Alimento artesanal X alimento industrializado

6 min leitura

Recentemente aqui no blog li um artigo  sobre os riscos microbiológicos em queijos artesanais, no qual se faz uso de uma boa pesquisa e de sólidas referências científicas, porém o que mais me surpreendeu foram alguns comentários atacando o “mensageiro” (os autores do artigo) pelo texto, por alertar que no alimento artesanal podem existir riscos potenciais.

Nos comentários alguns insistiam ingenuamente que se é “artesanal” é bom, enquanto ao mesmo tempo, baseados num senso conspiracionista, insinuavam que se é alimento industrializado é ruim, como se a indústria de alimentos fosse uma vilã perversa.

Entre os argumentos favorecendo os produtos artesanais havia os clássicos, como “meu avô viveu mais de 90 anos porque não comia produtos industrializados”. Este argumento é facilmente refutado, pois no geral, nos últimos 50 anos a idade média da população brasileira subiu de 57 para 75,5 anos, ao mesmo tempo em que o consumo de alimentos industrializados cresceu vertiginosamente.

Não é a primeira vez que me deparo com tal visão distorcida. Um exemplo é a “verdade” na cabeça de muitos que frango de granja cresce e engorda rapidamente porque recebe hormônios, uma falácia difícil de desmentir devido ao quanto essa crença já se solidificou na crendice popular, coisa que tentei fazer no artigo “Quanto de hormônio há no frango que você come?“. Repito, frango não é tratado com hormônio!

Outro caso é quando se fala de alimentos transgênicos. Muitos sequer entendem exatamente o que sejam alimentos transgênicos, mas os condenam veementemente, sendo que já se consomem alimentos transgênicos há quase 3 décadas e todos os medos que eram alardeados na ocasião do desenvolvimento e liberação desta tecnologia para o consumo nunca se concretizaram, como tratado no artigo “Devo considerar transgênicos como perigo?”

A tecnologia de plantas transgênicas já é utilizada desde a década de 1990, permitindo ganhos de produtividade no campo e redução de custos, devido, por exemplo, a permitir um uso menor de herbicidas. Ao mesmo tempo, não existem evidências de que seu consumo cause algum malefício à saúde humana.

Outro caso emblemático refere-se à questão da produção agrícola convencional versus orgânica. O uso de defensivos agrícolas, como os chamados “agrotóxicos”, pode ser um problema, sobretudo quando usados fora da técnica, sem receituário de agrônomos competentes, portanto usando produtos não permitidos para a cultura, em sobredosagens ou sem respeitar prazos de carência entre aplicação e colheita, porém, se usados corretamente, são seguros como visto no artigo “Alimentos não orgânicos são seguros?“.

Fonte: Sindiveg – Importância e reflexos da proteção de cultivos no Brasil.

Justamente o uso correto de defensivos agrícolas aliados à tecnologia é o que nos permite a produção em alta escala da chamada agricultura de precisão, fundamental para alimentar a humanidade, sem contar que faz do Brazil um player estratégico para a segurança alimentar mundial, pois ocupando apenas  apenas 7,6% de nosso território com lavouras, nos posicionamos como líder na produção e exportação de soja e de milho, o maior produtor de cana-de-açúcar e de café, o 4° maior produtor de feijão e 3° maior de frutas, além de outros exemplos. Portanto, o Brasil ajuda a alimentar boa parte dos 8 bilhões de habitantes do planeta.

Quem menos quer utilizar defensivos agrícolas, ou agrotóxicos se preferir, são os próprios agricultores, e por um simples motivo: são caros e encarecem os custos de produção. Por isso, a agricultura de precisão faz seu uso somente quando realmente necessário, usando moléculas seguras e aprovadas, na dosagem mínima que permita sua efetividade e respeitando os prazos de carência entre aplicação e colheita, portanto, fazendo seu uso seguro.

Já sobre os alimentos orgânicos, claro que é interessante termos alimentos com técnicas de produção que dispensam o uso de defensivos agrícolas, por outro lado também há riscos, especialmente casos de contaminações com patógenos que já levaram consumidores à morte, como o surto com espinafre na Califórnia e brotos de soja na Alemanha, exemplos citados no artigo “Uma estrela do “Hall da Fama” dos patógenos: Escherichia coli O157:H7“, ou seja, tal qual a produção convencional, a orgânica também tem seus riscos, e em ambos os casos, o que se requer é conhecimento e a prática correta de técnicas para prevenir estes riscos.

Adubação orgânica com esterco, se não estiver devidamente estabilizado, pode ser um potencial foco de contaminação por patógenos.

Citando um caso grave com alimentos artesanais, há o relato comovente de Doralice Goes que fala de sua maratona para sobreviver ao botulismo após comer um molho pesto artesanal, tema que foi tratado no artigo “Também errei como consumidora” e no artigo “Molho pesto artesanal causou tetraplegia por botulismo em Brasília“.

O fato é que seja artesanal ou industrializado, a responsabilidade dos produtores de alimentos é a mesma: garantir que aquilo que chega ao consumidor é seguro, portanto livre de contaminantes químicos, físicos e microbiológicos.

Garantir alimentos seguros requer esforços de toda a cadeia produtiva, incluindo adquirir conhecimento sobre riscos potenciais nos produtos, aplicar técnicas apropriadas, controlar e monitorar processos.

A higiene pessoal, procedimentos de limpeza e higienização, práticas para controle de pragas, boas práticas agrícolas e de manufatura, rastreabilidade e mapeamento e controle de pontos críticos, entre outros requisitos de gestão devem fazer parte das rotinas diárias dos produtores de alimentos, sejam estes pequenos, médios ou grandes.

Sempre vale a pena ressaltar que insumos como os conservantes, aditivos, estabilizantes e os coadjuvantes de fabricação utilizados pela indústria passam por testes diversos antes de sua aprovação como ingredientes pelos órgãos competentes como o FDA (Food and Drug Administration) e a ANVISA (Agência Nacional de Vigilência Sanitária), e claro, como já dizia Paracelso no século XVI com muita sabedoria: “A diferença entre o veneno e o remédio é a dose”.

Quando bem usadas, as tecnologias de insumos alimentícios permitem estabilidade e prolongam a shelf-life dos alimentos e assim facilitam os trâmites da cadeia logística que abastece milhões de bocas em todos os recantos do país e do mundo.

Também vale a pena ressaltar que por trás das grandes corporações produtoras de alimentos há diversos stakeholders, entre eles acionistas que prezam por seus investimentos. Eles desejam que as indústrias sejam perenes e vendam cada vez mais, e para isso, é conditio sine qua non que seus produtos sejam seguros, para se manterem longe de escândalos e indenizações, e justamente por isso, organizam-se em iniciativas como o GFSI  (Global Food Safety Initiative) para propor regras de segurança dos alimentos a serem seguidas em toda a cadeia produtiva.

A indústria de alimentos, para defesa de suas marcas, portanto também por motivos econômicos, é a maior interessada na produção segura de alimentos. Em razão disto, investe milhões em estudos, análises, tecnologias, auditorias e certificações em food safety e incentiva e influencia fornecedores a fazerem o mesmo.

Logicamente alimentos artesanais são bem-vindos. Eles têm importância nos hábitos alimentares regionais, por fazer parte da cultura de determinados grupos sociais e étnicos, sem se esquecer de sua real importância por movimentar toda a economia das regiões onde são produzidos, desde a produção primária, processamento, distribuição e comercialização. Portanto, ninguém é inimigo dos produtos artesanais, mas assim como se cobra corretamente da indústria, também se deve cobrar regras na produção artesanal, por um simples motivo: garantir a saúde pública.

Ao leigo até é permitido ter o vício de tomar partido apaixonadamente entre o alimento industrializado e o artesanal, pois ele não detém todo o conhecimento para um bom julgamento. Já o profissional de segurança dos alimentos precisa se informar, ter uma visão limpa e sem deturpações e abandonar esta dicotomia.

A discussão precisa amadurecer e deixar de lado as paixões, fugir do maniqueísmo, pois não se trata de uma questão de alimento artesanal X industrial, afinal, existem riscos em ambos os casos. Portanto, devem ser identificados e controlados. Em segurança de alimentos, discutir os problemas de forma aberta e clara permite que todos ganhem, produtores, comerciantes e consumidores.

A produção artesanal de alimentos não pode ser tratada como um tema intocável, imune a críticas, pois isso inibe seu avanço em prol da segurança dos alimentos, e só assim o setor poderá se desenvolver, crescer, se fortalecer e se solidificar como uma opção viável e sem riscos aos consumidores.

Deixe sua opinião, o importante neste tema é termos um debate aberto!

Leia também:

Alimentos: quando o artesanal não é legal

Produto Artesanal: bandido ou feito com carinho com a receita da avó??

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6 thoughts on

Alimento artesanal X alimento industrializado

  • FELIPE DE F

    Excelente texto e muito bem explicativo, muito grato pela informação transmitida. Eu meio que faço uma auto avaliação e assumo os riscos do meu consumo já que não comeria uma comida de rua indiana por achar pouco higiênico mas não posso exigir uma validação de limpeza ou algum PCC do seu Zé do espetinho o qual sou fiel cliente.

    • Marco Túlio Bertolino

      De fato, as ações devem ser na proporção necessária, seu Zé pode não ter uma validação de limpeza, mas se garantir insumos na validade, lixeiras fechadas, ambiente sem ratos e moscas, mãos, talheres e utensílios limpos, água potável, já estará num excelente caminho. Grande abraço!!

  • Ivone Maria de Melo Carneiro

    Perfeita colocações. Hoje sobre o apelo do “artesanal” temos visto um entendimento de falsa desregulamentação, onde este pode tudo, porém este tipo de alimento precisa seguir um padrão microbiológico, de contaminantes, e sob as diversas óticas “o alimento pode matar” mesmo que seja o fabricado pela “Dona Lindeza do pudim artesanal”. Isto posto porque se não forem cumpridas as Boas Práticas, uma vez que estas também se aplicam a produção artesanal, aqui entendido minimamente os procedimentos de lavar as mãos, cuidar da água, dos resíduos, da limpeza do ambiente, da origem das matérias-primas como regramento mínimo, não éh mesmo? Outro ponto que há de ser levado à discussão é regulamentar melhor o que de fato é o “artesanal”, mesmo que seja difícil – mas vale estabelecer um regramento mais assertivo, pois pela definição geral posta pela Anvisa notamos uma dificuldade no entendimento e no enquadramento da produção dos alimentos que estão sob sua governabilidade de licenciamento, e aí… muitos se beneficiam e declaram sua produção como artesanal sem de fato ser. Há situações em que o setor regulado declara sua produção como artesanal, e ao analisá-la é idêntica a uma indústria de médio/grande porte, no que tange ao uso de aditivos (pois não é proibido ao artesanal), maquinários como batedeiras, modeladores, dosadores, etc., e, apenas a escala de produção é menor. Um exemplo para reflexão: já pensou na produção de um biscoitinho amanteigada dito artesanal e um produzido em uma grande indústria? Vamos lá! Os ingredientes são os mesmos (podendo variar a proporção de cada um) e o processo produtivo também idêntico ao da grande indústria, reservada a escala de produção, porte dos maquinários, número de funcionários…então onde encaixamos o conceito de artesanal nesse tipo de produção, simplesmente pela escala produzida?. Embora seja desafiadora essa discussão e permeada por muito esforço penso que seja necessário suscitar discussão com a Anvisa acerca “o que de fato é a produção artesanal ou produto artesanal” de modo que o entendimento acerca do alimento artesanal/produção artesanal seja harmonizado, sobretudo por quem produz e pelos agentes de fiscalização?

    • Marco Túlio Bertolino

      Perfeito seus comentários, obrigado, eles complementam o texto e esta discussão num tema tão relevante.

  • Valéria Almeida

    Olá Marco boa tarde!

    Parabéns pelo artigo e obrigada pela explicação.
    Recebi a informação de uma médica que nosso corpo não possui enzimas para degradar perfeitamente alimentos transgênicos. Gostaria como sugestão de ler um artigo com este tema. Se proceder podemos ter problemas de saúde e nutricionais? Acredito que o DNA dos transgênicos já são amplamente conhecidos por pesquisas e talvez possa ter já estudos científicos sobre esta questão?

    Valéria

    • Marco Túlio Bertolino

      Oi Valéria, desconheço artigos científicos que demonstrem que enzimas de alimentos transgênicos não são degradadas. Na verdade, primeira vez que ouço isto. Há muita desiformação sobre o tema. Como está no artigo, transgênicos são usados há décadas, a grande maioria da soja no brasil é transgênica, usadas para alimentar animais para abate que precisam absorver bem proteínas para que haja conversão, assim como grande parte também do milho, e não há evidências reais que apontem riscos a estes alimentos ou que nutricionalmente de alguma forma sejam inferiores aos não GMO. Mas se a sua médica tiver realmente um artigo “científico” que demonstre o que foi afirmado, ficarei feliz em receber e poder ler este material.

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