FAO, está desenvolvendo um projeto de cooperação técnica regional que envolve países da América Latina (incluindo o Brasil), cujo objetivo é fortalecer os serviços veterinários de prevenção da EEB para garantir a segurança dos produtos. Em 1986, a doença foi reconhecida no Reino Unido e, desde então, medidas foram tomadas para reduzir o risco. Mas em 1996 uma nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob foi detectada em humanos, cujo agente causador é um príon muito semelhante ao que ataca o gado. Posteriormente, foi confirmado que se trata de uma zoonose. A EEB foi detectada em 14 países europeus, tornando-se um problema zoosanitário e de saúde pública em todo o mundo.

“Com isso, toda a cadeia produtiva da carne bovina está sob o controle dos serviços veterinários, com grande repercussão econômica regional e na saúde pública”

A doença de Creutzfeldt-Jacob foi descrita pela primeira vez em humanos há 100 anos e geralmente aparece após os 60 anos de idade. É caracterizada por demência e perda de coordenação motora e é causada por um gene que codifica a proteína PrP.

Nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob: Em 1996, foi publicado um estudo sobre o risco crescente de transmissão do príon da encefalopatia espongiforme bovina para humanos, estabelecido como uma nova variante da doença de Creutzfeldt-Jacob. Esta doença foi diagnosticada em pacientes jovens (20 a 30 anos) e mostrando lesões cerebrais na biópsia. Como a doença é contraída em humanos? Os humanos podem contrair uma variante da EEB ao comer alimentos feitos de partes bovinas contaminadas com o príon.

Sintomatologia em bovinos: O gado adoece com rações alimentadas artificialmente com partículas de animais contaminadas com o príon da EEB. Geralmente são animais alimentados em currais com concentrados contaminados de origem animal. Um animal doente tem dificuldade para andar e se levantar. O gado também pode agir muito nervoso ou violento. O período de incubação é geralmente de 6 anos  em média. Não existe tratamento ou vacina para prevenir a doença.

Encefalopatia Espongiforme Bovina Atípica: Deve-se notar que existem 2 tipos de EEB. Um chamado de clássico e outro de atípico. Este último é mais raro e ocorre espontaneamente, geralmente em animais de 8 anos de idade ou mais. Os primeiros casos atípicos foram notificados em 2004. O agente causador apresentou alteração no peso molecular, além de outras variantes em relação ao agente da forma clássica e as manifestações clínicas são diferentes. Por se tratar de uma variante da doença, estudos estão em andamento para determinar sua etiologia (agente causal), epidemiologia e seu potencial zoonótico.

Prevenção: Proibir que certas partes dos animais sejam utilizadas na alimentação do gado, especialmente aquelas correspondentes ao sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal), pois são consideradas de alto risco. Em alguns países, o uso de partes de animais é proibido, sem exceção, para alimentar o gado. A restrição da alimentação dos rebanhos com subprodutos de origem animal e a destruição nos frigoríficos das carcaças que constituam risco.

“Ao manter a alimentação do gado em segurança, as pessoas também estão protegidas contra a doença. Com animais saudáveis, não há probabilidade de infecção em humanos”

Considerando uma possível origem espontânea e esporádica da forma atípica, é possível que persista em rebanhos bovinos mesmo após a erradicação da forma clássica. Até o momento, não foi possível estabelecer uma relação entre a forma atípica e a doença em humanos, embora isso requeira mais pesquisas. Por esse motivo, o estado da sanidade do gado no Brasil provavelmente continuará favorável, sob risco desprezível.

 

Fontes:

http://www.fao.org/3/ah496s/ah496s.pdf

https://www.scielo.br/j/aib/a/qfY8gBkGY57pYLZFZ7SCTCK/abstract/?lang=pt#

https://www.scielo.br/j/aib/a/qfY8gBkGY57pYLZFZ7SCTCK/?format=pdf&lang=pt

https://www.fda.gov/animal-veterinary/animal-health-literacy/todo-sobre-eeb-enfermedad-de-las-vacas-locas

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Zero não conformidades ou olhos fechados? Eis a questão!

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Tenho recebido questionamentos constantes, por parte de gestores sérios de algumas empresas – que entendem o que é não conformidade e que ela leva a melhorias dos processos –  sobre o que acho da onda de postagens no LinkedIn de zero não conformidades (NC) em auditorias e resultados AA+ ou AA para uma das normas reconhecidas pela GFSI.  Esta reflexão me faz pensar se é possível fazer um trabalho de qualidade, avaliando bem todos os critérios da auditoria, fazendo um bom plano amostral, com sequência lógica em tão curto período de tempo do evento. Não é apenas “para inglês ver” ou um preenchimento de checklist/relatório?

Lembro de uma bela frase adaptada de Paul Gerard Hawken: “A boa auditoria é a arte de tornar as não conformidades tão interessantes que todos queiram ser parte das ações corretivas”. Como isso ficaria nestes casos?

Será a pressão gerada no sistema, para o auditor e para a equipe, a razão da condução para as comemorações que vemos explodir nas mídias sociais? É como não ser possível errar ou receber críticas, ter a obrigação pela perfeição. E aí se começa a negociação para NC virar oportunidade de melhoria (OM) ou uma NC Maior virar uma NC Menor. Sou bem crítica a Zero Não Conformidades! Acho bobagem uma empresa querer pautar seu sucesso pelo número de NC que recebe. Perdem a chance de melhorar de verdade, porque o que fazem pode ser esconder suas falhas conhecidas do auditor. Ainda mais que o processo é amostral… podem ter passado em algumas auditorias com determinado enfoque e depois vem algum outro olhar e aí a casa cai.

Por outro lado, tem-se escutado cada vez mais que a culpa é do auditor. Será que não estão existindo muitas falhas? Muitas “querências”, muita superficialidade e muito “ar condicionado”? Estariam entrando em um ciclo perigoso já visto: “Me engana que eu gosto”? Profissionais, reflitam!

A alta direção das empresas sempre se vangloria de passar nas auditorias com tanta tranquilidade, mesmo porque dedica-se pouco tempo para avaliar processos das áreas administrativas e todas as recomendações feitas pelas consultorias caem por terra.

O organismo certificador (OC), como parte interessada no Sistema de Gestão das empresas, também deve ser questionado, pois se o próprio OC define regras e tem várias necessidades, além do “negócio”, prazo de intervalo de auditoria interna e análise crítica, uso da logomarca, prazo para tratamento das NC e o uso de canais de apelação.

E quando alguém precisa do AA para ser promovido? Será que a cultura de segurança de alimentos tem esperança, mesmo neste ambiente de cultura nula? Claro que sim! E acredito que estamos sempre formando uma massa crítica que pode reagir a tudo isso, fazendo sentido, sendo bons pelo propósito.

Sugiro que a gente aprenda a lidar com todas estas variantes. Eu tenho encontrado muita gente que não quer mudar. E o “sistema” colabora com isso. Nosso desempenho pode melhorar muito. Anos fazendo só cumprimentos de requisitos e ensinando a passar na auditoria. Digo nós, como um todo, há algumas décadas. Importante reconhecer que erramos e aprender a forma certa. Até hoje há quem considere as certificações como um comércio de “selos”. É “fazer para parecer ser bom”. Já incentivamos, muitas vezes no passado e no presente, aos clientes selecionarem fornecedores com certificações como ISO 9001, ISO 22000, normas reconhecidas pela GFSI, etc. Isso fez com que a corrida pelo “selo” aumentasse e a certificação se tornasse um “diferencial”. Era mais fácil pedir que o OC cobrasse pelos processos do fornecedor durante a certificação do que as exigir que as empresas fizessem um trabalho mais aprofundado de seleção, com auditorias documentais e/ou em campo em seus fornecedores. E isso fomentou a ideia da certificação. E tenham certeza que as empresas certificadas, mesmo com estes questionamentos, são muito melhores do que a esmagadora maioria.

É bem triste isso. Vejo vários amigos que trabalham em indústria correndo semanas antes da auditoria ou de véspera “para colocar tudo em ordem” e ainda tiram sarro de mim, falando “você sabe como é, né? vocês são sempre bem enganados”. Na verdade, se enganam… e enganam a todos nós, os consumidores. Mas sabemos que existem “n” fatores atrelados ao desespero e práticas questionáveis durante este processo, porém devemos seguir firmes no nosso propósito e sempre seguir propondo soluções melhores do que as existentes hoje; que sejam viáveis de serem implementadas e que mitiguem os riscos, incluindo os de saúde pública, não apenas os do negócio (indústria de alimentos ou os elos da cadeia alimentar).

Temos um papel privilegiado como agente da mudança. Vamos ser influenciadores. Questionar certificadoras, os colegas auditores e os clientes. E porque não os recusar? Vejo muitas empresas “não querendo comprar briga” em caso de NC sem fundamento. Me lembra o caso do teste de gravidez para homens… acabam fazendo para não se aborrecer… Questionar não é para polemizar e sim para gerar reflexão.

E aí, caro leitor, você acha que a mentalidade de quem expõe “a felicidade e o sucesso” nas mídias sociais, usando as celebrações, os balões e os rojões, por passarem na auditoria com zero NC, mudou após este post?

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Nova diretoria do Food Safety Brazil inicia atividades com todo o gás

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O momento é de muita comemoração no Food Safety Brazil! A nova diretoria foi eleita em 26/08 e está ansiosa pelos novos desafios e cheia de gás.

Há alguns anos, um time muito especial vem se preparando para um processo de profissionalização e perpetuação do projeto.

Depois de quase uma década, o Food Safety Brazil terá pela primeira vez uma presidência que não a da fundação. Como contei aqui, no post Food Safety Brazil sob nova direção a partir de outubro, já havia um plano de sucessão em desenvolvimento. Por exemplo, a presidente eleita, Fernanda Spinassi é colunista desde 2014, sendo responsável pela tesouraria no período de 2014 a 2018 e desde então, vice-presidente.

Fernanda tem como proposta para este mandato, implantar a gestão descentralizada para as funções da diretoria do Food Safety Brazil. O plano é estruturar as atribuições primárias e secundárias dos cargos da diretoria da Associação para garantir que as novas funções tenham responsabilidades e autoridades claras para a execução das tarefas do dia a dia, agilizando os processos rotineiros da organização.

Uma função de total impacto e interface com tudo o que é publicado, é a da diretoria de conteúdo, assumida por Virgínia Mendonça. Além de todo trabalho cotidiano de acolher novos colunistas, acompanhar a revisão e o que se publica em mídias sociais, ela se propõe a organizar encontros com a equipe para harmonização de assuntos editoriais e brainstormings, além de trazer novidades como posts seriados. Sob seu comando direto, estão os prestadores de serviços de revisão e de mídias sociais.

Diretoria do Food Safety Brazil

 

Jacqueline Navarro, eleita vice-presidente, já foi secretária e conselheira fiscal e irá colocar as energias na comunicação por meio da Newsletter e também com um concurso de Melhores ONGs do Brasil. Ela foi responsável pela coordenação do primeiro livro publicado este ano pelo Food Safety Brazil, o Diálogos da qualidade.

Uma função antes absorvida pela presidência foi desmembrada em uma nova diretoria, a de Captação de Recursos. Nela, Aline Santana, que já foi conselheira fiscal e responsável pela interface com patrocinadores, adotará estratégias para as oportunidades de arrecadação, além de visar a profissionalização dos processos orçamentários, trazendo o conceito de budget como se faz nas empresas.

Vanessa Cantanhede, ativa no então Comitê Acadêmico de 2016-2017, que levou o Food Safety Brazil para universidades e trouxe conteúdos com esta finalidade, assume a função de diretora-secretária e as demandas que surgirem nesta jornada.

Nealina Vieitez já estava exercendo a função e seguirá como tesoureira, realizando um trabalho de continuidade de mandatos anteriores, sendo o mais recente o de José Luiz Bariani, que agora está no Conselho Fiscal. Ambos zelando pela transparência, continuidade e agilidade dos processos financeiros.

Estes diretores contam com o suporte de terceiros e realizam a gestão dos mesmos. Além disso, como apoio à gestão, a Associação contará com Cíntia Malagutti no papel de relações públicas. Eu, Juliane Dias, e todos os próximos ex-presidentes seremos membros permanentes do Conselho Administrativo.

Terceiros e apoio Food Safety Brazil

Os próximos dias serão de transição e alinhamentos para uma gestão exitosa dos sucessores.

É um privilégio para a comunidade de segurança dos alimentos ter esse time de feras no comando!

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Importância do controle de nível nos tanques para a segurança dos alimentos

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Inicialmente é interessante pensar que o controle de nível em tanques de processo está associado à Segurança de Alimentos. Com esse controle evita-se que o operador tenha que abrir várias vezes a tampa do tanque para acompanhar seu enchimento ou esvaziamento, o que pode ser origem de contaminações. Para algumas empresas pode até parecer prática normal que operador abra constantemente a tampa ou boca de visita do tanque para verificar o nível de produto dentro do tanque durante o processo. 

A operação com o tanque fechado evita contaminações:

  • Microbiológicas: por ar contaminado, tosses ou espirros
  • Físicas: por queda de objetos ou insetos
  • Químicas: por jatos ou gotejamento.

Para a realização da limpeza CIP adequada, o tanque deve ficar com o nível mais baixo possível, sem que a bomba de saída cavite. Contudo, algumas empresas têm sistemas antigos ou com conceito antigo, como leitura de nível por mangueira ou tubo transparente com régua para indicação de nível. Esses métodos podem ser simples e baratos, mas a higienização dos visores é difícil

Figura 1: Tanque com inadequado indicador de nível

Fonte: Autora

Em outras palavras, a falta de higienização eficiente facilita o crescimento de biofilmes nessas mangueiras ou tubos, o que pode ser observado pela presença de mofos ou escurecimento do material.

Os fabricantes de instrumentos oferecem várias opções em função da característica do processo, como por exemplo:

  • Controle de dosagem de ingredientes: células de carga nos pés dos tanques ou medidores de vazão nas linhas de adição nos tanques;
  • Monitoramento do nível durante a produção: sensores por radar, transmissores de pressão ou chaves de nível;
  • Controle de nível baixo para limpeza: chaves de nível, sensores de nível por radar ou transmissores de pressão;
  • Segurança para não transbordamento do tanque: chave de nível, transmissor de pressão ou sensor tipo radar.

É curioso ver que podemos controlar o nível por transmissão de pressão, mas isso requer atenção à(s) densidade(s) dos produtos ou ingredientes.

Os instrumentos podem estar ligados a painéis de controle com todos os equipamentos acionados em modo automático ou ter uma leitura digital local que possibilite a operação manual de forma fácil e segura.

Figura 2: Exemplo de instrumento com leitura que pode ser colocado em ponto desejado

Lembramos que é fundamental que as conexões sejam sanitárias para tanques para alimentos e bebidas. Essas conexões devem ser de fácil higienização e não podem conter pontos mortos, como por exemplo SMS ou outras conexões conforme o manual do EHEG.  Também deve-se respeitar as orientações de projeto sanitário. 

Em princípio, para a seleção dos instrumentos devem ser considerados:

  • dimensões do tanque,
  • densidade dos produtos,
  • etapas do processo,
  • temperaturas durante o processo,
  • viscosidade dos produtos, 
  • custos.

Finalmente, o controle de nível ajuda a segurança dos alimentos e a seleção deve ser feita por especialista e por uma equipe multidisciplinar com visão de todo o processo.

Referências e imagens:

Nicola, D. (2016). Os avanços tecnológicos dos transmissores de pressão, Revista Controle & Instrumentação n.216, páginas 50 e 51.

https://www.br.endress.com/pt/industrias/alimentos-bebidas-custo-qualidade/inline-quality-control-food-production

https://foodsafetybrazil.org/limpeza-tanques-alimentos-cuidados/

https://www.ehedg.org/

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Consumo de açaí e transmissão oral de doença de Chagas

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A doença de Chagas foi descrita em 1909 pelo médico brasileiro Carlos Ribeiro Justiniano Chagas. Passado tanto tempo desde sua descoberta, o problema ainda é frequente. Estima-se que cerca de 6 a 7 milhões de pessoas em todo o mundo, principalmente na América Latina, estejam infectadas pelo seu agente causador, o Trypanosoma cruzi. No Brasil, o problema é considerado pelo Ministério da Saúde como uma das condições parasitárias de maior carga no país, com casos registrados em todo o território e prevalência na região Norte. Estima-se que no Brasil, atualmente, existam pelo menos um milhão de infectados. Devido aos movimentos migratórios, associados com características climáticas, a doença tem sido relatada em diversas regiões do mundo, como Ásia e América do Norte.

Trata-se de uma doença tropical negligenciada, que tem duas fases distintas: aguda (logo após a infecção, que pode ou não ser aparente) e crônica, sendo que esta última pode apresentar-se assintomática (forma indefinida), ou com manifestações clínicas: cardíaca, digestiva ou mista. A maioria dos casos é diagnosticada na fase crônica, quando os parasitas já adentraram os tecidos cardíacos ou digestivos. Os sintomas nessa fase são relacionados a distúrbios neurológicos, do aparelho digestivo ou cardíacos. Em alguns casos, pode levar à morte. Um agravante é que atualmente seu tratamento é realizado com fármacos que são mais efetivos para a fase aguda da doença.

A transmissão clássica da doença de Chagas, da forma que foi identificada pelo médico brasileiro, é a denominada transmissão vetorial, ou seja, a que ocorre por meio de um vetor, um inseto popularmente conhecido como barbeiro. Essa transmissão se dá quando um barbeiro infectado pica uma pessoa, deixando no local da picada fezes (contaminadas com o parasita) que entrarão em contato com a corrente sanguínea da pessoa. Mas outras formas de transmissão também podem ocorrer: por transfusão de sangue, transplante de órgãos, acidentes de trabalho, materno-fetal e, por fim, a transmissão oral, com a ingestão de alimentos contaminados.

Até 2005 a forma de transmissão prevalente no Brasil era a vetorial, pela picada do barbeiro. A partir de então, e até hoje, a forma mais comum de infecção é a oral, com consumo de alimentos contaminados.

Com relação à regulação técnica de procedimentos para manipulação higiênico-sanitária de alimentos e bebidas preparados com vegetais, a ANVISA publicou a RDC 218/2005. O documento tem como objetivo promover a adoção de controles como forma de prevenir algumas doenças transmitidas por alimentos, entre elas a Doença de Chagas. No caso da doença, alimentos à base de açaí, em especial, representam potencial risco para a forma oral de transmissão, pois se observa falta de controle dos produtos comercializados.

Uma problemática no caso dos alimentos à base de açaí é o consumo doméstico e em pequena escala, o que dificulta a aplicação das boas práticas de higiene de alimentos. Somado a isso há o fato de que muitas pessoas têm o hábito de consumir o alimento in natura, alegando que qualquer tratamento altera seu sabor. E a produção artesanal em áreas endêmicas constitui um risco, pois alimentos e bebidas nessas áreas têm maior risco de contaminação com urina e fezes de vetores ou secreções de marsupiais infectados com o Trypanosoma cruzi. Nesses casos, as práticas de pasteurização ou de bom cozimento são indispensáveis.

Autores: Rodrigo Mattos dos Santos, biomédico, com mestrado e doutorado pela Unesp e especialização em jornalismo científico (Unicamp); Viviane Mattos Pascotto, bióloga, com mestrado e doutorado pela Unesp.

Referência

1 WHO, Organização Mundial da Saúde. In https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/chagas-disease-(american-trypanosomiasis). Acessado em 19/07/2021.

Imagem: foto de Madison Inouye no Pexels

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Radioatividade do bem: entenda a técnica de irradiação de alimentos

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A radioatividade é um tema rodeado de polêmica e insegurança, principalmente devido aos acidentes e seus impactos que marcaram a história (Chernobyl – 1986; Goiânia – 1987; Fukushima – 2011). O acidente em Chernobyl, por exemplo, ocasionou o consumo de alimentos contaminados até mesmo no Brasil, após a importação de toneladas de produtos vindos da Europa naquela época. Outro caso é a contaminação de mel nos Estados Unidos até os dias de hoje, 70 anos depois da realização dos testes de armas nucleares durante a Guerra Fria.

A exposição a altos índices de radioatividade está associada a manifestação da síndrome aguda da radiação, além do desenvolvimento de câncer. Diante disso, muitas pessoas associam radioatividade a algo negativo e prejudicial, desconhecendo seu uso na medicina e na área de alimentos, como é o caso da técnica de irradiação. Afinal, como ela funciona e quais os riscos associados ao consumo do alimento irradiado?

Como descrito pela colunista Cíntia Malagutti aqui no blog, a radioatividade é a emissão espontânea de partículas do núcleo do átomo instável em busca de estabilidade. Ela se manifesta como raios alfa, beta e gama, apresentando diferentes potenciais de penetração.

A aplicação da química nuclear na área alimentícia se dá pela exposição de alimentos à radiação a partir de uma fonte radioativa (normalmente césio-137 ou cobalto-60). Esta exposição tem como objetivo aumentar o tempo de conservação dos alimentos por meio de alterações no processo fisiológico dos tecidos vegetais ou no controle de microrganismos (pasteurização a frio ou esterilização), que pode ocorrer com o produto já embalado.

Segundo Luiz Eduardo Rangel, assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a técnica é ainda pouco utilizada no Brasil e pode ser uma estratégia para obter maior competitividade e sustentabilidade, reduzindo a perda de produtos ao longo de toda a cadeia.

Esse processo é conduzido sem promover o contato direto do alimento com a fonte radioativa, e em doses pequenas incapazes de provocar reações em nível atômico. Dessa maneira, um alimento irradiado não se torna radioativo e, portanto, o seu consumo não apresenta risco radiológico. Já um alimento contaminado por radiação é aquele que entrou em contato e absorveu o material radioativo. Neste caso, o seu consumo representa um grande perigo à saúde.

Dada a relevância da técnica de irradiação na área de alimentos, tal alternativa é uma prática comum ao redor do mundo há alguns anos. Na década de 80, a agência Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos já a havia regulamentado para uso em diversos alimentos, incluindo no controle de Trichinella spiralis em carne suína.

No Brasil, a irradiação em alimentos é regulamentada por três dispositivos legais:

Decreto-Lei nº 72.718 de 29 de agosto de 1973 – Primeiro momento em que se estabeleceu normas gerais sobre o uso da radioatividade pela técnica de irradiação ionizante para preservação de alimentos.

RDC 21 de 26 de janeiro de 2001 (ANVISA) – Estabelece definições e aplicações da irradiação em alimentos. Um ponto muito relevante citado por esta norma é que a técnica não deve ser utilizada em substituição às boas práticas de fabricação ou agrícolas. A RDC 21 de 2001 traz ainda a obrigação de se indicar no rótulo ou em cartaz, no caso de venda a granel, que o alimento foi tratado por processo de irradiação.

Instrução Normativa nº 9 de 24 de fevereiro de 2011 (MAPA), que regulamenta a irradiação como medida fitossanitária na prevenção de introdução e disseminação de pragas quarentenárias.

Além delas, através da Portaria nº 66 de 30 de março de 2021, o MAPA estabeleceu o Grupo de Trabalho Técnico de avaliação de irradiadores multipropósito no Brasil para uso em produtos agropecuários.

Considerando as pesquisas, a FAO indica que as propriedades nutricionais e organolépticas dos alimentos irradiados são mantidas. Além disso, estes alimentos não apresentam risco toxicológico, radiológico ou mesmo microbiológico para o consumo humano.

Diante dos benefícios que a técnica de irradiação pode oferecer para a segurança de alimentos, conforme mencionado por Rangel no evento online realizado pela Amazul (Marinha do Brasil), uma das ações do governo federal é traçar estratégias de comunicação sobre tais vantagens, eliminando o preconceito que se posiciona como uma barreira para sua aplicação.

– Saiba mais sobre o tema: Perigos radiológicos foram levantados no seu plano HACCP?

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Alegações na rotulagem de alimentos: o que pode e o que não pode?

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Os famosos claims na rotulagem de alimentos e bebidas, a princípio podem parecer apenas um recurso de marketing para destacar atributos dos produtos. No entanto, muitos termos estão extremamente relacionados a aspectos de Segurança dos Alimentos, e, portanto, há relação direta com a saúde do consumidor, especialmente em grupos com necessidades específicas e com restrições alimentares. É o caso, por exemplo, de alegações como “Glúten free”, “Zero lactose”, “Zero açúcares”, “Diet”, etc. A utilização de expressões na rotulagem de alimentos é regulamentada por normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e pelo Código de Defesa do Consumidor. É imprescindível que as empresas fabricantes de alimentos e bebidas, seja qual for seu porte econômico, elaborem seus rótulos em total conformidade com a legislação. Afinal, a rotulagem é ferramenta essencial para as escolhas alimentares do consumidor. O objetivo deste texto é trazer os principais aspectos regulatórios referentes às alegações permitidas no Brasil.

1.      Código de Defesa do Consumidor (CDC). É direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre características, composição e qualidade dos produtos, bem como a proteção contra publicidade enganosa e abusiva.

2.      Princípios Gerais de Rotulagem de Alimentos. A RDC nº 259/2002 da ANVISA em seu item 3 determina que o rótulo do alimento não pode induzir o consumidor a erro, equívoco ou engano sobre a natureza, procedência, composição e qualidade, bem como não pode atribuir efeitos ou propriedades que não possua ou não possam ser demonstradas. Segundo a norma, os rótulos não devem indicar que o alimento possui propriedades medicinais, terapêuticas ou ação curativa, e tampouco incentivar o consumo como estimulante, para melhorar a saúde ou para prevenção de doenças.

3.      Legislação positiva. O que isso significa? Aquilo que estiver previsto em norma pode ser usado no rótulo. O que não estiver estabelecido na legislação não pode ser declarado no rótulo. Há margem para interpretação? Sim. É subjetivo? Também. Porém, na dúvida, a tomada de decisão deve estar amparada pelas referências citadas anteriormente, o CDC e a RDC nº 259/2002.

4.      Publicidade. O Decreto-Lei nº 986/1969 determina em seu artigo 23 que as disposições sobre rotulagem se aplicam aos textos e matérias de propaganda em qualquer veículo de comunicação. Portanto, o time de marketing deve se atentar aos requisitos legais de rotulagem quando desenvolver a estratégia de divulgação dos alimentos e bebidas.

5.      Sem glúten, pode? Depende. É muito importante destacar que os termos “Contém glúten” e “Não contém glúten” são mandatórios e estabelecidos na Lei 10.674/2003. Não são claims. Trata-se de advertências sobre a presença ou ausência de glúten, que é muito relevante para os consumidores celíacos. A Lei não traz limites toleráveis de glúten para adoção do “Não contém glúten”, portanto, é fundamental que o rótulo seja elaborado de acordo com a lista de ingredientes do alimento.

Atualmente não existe no Brasil legislação que regulamente o uso de claims como “glúten free”. É necessário consultar o regulamento específico da categoria do alimento. Por exemplo, a IN nº 65/2019 do MAPA estabelece o Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) da cerveja, e prevê a denominação “cerveja sem glúten” para a bebida elaborada com cereais não fornecedores de glúten.

6.      Lactose. Referente à lactose há duas legislações da ANVISA, a RDC nº 135/2017 e a RDC nº 136/2017. A primeira é específica sobre as alegações que devem estar presentes nos alimentos para dietas com restrição de lactose, que são regulamentados pela Portaria SVS/MS nº 29/1998. Já a segunda determina a obrigatoriedade da declaração da presença de lactose “Contém lactose” nos alimentos embalados na ausência dos consumidores, inclusive os destinados exclusivamente ao processamento industrial e serviços de alimentação. Note que a RDC nº 136/2017 estabelece que é mandatória apenas a advertência da presença de lactose, e não contempla a declaração de ausência. Ambas as legislações são de extrema importância para consumidores portadores de intolerância à lactose.

Cabe colocar que as alegações “isento de lactose”, “zero lactose”, “0% lactose”, “sem lactose”, “não contém lactose”, “baixo teor de lactose” e “baixo em lactose” são permitidas nos alimentos especialmente processados para eliminar ou reduzir o conteúdo de lactose. O documento Perguntas e Respostas Rotulagem de Lactose da ANVISA traz esclarecimentos fundamentais para a rotulagem correta e uso adequado dos claims. Por exemplo, segundo a ANVISA, não são permitidos os claims “zero lactose” ou “baixo em lactose” nos alimentos naturalmente isentos ou com baixo teor de lactose. Neste caso, tais alimentos estão sujeitos à RDC nº 54/2012 que trata da Informação Nutricional Complementar (INC), que proíbe o uso de alegações de conteúdo absoluto (isento ou baixo) ou comparativo (reduzido) sobre lactose. A alternativa para os alimentos naturalmente isentos ou com baixo teor de lactose é declarar a quantidade de lactose na tabela nutricional, de acordo com a RDC nº 360/2003. Essa regra tem dias contados, e a partir de outubro de 2022, quando entrarão em vigor a RDC nº 429/2020 e IN nº 75/2020 será permitida a alegação “não contém lactose” em outros produtos, que não sejam aqueles para dietas com restrição de lactose.

Outro ponto de atenção para a Segurança dos Alimentos é que um alimento pode trazer em seu rótulo a advertência “Alérgicos: pode conter leite” e não utilizar a advertência “Contém lactose”. Isso porque a RDC nº 136/2017 estabelece critérios quantitativos para declaração da presença de lactose, enquanto a RDC nº 26/2015, que trata da rotulagem de alimentos alergênicos, não determina limites toleráveis de alergênicos. Desse modo, de acordo com a ANVISA, tal situação poderá ocorrer quando o fabricante, após a aplicação de todos os procedimentos de Boas Práticas de Fabricação (BPF), não assegurar a ausência de derivados do leite, mas garantir assegurar que o teor de lactose no produto é inferior ao limite determinado pela RDC nº 136/2017.

7.      “Sem leite”, pode? Não pode! De acordo com o documento Perguntas e Respostas Rotulagem de Lactose da ANVISA, em alimentos como pães e bolos preparados sem a adição de leite, não é possível informar “sem leite” nos rótulos. Tais alimentos não são enquadrados como alimentos para dietas com restrição de lactose. Além disso, esse termo está em desacordo com a RDC nº 26/2015, a qual proíbe a veiculação de qualquer tipo de alegação relacionada à ausência de alimentos alergênicos, exceto quando existir previsão em regulamentos técnicos específicos. Assim, no mesmo raciocínio regulatório cabível à expressão “sem leite”, outras expressões relativas a alimentos alergênicos também são proibidas, por exemplo: “sem trigo”, “sem peixes”, etc. É pertinente ressaltar que os Princípios Gerais de Rotulagem previstos pela RDC nº 259/2002 também proíbem destacar a ausência de componentes que não estão presentes em alimentos de igual natureza.

8.      Diet. O termo “Diet” está autorizado para uso opcional em alimentos destinados a fins especiais, regulamentados pela Portaria SVS/MS nº 29/1998, por exemplo: alimentos para dietas com restrição de nutrientes (açúcares, gorduras, proteínas, sódio, ferro), alimentos para controle de peso e alimentos para dietas de ingestão controlada de açúcares. É indispensável entender a diferença entre o termo “diet” e as declarações de propriedade nutricional que serão mencionadas no próximo item.

9.      “Sem açúcares”, “Zero sódio”, pode? Sim! A Informação Nutricional Complementar (INC) é regulamentada pela RDC nº 54/2012 da ANVISA, e é de uso opcional. Trata-se dos termos relativos a propriedades nutricionais, tais como “zero açúcares”, “baixo em gorduras totais”, “light em sódio”, “fonte de fibras”, “rico em proteínas”, “sem adição de açúcares”, “zero calorias”, “sem adição de sal”, “zero gorduras trans”, “menos açúcares”, etc. O uso de tais expressões está sujeito ao atendimento de critérios nutricionais, e a apresentação do alimento não pode levar o consumidor a interpretação errada ou enganosa, tal como não deve incentivar o consumo excessivo e nem sugerir que o alimento é nutricionalmente completo. A RDC nº 54/2012 estabelece a lista dos termos que estão autorizados, e determina que estes devem estar em língua portuguesa. O único termo em outro idioma que não exige tradução é “Light”, os demais devem ser traduzidos.  Não é permitido o uso de INC em alimentos para fins especiais (por exemplo, alimentos para controle de peso), bebidas alcoólicas, água mineral, especiarias, entre outros. As regras de uso da INC também se aplicam a toda publicidade dos alimentos. Além do texto da legislação é importante consultar o Perguntas e Respostas sobre Informação Nutricional Complementar da ANVISA. Apesar do uso facultativo, quando utilizada no rótulo a INC é fator relacionado à saúde do consumidor. Por último, cabe lembrar que novas normas de rotulagem nutricional foram publicadas em 2020 pela ANVISA, e a RDC nº 54/2012 será substituída em outubro de 2022 pela RDC nº 429/2020 e pela IN nº 75/2020.

10.   “Emagrece”, “Perda de peso”, “Previne osteoporose”, “Ação diurética”, “Propriedade antibacteriana”, “Contra doenças do coração”, pode? NÃO PODE! Alegações funcionais ou de saúde são facultativas e regulamentas pelas Resoluções nº 18/1999 e nº 19/1999. Podem ser utilizadas mediante aprovação da ANVISA após análise e comprovação da eficácia das alegações. A comprovação se dá por meio da submissão à Agência de Relatório Técnico Científico (RTC), o qual deve incluir, entre outros requisitos, os resultados de ensaios clínicos e toxicológicos, além de estudos epidemiológicos. A principal diretriz para uso deste tipo de claim é que as alegações podem fazer referências à manutenção geral da saúde, ao papel fisiológico dos nutrientes e não nutrientes e à redução de risco a doenças, por exemplo: “ajuda a reduzir colesterol”. Não são permitidas alegações de saúde que façam referência à cura ou prevenção de doenças. Embora alegações funcionais sejam opcionais, caso sejam utilizadas são também relevantes para a saúde do consumidor.

11.   Suplementos alimentares. Alegações específicas para a categoria de suplementos alimentares são autorizadas pela IN nº 28/2018 da ANVISA. Seu uso é opcional, exceto para os suplementos alimentares com probióticos ou com enzimas. Os termos utilizados devem seguir rigorosamente a lista autorizada, e estão proibidas informações relativas à ação terapêutica ou medicamentosa. Alguns exemplos de claims permitidos em suplementos alimentares são: “As proteínas auxiliam na formação dos músculos e ossos”, “As fibras alimentares auxiliam no funcionamento do intestino”, “Os ácidos graxos ômega 3 EPA e DHA auxiliam na redução dos triglicerídeos”, “O ferro auxilia no funcionamento do sistema imune”, etc.

12.   “Sem conservadores”, “Sem corantes artificiais”, “Contém corantes naturais”, pode? Não! A ANVISA em seu Informe Técnico IT nº 70/2016 trata das alegações de conteúdo de aditivos alimentares, e esclarece que estes claims não são permitidos. De acordo com o órgão, estas expressões contrariam os Princípios Gerais de Rotulagem de Alimentos e o Código de Defesa do Consumidor.

13.   “Sem aditivos”, pode? Depende. O MAPA autoriza o uso da expressão sem aditivos em bebidas como sucos, néctares, refrescos, refrigerantes, kombucha, água de côco, etc quando não é empregado qualquer aditivo alimentar. A alegação é permitida se e somente se nenhum tipo (função tecnológica) de aditivo é utilizado. As normas de bebidas do MAPA estão disponíveis na página eletrônica do órgão.

O uso de aditivos alimentares é um tema altamente relevante dentro de Segurança de Alimentos e está regulamentado pela ANVISA, que estabelece as listas de substâncias autorizadas e respectivos limites de uso para cada categoria de alimento. Portanto, alegações na rotulagem relativas a aditivos têm igual importância e devem estar em conformidade com a legislação vigente.

Frente ao exposto, fica demonstrada a importância das alegações de rotulagem no tocante a food safety, bem como o extenso arcabouço regulatório que deve ser obedecido pelas fabricantes de alimentos e bebidas. Como dito inicialmente, este post não cobre todos os requisitos legais para o emprego de claims nos rótulos. É fundamental que o responsável pela elaboração dos dizeres de rotulagem acesse toda a legislação aplicável, especialmente os regulamentos técnicos específicos das categorias de produtos. A ANVISA disponibiliza em sua página a Biblioteca de Alimentos que traz a lista completa de normas da Agência, além de orientações sobre rotulagem de alimentos. O MAPA também tem em seu endereço eletrônico a lista das legislações dos alimentos sob sua competência, acesse aqui. Caso reste dúvidas, é recomendável realizar consulta aos órgãos que poderão dar instruções específicas sobre as alegações pretendidas para seu produto.

Para concluir, é válido ressaltar que rotular alimentos e bebidas em desacordo com as normas vigentes é infração sanitária nos termos da Lei nº 6437/1977. Logo, o uso correto dos claims não só é importante sob o ponto de vista de saúde, como também para evitar penalidades que variam de advertência e multa a recolhimento de produtos. Esteja atento!

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Alimentação animal: elementos básicos na construção dos POPs

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O cadastro no Ministério da Agricultura de um estabelecimento fabricante de alimentação animal exige a elaboração de 9 POPs. Mas criar procedimentos não é tarefa fácil, exige tempo, dedicação e principalmente conhecimento sobre o processo. Além de textos bem elaborados e descrições detalhadas das atividades diárias da empresa, é necessário que os procedimentos sejam base para a construção de rotinas que favoreçam a segurança dos alimentos, em primeiro plano da saúde animal, e por consequência, da saúde humana.

Para atender a legislação brasileira para área de alimentação animal, a elaboração dos procedimentos deve seguir alguns critérios básicos da área de garantia e controle de qualidade. O link com a norma está aqui.

O manual de boas práticas possui o objetivo de descrever as condições em que a unidade fabril se encontra, é uma fotografia do local. Por isso evite redigir sentenças com verbos em tempo futuro. Recomenda-se ainda que  o manual seja revisado no mínimo a cada 12 meses.

Além disso, no MBPF deve-se descrever a atual situação de pisos, paredes, iluminação, climatização, designação de espaços físicos, inserir fluxogramas de produção, detalhar equipamentos e processos. Em linhas gerais neste documento deve-se citar o que e por que é feito para garantir a qualidade e inocuidade dos alimentos. Nos POPs explica-se como, quando e por quem são executados.

POP 1

O POP de qualificação de fornecedores, matérias-primas e embalagens é um documento de apoio para a rotina. Deve ser consultado com frequência durante as operações. Nele deve-se detalhar quais os critérios adotados para a aceitação ou reprovação de alguma carga. Este documento deve estar alinhado com o setor de compras e suprimentos da empresa. Cuidado, o POP 1 não é uma ilha à parte na gestão da qualidade.

POP 2

O POP de limpeza e higienização de equipamentos e instalações deve relacionar todos os equipamentos envolvidos na fabricação dos alimentos, fundamentalmente aqueles que entram em contato com as matérias-primas e produtos acabados. É também importante relacionar as instalações como paredes, pisos, pias e locais de trabalho como escritórios.

POP 3

O POP de higiene e saúde pessoal deve ser focado na inocuidade dos produtos acabados e não nos funcionários. Além dos hábitos higiênicos, o foco deve ser a manutenção da saúde do manipulador de alimentos para que este não seja um vetor de contaminação durante as operações. Prever exames que possam detectar infecções intestinais ou presença de parasitas são exemplos.

POP 4

O POP de potabilidade da água costuma ser controverso devido à recente atualização da norma. É importante considerar neste procedimento, a origem da água de abastecimento, se é de fonte natural, como rio ou poço, ou rede de abastecimento, já tratada. E em seguida, deve-se observar se a água é utilizada como ingrediente ou não. Vapor, no caso de peletização e extrusão, considera-se como um ingrediente. As análises necessárias podem ser consultadas no item F4, anexo V da orientação normativa 03, de 15 de junho de 2020, do MAPA.

POP 5

O POP de prevenção da contaminação cruzada deve considerar as fontes de contaminação dos produtos, descrever possíveis perigos e formas de mitigação, ainda que não seja possível por meio de análises, pode ser por meio de monitoramentos e verificações em equipamentos, observando existência de vazamentos. A contagem e controle de estoque de matérias-primas e identificação de produtos são práticas econômicas e devem ser considerados como elementos de controle de qualidade.

POP 6

O POP de manutenção e calibração de equipamentos deve prever a manutenção em todos equipamentos necessários à produção dos alimentos, bem como a manutenção predial. Um telhado com defeito pode favorecer a a contaminação das matérias-primas e dos alimentos que forem molhados em um dia chuvoso, por exemplo. Manter um cronograma de manutenções preventivas é básico. Este procedimento deve ser desenvolvido junto com a equipe de manutenção. A elaboração de instrução de trabalho como documento anexo ao POP é uma alternativa interessante.

POP 7

O POP de controle de vetores e pragas urbanas deve prever principalmente quais cuidados a empresa adota em relação à prevenção dos 4A (água, alimento, abrigo e acesso). Entulhos, água estagnada, resíduos de alimentos em recipientes abertos e portas e janelas sem adequada vedação são exemplos que devem evitados. O POP não deve focar somente o combate às pragas com o controle químico. Embora necessário, é uma medida paliativa.

POP 8

O POP de controle de resíduos e efluentes deve ser elaborado observando as normas de destinação de cada estado ou município. Na esfera federal recomenda-se a observação da classificação dos resíduos conforme ABNT NBR 10004/04 – “Resíduos Sólidos – Classificação”.  Considere que resíduos de varredura não podem ser distribuídos a terceiros com objetivo de alimentação animal sem devida autorização do MAPA. Outro aspecto importante é descrever qual a destinação de produtos vencidos ou recolhidos por recall.

POP 9

O POP de rastreabilidade é a cereja do bolo. Este documento deve prever como um produto é rastreado. Tanto no sentido do cliente até as matérias-primas utilizadas na composição, tanto no sentido da matéria-prima até o produto acabado. Portanto deve mencionar quais documentos devem ser consultados para que seja possível localizar sua origem e destino. Uma estratégia que costuma ter sucesso é criar um fluxograma descrevendo etapa por etapa e quais documentos consultar. Este POP deve ser colocado à prova frequentemente e testado visando identificar oportunidades de melhoria. Nunca se sabe quando um recall pode acontecer!

Elaborar um programa de BPF para alimentação animal demanda tempo e dedicação. Bons procedimentos evitam a elevação do risco regulatório da planta processadora e são a base para a construção de um trabalho que evite desperdícios e promova a segurança e qualidade dos alimentos.

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Níveis aceitáveis de alergênicos em alimentos segundo FAO/OMS

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Temos muitos posts sobre alergênicos aqui no blog, dada a relevância deste tema para a segurança de alimentos. Nossa norma legal RDC 26/2015 (Anvisa), apesar de ser muito esclarecedora quanto à rotulagem de alergênicos e sobre a necessidade de ter um programa de controle de alergênicos implementado, até o presente momento não determina quais seriam os níveis aceitáveis de um alergênico em um alimento no qual não está declarada sua presença. Isto porque sabe-se que a reação à presença de um alergênico não declarado por um portador de alergia alimentar é muito individual e varia de leve a extremamente grave. Mas, e fora do Brasil? Como está sendo tratado este tema?

Recentemente, um comitê de especialistas, composto por cientistas, representantes de agências regulatórias, médicos, gestores da academia, governo e indústria de alimentos foram selecionados para participar do segundo encontro da FAO/OMS sobre avaliação de risco de alergênicos. O objetivo era atender a solicitação do comitê do Codex de rotulagem de alimentos na obtenção de orientação científica para validar, e, se necessário, atualizar a lista de alimentos e ingredientes.

Para isto foram trabalhadas as seguintes questões:

Quais são os limites abaixo dos quais a maioria dos consumidores alérgicos não sofreria uma reação adversa, ou seja, quais os níveis aceitáveis?

Quais são os métodos analíticos apropriados para análise de alergênicos em alimentos e superfícies?

Quais devem ser os critérios mínimos de desempenho para esses diferentes métodos analíticos?

As abordagens consideradas para definir a dose de referência para cada alergênico foram: Base analítica; Nenhum nível de efeito adverso Observado [NOAEL] + Fator de Incerteza [UF]; Dose de referência combinada ou não com a aplicação de uma margem de exposição, e Avaliação de risco probabilística.

Após todo levantamento de dados, de pesquisas e publicações científicas relacionadas à alergênicos e sua implicação à saúde, o Comitê identificou várias considerações importantes para orientar a tomada de decisão.

Foram então determinadas as doses de referência que estão apresentadas na tabela abaixo:

Alergênico

Dose de Referência

(mg de proteína total da fonte alergênica/Kg de produto alimentício analisado)

Noz (e noz-pecã *)

1.0

Caju (e Pistache *)

1.0

Amêndoa **

1.0

Amendoim

2.0

Ovo

2.0

Avelã

3.0

Trigo

5.0

Peixe

5.0

Camarão

200

Noz (e noz-pecã*)

1.0

Leite

[decisão pendente com base em análise de dados posterior]

Gergelim

[decisão pendente com base em análise de dados posterior]

* veja as considerações no *veja as considerações no relatório completo  ** provisório

 

O Comitê observou que a Dose de Referência pode ser implementada e monitorada em algum grau com as capacidades analíticas atuais, mas reconheceu que existem limitações significativas no desempenho dos métodos. Para resolver as deficiências na metodologia analítica, eles recomendaram o desenvolvimento de critérios de desempenho do método, bem como o fornecimento mais extenso de materiais de referência acessíveis para os alergênicos. Também identificaram a necessidade de uma melhor compreensão do desempenho do ensaio em diferentes matrizes alimentares e maior transparência sobre reagentes específicos de ensaio, como anticorpos usados em ELISA, que são essenciais para o desempenho da análise.

Para acessar o documento original, clique aqui.

A próxima reunião do comitê está prevista para ocorrer ainda neste ano, e tratará dos seguintes temas:

I.                 Quais métodos / ferramentas estão disponíveis para determinar se: o contato cruzado com alergênico é razoavelmente provável de ocorrer em um alimento após um procedimento de limpeza; se o contato cruzado com alergênico é razoavelmente provável de ocorrer a partir de equipamentos usados para alimentos com diferentes perfis de alergênicos e nível de alergênico em um alimento resultante do contato cruzado

II.                Orientações sobre rotulagem de precaução: o uso de níveis aceitáveis com base científica para avaliar o risco para os consumidores alérgicos a alimentos e determinar as condições de uso da rotulagem de precaução de alergênicos.

Se você deseja acessar o conteúdo completo e original dos resultados de reuniões anteriores sobre avaliação do risco de alergênicos pela FAO/OMS basta acessar esses links:

 http://www.fao.org/3/cb4653en/cb4653en.pdf

http://www.fao.org/3/ca7121en/ca7121en.pdf

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Da indústria ao mundo acadêmico – entrevista com Juliana Barbosa

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Continuando nossa série de posts-entrevistas, hoje teremos a oportunidade de conhecer Juliana Barbosa, mais uma de nossas colunistas que se se dedica a compartilhar experiências e conhecimento no blog. Ela faz parte do FSB desde 2018.

Juliana é médica veterinária, mestre e doutora em engenharia de alimentos pela URI Erechim, RS, e especialista em Controle de Qualidade e Inspeção de Alimentos. Atuou em indústrias e universidades nas áreas de Garantia da Qualidade e Inspeção de Alimentos.


Food Safety Brazil: Quais situações muito peculiares você viveu em relação à segurança dos alimentos?

Juliana: A presença de uma bala no interior de uma picanha. Uma vez o detector barrou uma picanha e tivemos que picar a peça pra encontrar a bala. Ela estava encapsulada no interior da picanha,  pense na sorte do animal! Não foi disso que ele morreu, rs, mas tive muitas histórias que dariam uma boa série de posts.

Outra bem embaraçosa foi encontrar quiabo refogado dentro de uma bota, sim, pasmem! Uma vez fui à desossa fazer a ronda diária e notei um volume na bota de uma funcionária. Pensei que fosse a carteira ou algo pessoal, naquela época não era comum carregarem celular. Então pedi para ver e ela tinha quiabo refogado dentro de um saquinho plástico! Ao ser questionada, ela disse que não gostava da “mistura” do refeitório e que havia trazido a sua que era mais gostosa. Agora pensem: ela trazia o alimento desde a madrugada, tinha entrado às 04:00 e seu horário de almoço era às 10:30. Isso sem falar no calor do corpo.


Food Safety Brazil: Você acha que há um alinhamento ou distanciamento entre o ensino, pesquisa e vida na indústria em relação à segurança dos alimentos?

Juliana: Ainda precisa haver muito alinhamento entre as universidades e as indústrias, pois muitas vezes os professores não têm experiência prática. Eles acabam ensinando a teoria dos livros, me refiro àqueles professores que se formam e ficam no meio acadêmico já ensinando.

Eu tive um professor que dizia: “meus caros, na prática a teoria é outra”. Ele tinha razão. Isso não significa que você vai abandonar o conhecimento teórico, mas é necessário fazer adaptações, ter jogo de cintura, esse tipo de coisa.

Outra coisa que eu acho muito importante é a universidade pesquisar demandas da indústria. Alguns pesquisadores acabam se dedicando às suas crenças e esquecem que resolver problemas reais é tão importante quanto publicar um artigo com uma pesquisa que tem dificuldade para ser colocada em prática.

Todas as pesquisas são importantes pois pensar fora da caixa hoje pode ser a solução de um problema amanhã, mas problemas reais devem ter prioridade, penso eu.


Food Safety Brazil: Como tem sido sua experiência com a embalagem a vácuo?

Juliana: Tive experiência com diversos tipos de embalagens e confesso que experimentei de tudo, de excelentes resultados a falhas graves como as que vou citar a seguir.  Eu tive problema com o famigerado Clostridium esterteticum, uma carga inteirinha de filé mignon de exportação estufada que voltou à origem para descarte.

A embalagem a vácuo é muito boa, porém tem que ser usada com cuidado e atenção – nesse caso ela é excelente. Falhas na utilização, na temperatura do tanque de encolhimento ou mesmo na arrumação da peça no interior da embalagem podem gerar problemas com o produto e, claro, dificuldade em achar o ponto da cadeia responsável pela falha.

Uma vez usamos uma embalagem a vácuo com menor quantidade de camadas, indicada para produto congelado, para usar em uma planta em que toda produção da desossa era embalada a vácuo. Uma certa madrugada acabou a embalagem a vácuo de resfriado e o operador formidavelmente utilizou a embalagem de congelado para produção de resfriado. Conclusão: corri para São Paulo para atender a reclamação de clientes e quando cheguei lá identifiquei o uso da embalagem errada. Esta embalagem, por ter menor número de camadas, permitia escurecimento e estufamento de produtos resfriados. Falha nos treinamentos! O funcionário achava que era apenas por questão estética que havia dois tipos de embalagem e não pela funcionalidade.


Food Safety Brazil: De onde vem a inspiração para os seus posts?

Juliana: Por incrível que pareça eu sempre dizia para a minha equipe: gente, quando eu me aposentar vou ser professora ou vou escrever um livro pois tenho tanta coisa para contar desse tempo de frigorífico que daria um livro.

Então, minha inspiração vem daí, sempre gostei de compartilhar meu conhecimento com aqueles que me rodeiam. Uma vez eu estava com meu diretor e atendi o telefonema de uma pessoa da concorrência que estava pedindo ajuda para resolver um problema. Respondi, disse como eu fazia e fiz a sugestão para o caso dela, meu chefe falou: “Ei, vc está ajudando a concorrência? É isso mesmo?” Disse que sim, quero que eles sejam tão bons quanto nós pois isso vai servir de energia para que eu corra atrás de ser melhor ainda e não estagnar onde estamos. Se não tiver desafio, a gente fica parado! Ele riu e entendeu minha posição.

Mas também busco inspiração na vivência diária, vendo a novela e vendo erros, ou em algum restaurante, mercado, padaria… A gente não descansa e vê oportunidade em qualquer lugar, tenho até um caderninho ao lado da cama e quando tenho algum insight já anoto para não esquecer.


Food Safety Brazil: Considerando sua vivência em indústrias, a vocação por ensinar, esse contato foi premeditado com o mundo acadêmico, despertado por algum gatilho?

Juliana: Na verdade a vocação por ensinar veio desde cedo. Quando criança, adorava brincar de professora; na adolescência eu montava grupo de estudos pra “ensinar” os colegas. Uma vez fiz vários exercícios de matemática com uma colega na véspera de uma prova e ela foi melhor que eu, acredita?

Então foi meio natural e acabou sempre fazendo parte da minha vida. Na indústria eu convergi isso para o treinamento de manipuladores e equipe e também executei um projeto de qualificação de supervisores. Dava “aulas” semanais de 40 minutos com temas diversos. Lembro deles felizes por entender o que era o mal da vaca louca quando surgiram as primeiras exigências legais.

Neste link podem ser encontrados os posts escritos pela Juliana.

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Aço carbono na indústria de alimentos: material non grato?!

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Que o aço carbono está presente na indústria de alimentos é inegável. Muitos equipamentos, principalmente os mais antigos, são construídos deste material.  É aquela presença desagradável, que os auditores das normas de certificação de segurança de alimentos toleram porque não há muito o que fazer – seria muito dispendioso para as empresas substituírem os equipamentos existentes, embora isso fosse o ideal.

Se você ainda não entendeu por que o aço carbono está na lista de material non grato, o Food Safety Brazil já falou sobre isso em 2015. Veja aqui.

O fato é que eu continuo recebendo questionamentos de algumas empresas com dúvidas sobre isso – como fazer? Infelizmente não há fórmula mágica. Neste post vou compartilhar com vocês algumas coisas que tenho visto por aí nas minhas andanças. Vamos a 3 casos recentes:

  • Caso 1

Avaliando o plano HACCP de uma empresa, nos requisitos da FSSC 22.000, verifiquei a planilha onde descreviam os materiais de contato com alimentos e me deparei com o seguinte:

  • Superfícies de contato: aço carbono
  • Oferece risco ao produto? Não, pois é permitido de acordo com a RE nº 20/Anvisa

Ei pessoal, não não! O aço carbono não está na lista positiva da Anvisa em sua forma “pura e simples”. Para se tornar seguro, teria que ser revestido de materiais permitidos, cujo custo deveria ter sido contemplado no projeto original.

  • Caso 2

Visitei uma empresa, com equipamentos bem modernos, todos de aço inox. Mas havia um único tanque, para armazenamento de água tratada, construído de aço carbono. A água entra na formulação do produto. Fizeram este mapeamento de forma adequada no plano HACCP e justificaram o risco dizendo que internamente o aço carbono é revestido por tinta epóxi de alta espessura, curada com poliamida, que cumpre os requisitos da Resolução 105/99 da Anvisa. Foi apresentado o laudo do fornecedor da tinta.

  • Caso 3

Durante a avaliação do plano HACCP de uma terceira empresa, também havia sido levantadaa presença de equipamentos de aço carbono em contato direto com o alimento. A empresa optou então por “validar” o uso do material em uma tentativa de reduzir o problema/impacto. Fizeram isso simulando o contato, ou seja, pegaram o alimento/produto em questão, colocaram-no sobre uma superfície de aço carbono e deixaram por x tempo. Depois analisaram o produto para demonstrar que não houve qualquer contaminação/migração. Fica a pergunta: essa superfície simula exatamente a condição do aço carbono presente no equipamento, por exemplo, em termos de idade, uso, manutenção e/ou condição? Será que passaria em uma auditoria?

Com apenas 3 exemplos, em indústrias que fabricam produtos de natureza variada, dá para entender que o aço carbono continua sendo uma realidade – e, como já dito, o grande problema é o aço carbono desprotegido, que enferruja prontamente quando exposto ao ar e umidade. Este filme de óxido de ferro, a ferrugem, é ativo e acelera a corrosão, formando mais óxido de ferro, e devido ao maior volume do óxido de ferro, este tende a lascar e cair no alimento. Também é sensível a ácidos e cloro.

Em um paper do Journal of Hygienic Engineering and Design podemos entender mais sobre os materiais usados na fabricação de equipamentos. Eles mencionam que para retardar sua corrosão, o aço carbono é frequentemente galvanizado (zincado), niquelado ou pintado – mas há várias restrições quando tais medidas são adotadas e cuidados precisam ser tomados!

E você? Como tem tratado esse assunto na sua indústria caso possua superfícies de aço carbono? Avaliou todas as características e possui os laudos necessários para demonstrar conformidade? Lembrando que as legislações da Anvisa são específicas para a alimentação humana e não se aplicam para a alimentação animal, embora possam ser usadas como referência!

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Gestão de carreira em Segurança de Alimentos

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Muitas pessoas estão iniciando suas atividades em segurança de alimentos e têm interesse em seguir na área, mas questionam quais oportunidades há nesse mercado de trabalho. Pensando nisso, abordarei o assunto gestão de carreira em Segurança de Alimentos. Dividirei o texto em três principais aspectos:

– Objetivos, metas e avaliação frequente

– Habilidades

– Competências

Objetivos, metas e avaliações frequentes

Iniciando o trabalho em qualquer setor, ou organização, entendo que ter objetivos claros e metas traçadas auxiliará a busca ativa por oportunidades, tanto iniciais quanto de crescimento. Assim, é importante saber de forma clara o que você gostaria de fazer, se esse trabalho deverá acontecer na indústria ou em outro setor e traçar um plano: onde você gostaria de estar daqui a um, cinco e dez anos. Pergunte-se: eu gostaria de crescer dentro dessa organização? Gostaria de iniciar meu trabalho aqui, aprimorar meus conhecimentos para então seguir para uma nova atividade? Outro exemplo: gostaria de ter conhecimento prático de atuação na indústria por alguns anos e então iniciar um trabalho de consultoria ou auditoria?

Nada impede que esses objetivos e metas sejam reavaliados e alterados ao longo do tempo, uma vez que o mercado tanto de produtos alimentícios, quanto de normas de certificação, sofre constantes atualizações, com possibilidade de novas carreiras e oportunidades surgirem, por isso as avaliações frequentes são importantes.

Nessa atividade é importante que esse plano esteja escrito e possa ser revisto quantas vezes forem necessárias.

Habilidades

Muito se fala sobre as habilidades do futuro, das novas gerações, mas já temos habilidades que hoje estão em prática e são bem-vistas no mercado de trabalho. Habilidade de comunicação por exemplo: deve ser feita de forma clara, empática, é preciso ter controle emocional, conseguir trabalhar em equipe, ter pensamento lógico e liderança.

Quando pensamos em segurança de alimentos, algumas habilidades se tornam ainda mais importantes, como boa escrita, organização e planejamento das atividades, habilidade de gerenciar projetos, muitas vezes interdisciplinares, com grandes equipes e resultados a médio e longo prazo. Um forte senso ético também é necessário – o Food Safety Brazil já falou sobre isso aqui.

Competências

Quando abordo as competências, falo principalmente das competências técnicas, aquelas adquiridas por meio de estudo, cursos e experiências com atividades realizadas. Leia aqui uma interessante abordagem sobre esse assunto.

Falando em competências interessantes para a área de segurança de alimentos, em cada etapa da carreira temos cursos importantes. Pensando em atividades iniciais, talvez tenhamos a necessidade de conhecer a área como um todo. Um curso geral em Segurança de Alimentos como uma especialização abrangente pode auxiliar para uma visão geral do assunto. Conhecimento também na área de regulatórios será de grande valia para atender requisitos legais.

No caso de atividades mais específicas, talvez sejamos designados a fazer a parte documental de APPCC, PAC, Manuais da Qualidade, de Boas Práticas, documentação necessária pensando em certificação e tenhamos que adquirir conhecimento mais profundo e específico sobre esse assunto e outros correlacionados.

Podemos detalhar mais a nossa atividade específica, mas ter uma visão geral nos auxiliará inclusive a galgar novas posições.

Conforme vamos atuando na área de segurança de alimentos, vamos conhecendo novas possibilidades. Um ponto que hoje seria um diferencial são os cursos relacionados à gestão. Podemos pensar em gestão de projetos, de processos, da qualidade, com utilização de ferramentas para buscar melhoria contínua. Gestão de equipes é um tema cada vez mais importante nas organizações.

Dessa forma, traçar nossa carreira, com ponto de partida e ponto de chegada teórico, com possíveis alterações no meio do percurso, nos auxiliará a definir quais habilidades e competências podemos buscar e desenvolver para facilitar essa jornada.

 

Texto escrito em parceria com An’Anezia Ramos, auditora e consultora para empresas de produtos de origem animal.

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Identificação de Listeria sp. em alimentos: um problema de saúde pública

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O gênero Listeria encontra-se amplamente distribuído na natureza, sendo isolado de solo, água, vegetação, hortaliças, frutos, esgoto, fezes de animais e humanos, em áreas de processamento de alimentos, nos próprios alimentos e nos ambientes de criação de animais. A principal espécie, Listeria monocytogenes, é o agente etiológico da listeriose, uma doença predominantemente veiculada por alimentos, constituindo-se em um sério agravo de saúde pública mundial, resultando em diversos quadros clínicos como meningite, septicemia e aborto.

Listeria innocua não apresenta patogenicidade para o homem, porém seu isolamento e identificação são de extrema importância já que a espécie apresenta o mesmo habitat que L. monocytogenes. Ela pode ser considerada risco de contaminação cruzada, além de indicar falta de condições higiênicas satisfatórias durante o processamento dos alimentos ou durante as etapas posteriores como armazenamento, transporte e manipulação. Nos últimos anos, cepas de L. innocua e L. monocytogenes com perfil atípico vêm sendo detectadas em alimentos e no meio ambiente.

Um dos maiores desafios para os microbiologistas é a ausência de um método totalmente eficaz para diferenciar L. monocytogenes de outras espécies de Listeria, quando associadas na mesma amostra de alimento. L. monocytogenes e L. innocua apresentam perfis bioquímicos semelhantes sendo diferenciados pela presença da hemolisina na espécie patogênica. A tendência atual é que novas metodologias moleculares e espectrométricas sejam gradativamente introduzidas e propagadas, em decorrência dos critérios de precisão, sensibilidade e especificidade. Entretanto, a aquisição dos equipamentos de alto custo e a necessidade de pessoal treinado para a execução das técnicas se apresentam como obstáculos para a utilização rotineira das novas metodologias.

O ensaio de reação em cadeia da polimerase (PCR) utilizando a técnica de PCR multiplex é um protocolo eficaz na identificação dos sorogrupos da espécie patogênica. Uma alternativa aos métodos convencionais é a técnica de identificação bioquímica automatizada, através de um equipamento que utiliza um software que permite a classificação das amostras por meio de um banco de dados frequentemente atualizado pelo fabricante.

Destaca-se na atualidade a utilização da tecnologia Matrix-Assisted Laser Desorption Ionization – Time of Flight/ Mass Spectrometry (MALDI-TOF/MS), na identificação de espécies bacterianas, tendo em vista a facilidade da execução dos protocolos, a liberação imediata dos resultados e o baixo custo por análise, porém exigindo um equipamento de alto investimento inicial. Assim, o desenvolvimento e consolidação de protocolos de análise para identificação das espécies do gênero Listeria se mostra um problema atual de saúde pública, exigindo esforços e investimentos da comunidade científica, visando a implementação de protocolos confiáveis, rápidos e de custo moderado, em níveis laboratoriais.

Autores: Cristhiane M. F. dos Reisa, Gustavo Luis de P. A. Ramosa,b, Deyse Christina Vallim da Silvac, Leonardo Emanuel de Oliveira Costaa

a Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Departamento de Alimentos.

b Faculdade de Farmácia – Universidade Federal Fluminense (UFF)

c Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)

Referências

ANGELETTI S. Matrix assisted laser desorption time of flight mass spectrometry (MALDI-TOF/MS) in clinical microbiology. Journal of Microbiological Methods, 138, 20-29, 2017.

CAMARGO AC, VALLIM DC, HOFER E, AUGUSTO NERO LA. Molecular serogrouping of Listeria monocytogenes from Brazil using PCR. Journal of Food Protection, 79(1), 144-147, 2016.

DE ANDRADE RR, DA SILVA PHC, SOUZA NR, MURATA LS, GONÇALVES VSP, SANTANA AP. Ocorrência e diferenciação de espécies de Listeria spp. em salsichas tipo hot dog a granel e em amostras de carne moída bovina comercializadas no Distrito Federal. Ciência Rural, 44(1): 147-152, 2014.

DOUMITH M, BUCHRIESER C, GLASER P, JACQUET C, MARTIN P. Differentiation of the major Listeria monocytogenes serovars by multiplex PCR. Journal of Clinical Microbiology, 42(8): 3819-22, 2004.

GUO L, YE L, ZHAO Q, MA Y, YANG J, LUO Y. Comparative study of MALDI-TOF MS and VITEK 2 in bacteria identification. Journal of Thoracic Disease, 6, 534-538, 2014.

HOFER E, REIS CMF. Espécies e sorovares de Listeria isolados de animais doentes e portadores no Brasil. Pesquisa Veterinária Brasileira, 25(2): 79-83, 2005.

HOU TY, CHIANG-NI C, TENG SH. Current status of MALDI-TOF mass spectrometry in clinical microbiology. Journal of Food and Drug Analysis, 27(2): 404-414, 2019.

MORENO LZ, PAIXÃO R, GOBBI DDS, RAIMUNDO DC, FERREIRA TSP, MORENO AM, HOFER E, REIS CMF, MATTÉ GR, MATTÉ MH. Phenotypic and genotypic characterization of atypical Listeria monocytogenes and Listeria innocua isolated from swine slaughterhouses and meat markets. BioMed Research International, 2014, 1-12, 2014.

TSUKIMOTO ER, ROSSI F. Evaluation of MALDI-TOF mass spectrometry (VITEK-MS) compared to the ANC card (VITEK 2) for the identification of clinically significant anaerobes. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, 54(4): 206-212, 2018.

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Você já imaginou como era a vida antes da geladeira?

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Você já imaginou como era a vida antes da geladeira? Eis aqui uma pergunta nunca feita antes no blog. Já falamos sobre um manual da geladeira segura e organizada que pode ser acessado aqui e nos perguntamos se podemos guardar um alimento quente dentro dela, matéria que pode ser lida aqui.

#Vamos_de_história!!!

A primeira máquina refrigeradora foi construída em 1856, pelo australiano James Harrison, a qual usava o princípio da compressão de um gás para refrigerar. James foi contratado por uma fábrica de cerveja para produzir uma máquina que refrescasse aquele produto durante o seu processo de fabricação. Porém, os primeiros refrigeradores para uso doméstico foram criados apenas na década de 1910.

Arthur Miller, em sua autobiografia, relembra uma ocupação perdida no tempo – a do homem do gelo. Eles usavam “coletes de couro e um pedaço de pano de saco molhado pendurado no ombro direito”. Do final do século 19 até meados do século 20, o homem do gelo – e a mulher do gelo, durante a guerra – eram uma visão comum em algumas cidades e vilas onde eles faziam rondas diárias entregando gelo para caixas de gelo antes que a geladeira elétrica doméstica se tornasse comum.

Hoje, precisamos apenas colocar a mão na geladeira para pegar nosso suprimento pessoal de cubos de gelo caseiros, mas dependendo de onde se viveu há cerca de um século, o gelo pode ter viajado através dos oceanos e continentes, sobrevivendo por mais de cem dias sem derreter, apenas para esfriar uma bebida em um dia quente de verão.

O comércio de gelo revolucionou as indústrias de carnes, vegetais e frutas (vale a leitura: Como a invenção da geladeira mudou a história – e a forma de como fazemos comércio). No século 19, possibilitou um crescimento significativo na indústria pesqueira e incentivou a introdução de uma gama de novas bebidas e alimentos. No auge de seu comércio, o gelo, por acaso, já foi o maior produto de exportação da América depois do algodão.

E o homem que criou tudo isso foi Frederic Tudor, que ficou conhecido como “O Rei do Gelo” e como consequência acabou se tornando uma das pessoas mais ricas do mundo. Essencialmente, ele administrava um monopólio dos lagos gelados de Massachusetts. Antes de ele aparecer, apenas a elite podia se dar ao luxo de um luxo como o gelo, colhido em suas próprias propriedades e armazenado em casas de gelo pessoais, geralmente construídas no subsolo em seus jardins. Tudor tentou a sorte pela primeira vez no Caribe, na esperança de vender gelo cortado do lago de sua família para membros ricos da elite colonial europeia.

Foto de Frederic Tudor, o Rei do Gelo

Ele tinha apenas 23 anos quando sua primeira remessa zarpou para a ilha de Martinica. Todavia, perdeu a maior parte das vendas quando seus estoques derreteram rapidamente devido à falta de depósitos na chegada. O derretimento foi definitivamente um problema nos primeiros anos do comércio. Nas décadas de 1820 e 1830, apenas 10 por cento do gelo colhido acabou sendo vendido ao usuário final devido ao desperdício no trajeto. De sua primeira remessa de 400 toneladas para Sydney, Austrália – uma viagem de 114 dias da Nova Inglaterra – 150 toneladas derreteram no caminho. Mas se você já está perguntando, como isso funcionava naquela época? Então, vamos decompor o processo.

O gelo era colhido de lagoas e lagos, e o mais valorizado era o gelo cristalino, duro e claro, normalmente consumido à mesa; enquanto o gelo mais poroso, de cor branca, era usado principalmente pela indústria. Para ser colhido, precisava ter pelo menos 18 centímetros de espessura e o tamanho dos blocos variava de acordo com o destino, sendo o maior para os locais mais distantes, o menor destinado à distribuição doméstica. Os blocos eram armazenados em casas de gelo antes de serem enviados por navio, trem ou barcaça para cidades ao redor do mundo.

O transporte marítimo era o meio de transporte mais comum para o comércio de gelo e os blocos eram carregados rapidamente para evitar que o gelo derretesse, mas uma carga média levava dois dias para carregar. Normalmente, o gelo era bem embalado com serragem e o porão do navio selado para evitar a entrada de ar quente. As grandes quantidades de serragem necessárias para isolar o gelo também ajudaram a indústria madeireira da Nova Inglaterra no século XIX. A serragem impede que o gelo se una, retém o ar quente e o resfria à mesma temperatura para evitar o derretimento do gelo.

Durante aqueles primeiros anos de remessas de tentativa e erro de Tudor para a Martinica e depois para Cuba, o gelo tinha pouco valor. Geralmente era visto como um bem gratuito ou, pelo menos, apenas algo que os ricos seriam frívolos o suficiente para pagar. Mas Frederic Tudor estava de fato apostando nisso e gastou muito de sua energia criando mais demanda por seu produto, praticamente inventando o conceito de colocar gelo em bebidas em vez de usá-lo apenas para preservação de alimentos.

As bebidas geladas eram uma novidade e inicialmente vistas com preocupação pelos clientes, que se preocupavam com os riscos para a saúde. Ele instruiu seus representantes comerciais a darem um ano de suprimento gratuito de gelo para bartenders em clubes sociais e hotéis nas Índias Ocidentais e nos estados do sul dos Estados Unidos. Enquanto a comunidade empresarial zombava dele como um tolo excêntrico, Tudor estava ocupado ensinando pessoalmente os bartenders a armazenar gelo e fazer coquetéis.

 

“Um homem que bebeu suas bebidas geladas por uma semana nunca mais poderá ser agradado com elas aquecidas”, previu ele. Em pouco tempo, bebidas como sherry e mint juleps que só podiam ser feitas com gelo picado foram criadas e, em meados do século 19, a água sempre foi gelada na América, se possível. A demanda cresceu em Nova York com sua economia em rápido crescimento e longos verões quentes, e uma onda de imigrantes do sul da Itália começou a explorar as rotas de gelo da cidade.

O mercado europeu era mais difícil de entrar e não adotava bebidas geladas da mesma forma que os norte-americanos. Mas na Dinamarca, Frederic conseguiu mostrar ao dono do Tivoli Gardens como fazer sorvete com seu produto. É isso mesmo: também podemos agradecer ao Frederic pela produção em grande escala de sorvetes, que também resultou do comércio de gelo.

Em seu auge no final do século 19, o comércio de gelo dos EUA empregava cerca de 90.000 pessoas. Nessa época, a Noruega havia se tornado um grande competidor, exportando um milhão de toneladas (910 milhões de kg) de gelo por ano. E durante a corrida do ouro na Califórnia, gelo começou a ser encomendado do Alasca, então controlado pela Rússia, para atender à demanda. Depois que Tudor sozinho deu o pontapé inicial no comércio de gelo, de repente, o direito de cortar gelo tornou-se muito importante e a reivindicação de lagos, lagoas e rios tinha o potencial de gerar disputas sérias. E quando se tratava da disponibilidade de gelo, nem sempre era fácil. Invernos quentes podem prejudicar a colheita de gelo, que ficou conhecida como “fome de gelo”. Tudor estava tão desesperado em um inverno que supostamente enviou o capitão de seu navio para cortar parte de um iceberg.

Enquanto isso, o fim do comércio de gelo estava à vista antes mesmo de começar. Já em 1748 se sabia que era possível resfriar a água artificialmente com o uso de equipamentos mecânicos. É verdade que a tecnologia inicial não era confiável: as primeiras fábricas de gelo estavam constantemente em risco de explodir, pois o gelo fabricado era criado por uma reação de água e amônia (nada food safety, né?).

Durante a maior parte do século 19, o gelo artificial não era tão claro quanto o natural e menos adequado para consumo humano. Mas com a industrialização, a contaminação de lagoas e rios naturais também se tornou um problema sério para o comércio de gelo natural.

Era apenas uma questão de tempo até que os sistemas de refrigeração mudassem tudo e os anos entre as guerras viram o colapso total do comércio de gelo em todo o mundo. A introdução de motores elétricos baratos resultou em refrigeradores domésticos modernos que permitem a fabricação de gelo em casa. Pouco resta da rede industrial do século 19; as colheitas diminuíram à insignificância, armazéns de gelo foram abandonados ou convertidos para outros usos e o homem do gelo desapareceu das ruas da cidade. A ocupação de entrega de gelo sobrevive em algumas comunidades, como entre os Amish, onde o gelo é comumente entregado por caminhão e usado para resfriar alimentos e outros produtos perecíveis.

Claro, Frederick Tudor estava morto muito antes de a refrigeração se tornar acessível para um mercado de massa. Da próxima vez que você se refrescar com uma bebida gelada, faça um brinde ao comerciante teimoso e excêntrico que trouxe gelo para o mundo. E beba outro para a profissão perdida dos homens e mulheres do gelo.

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Mitos ou verdades em segurança de alimentos?

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Ao longo da sua carreira, você já deve ter ouvido “verdades” do tipo:

  • “Esse alimento é seco (ou desidratado) e a atividade de água é baixa, portanto não preciso me preocupar com perigos microbiológicos”;
  • Temos uma etapa de tratamento térmico onde todos os microrganismos são eliminados”, ou ainda,
  • Se não está na legislação, o perigo não existe”.

Eu já perdi as contas de quantas vezes as escutei e confesso que, em várias ocasiões, desisti de argumentar. Isso porque tais afirmações não podem ser tratadas como verdades absolutas e, se o fizermos, podemos incorrer em um tremendo engano! Não podemos simplesmente perpetuar essa percepção.

Algumas reflexões para nos ajudar:

    • O consumo de especiarias contaminadas com patógenos resultou em 14 surtos de doenças relatados de 1973 a 2010 em todo o mundo;
    • Em 2014-2015 na Suécia, 174 casos de intoxicação alimentar foram relatados devido à contaminação por Salmonella enteritidis de misturas de especiarias vegetais importadas;
    • Surtos causados por Bacillus cereus em pimenta e cúrcuma foram relatados na Dinamarca e na Finlândia em 2010 e 2011;
    • A pimenta branca e preta do Brasil foi colocada em detenção automática pelo CDC (FDA) desde 1986. A revisão dos dados da detenção em 2020 revelou que a contaminação da pimenta brasileira por Salmonella continua a ser um problema. O FDA tem uma avaliação de risco para patógenos em especiarias. Veja aqui;
    • Alemanha e Espanha relataram 6 casos de botulismo de origem alimentar associados ao consumo de peixe seco salgado em novembro-dezembro de 2016;
    • Em 2018, um trabalho publicado na revista Food Microbiology concluiu que o sal marinho contém muitos fungos com potencial para causar a deterioração dos alimentos, bem como alguns que podem ser micotoxigênicos. Veja aqui;
    • Alguns microrganismos, além de deteriorantes, também são patogênicos. Exemplos são Clostridium perfringens (causa comum de deterioração em carnes e aves) e Bacillus cereus (causa comum de deterioração de leite e creme);
    • B. cereus tem sido detectado em numerosas ervas desidratadas, especiarias, preparados para molhos, pudins, sopas, produtos de pastelaria e saladas;
    • O arroz (cru) pode conter esporos de Bacillus cereus, que não são destruídos pelo processo de cozimento;
    • Em produtos de panificação, esporos de Bacillus cereus podem sobreviver à etapa de forneamento – embora a temperatura do forno chegue a cerca de 200ºC, a temperatura no centro do produto não passa de 70ºC;
    • Fungos psicrotróficos, como Aspergillus e Penicillum, que além de deteriorantes são produtores de micotoxinas, já foram encontrados em nuggets de frango congelados (-5ºC), que passam por processo de fritura e cozimento industrial. A causa? A farinha usada para empanar os nuggets;
    • Estudos demonstram que o Geobacillus stearothermophilus, um microrganismo deteriorante, não apenas sobrevive mas pode se multiplicar durante as etapas de fermentação, torração e alcalinização do cacau. Veja aqui;
    • Legislação é apenas uma referência – o fato de um alimento não estar citado em alguma norma de padrão microbiológico, não significa que ele seja isento de perigos. Quando falamos da IN 60/2019 e dos padrões microbiológicos para alimentos prontos para o consumo, a própria ANVISA ressalta a importância de se considerar aspectos técnicos, legais, comerciais, operacionais, entre outros, de ingredientes, aditivos, matérias primas, insumos, pois cada processo pode interagir de forma diferente com o padrão microbiológico do alimento.

Portanto, quando insistimos nas questões do início deste texto e afirmamos que são sempre NA (não aplicável), estamos perpetuando mitos que foram construídos sem muito fundamento ou análise técnica mais abrangente – os exemplos acima mostram que nem sempre os NA são verdades! Um olhar mais apurado para a segurança de alimentos é essencial!

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