Estamos vivendo um cenário econômico que está forçando parte do mercado de trabalho formal para o empreendedorismo de sobrevivência. E tanto para os empreendedores de vocação quanto para os de ocasião, é sempre desafiador iniciar um novo negócio… para alguns segmentos é praticamente impossível. Soa bem improvável e geraria muita desconfiança alguém dizer que vai se lançar a produzir uma “geladeira artesanal”, uma vacina “feita em casa” ou mesmo um “computador caseiro”, seja pelo grau de complexidade técnica, seja pelos investimentos requeridos.
Por outro lado, iniciar a produção de alimentos parece algo bastante acessível à maioria dos mortais. Afinal, cozinhar não é algo que quase todo mundo consegue fazer? Ter acesso às matérias-primas também não é nenhum mistério: estão ao alcance do supermercado mais próximo ou dos centros de abastecimento. O investimento inicial se reduz aos alimentos, embalagens e disposição para colocar a mão na massa.
E os alimentos artesanais são cada vez mais queridos! Uma das causas possíveis é a desconfiança crescente em relação aos alimentos industrializados. Não entrando na discussão de quando os motivos são procedentes ou há uma injusta vilanização da tecnologia de alimentos, o fato é que a maior escolaridade do brasileiro e a mídia dão um super empurrão neste caminho.
Segundo a Euromonitor, na América Latina, 31% dos consumidores querem alimentos sem aromatizantes e adoçantes. Nos EUA, a Forbes relata que a preferência pelo alimento artesanal está entre as 10 tendências. No Brasil, o Sebrae nos conta que o mercado de alimentação ligado à saúde e ao bem-estar cresceu 98% no país de 2009 a 2014 e a FIESP descobriu em 2018 que comer com saúde é um desejo de 80% dos pesquisados. Não é uma “modinha”, pois já está no DNA dos Millenials, que devem perpetuar a tendência.
E não adianta discutir se natural é do bem e artificial é do mal. As notícias de fraudes e irregularidades fortalecem a crença de que o alimento parecido com o feito em casa contém menos aromatizantes, menos toxinas, pesticidas, sendo mais saudável e seguro.
Alimentos artesanais são procurados porque eles parecem mais confiáveis do que os que passam pela supervisão de autoridades fiscais de maneira registrada e regular.
Para ficar num exemplo próximo, o feirante do meu bairro vende queijos sem qualquer identificação em sua barraca. Perguntei sobre questões como selo do SIF e ele afirmou que compra de fábricas legalizadas, mas optava pelos produtos sem rótulo, pois os rotulados vendem menos, já que são associados a produtos não caseiros.
Mas na prática o alimento artesanal é o mais seguro?
A maioria dos surtos alimentares, ou mais popularmente, intoxicações alimentares, é originada nas residências. O que esperar então em termos de segurança dos alimentos daquelas preparações que são feitas de forma “caseira” dentro de casas, apartamentos ou garagens?
Coleciono alguns relatos ao longo da vida profissional a respeito de pequenas e microempresas. A origem? Ex-funcionários, ex-responsáveis técnicos, auditores, fiscais, palestrante de agência reguladora.
Compartilhando:
– Uma padaria fabricava pães para intolerantes a glúten num ambiente compartilhado com pães feitos com trigo, assando inclusive na mesma assadeira e achando que estava tudo bem.
– Empresas copiando a tabela nutricional de concorrente por não saber fazer a própria.
– No rótulo, palavras como “amor” ou “carinho” na lista de ingredientes ou outras alegações de propriedades que são proibidas por lei.
– Uma importadora de presunto Serrano recebia como resposta aos produtos devolvidos com pelos que o produto era artesanal, como se fosse um endosso para falhas de boas práticas.
– Um produtor de hortaliças, ao contrário do que seus clientes pensavam, utilizava sim pesticidas em sua pequena lavoura, em concentração 100 vezes maior do que a permitida pois não sabia fazer regra de três para diluição adequada.
– Uma vizinha vendia salgadinhos para festas preparados em seu apartamento de 60 m2, que também era salão de beleza e onde viviam dois cachorros. A lavagem de mãos entre enrolar uma coxinha e fazer um alisamento não existia.
Aqui no blog Food Safety Brazil recebemos dúvidas de empreendedores que demonstram claramente o despreparo técnico para fabricar alimentos e o desconhecimento das legislações em assuntos de extremo risco. Por exemplo:
– Qual a validade do meu produto?
– Como devo rotular alergênicos no meu produto?
Segundo um agente de fiscalização que preferiu não se identificar, “muitas empresas que se apresentam como artesanais utilizam o título como marketing e para se esquivarem da legalização e se manterem na informalidade. Não se registram junto ao MAPA para não ter que cumprir com todas as exigências das empresas fiscalizadas, como por exemplo, pagar por um responsável técnico. Em alguns casos conseguem um responsável técnico de baixo custo que “só assina”, mas é ausente na prática”.
Só que artesanal não precisa ser ilegal. Há regulamentações estabelecidas e em construção para organizar este mercado e proteger a população. Os produtores têm caminhos corretos para a conseguir a regularização.
Clandestino ou informal?
Com exceção de agricultores familiares, que têm regras próprias para comercialização de alimentos, quem fabrica e vende marmitas, doces, tortas ou outros alimentos, sem CNPJ específico para manipulação de alimentos, está na clandestinidade. A palavra “informal” é um eufemismo para uma situação que pode encobrir produção de comida sem conhecimento sobre tecnologia, conservação, rotulagem e higiene. E uma atividade clandestina está sujeita a sanções penais, principalmente em caso de ocorrências de doenças ou óbitos por imperícia.
A série continua
Reconhecendo a importância econômica do micronegócio de alimentos, o Food Safety Brazil está preparando uma série especial sobre alimentos artesanais.
Entenda qual é a situação legal no Brasil para este tipo de atividade, e como eles são gerenciados em outros países.
Conheça iniciativas de incentivo para reconhecimento e normatização para quem quer trabalhar corretamente.
Por fim, acompanhe uma série de orientações sobre manipulação de alimentos para quem quer fazer certinho no pequeno negócio!
Até mais.
Placa em barraca de alimentos de feira de artesanato em Campinas, SP.
Fotos de arquivo pessoal.
Ingrid Mengue Klaus
Muito bom 👏👏👍 Juliane isso é muito real a quantidade de pessoas principalmente ex funcionários de indústrias de alimentos que se “aventuram” e muito grande e assustador, e o pior é reconhecer que a VS não tem braço para fiscalizar nem as indústrias regularizadas imagina essas clandestinas…..
Glaucer Roda
Irretocável a redação do artigo! A profissionalização dos empreendedores é sinônimo de responsabilidade na sua produção, em se tratando de alimentação e consequentemente saúde pública!
Fabiana Ferreira
Nossa como precisamos discutir e ajudar na educação dos novos empresários do setor de alimentos! Gratidão!
Cristiane Vasconcelos
Excelente texto! Parabéns!
Ana Lúcia da Silva Corrêa Lemos
Excelente a sua abordagem, tratou de forma leve e esclarecedora todos os aspectos relevantes. Eu tenho um frase que coloco no final das minhas apresentações sobre Produtos Cárneos Artesanais : Artesanal não é fundo de quintal!
Juliane Dias
Fico feliz que tenha gostado da abordagem, Ana Lúcia! E adorei a sua frase. Disse tudo.
Juliane
Paulo Vittorazze
Parabéns Juliane. Moro em MG, e aqui existe o tal do queijo artesanal. É um absurdo o que acontece com a fiscalização dos órgãos públicos mineiros. Eles sabem que existem milhares de produtores de queijos que não estão legalizados e não interditam estes produtores. Muitos dos próprios fiscais são produtores de queijos artesanais ilegais. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é outro órgão que faz vista grossa e não faz nada para descredenciar os órgãos de fiscalização de MG.
Só posso entender que MG ainda está na época do Brasil Colônia. Aqui tudo pode, desde de que não mexam no meu queijo. Absurdo.
Juliane Dias
Oi Paulo, obrigada por compartilhar sua visão. Esperamos que com esses novos movimentos regulatórios (como o selo ARTE) tenhamos maior profissionalização do segmento.
Juliane
Julio
Como ficará esses produtos, com MP 881, da liberdade econômica, serão dispensados de registros?
Juliane Dias
Oi Julio,
Ainda não temos todas as respostas, somente as diretrizes que a gestão será baseada em risco. Acompanhe as próximas postagens!
Juliane
Gisele Rocha do Nascimento
Olá, por gentileza, preciso de auxilio, busco abrir uma loja de produtos veganos em SP , preciso de ajuda com uma melhor compreensão sobre a legislação e vigilancia sobre esse setor, poderia me enviar informações sobre seu trabalho e como poderia me ajudar? 11 95137-1858. Cordialmente
J. Fa
Sra Autora, acho que precisa só melhorar a pesquisa. Você juntou as bolas e tá colocando artesanal e caseiro no mesmo balaio. Artesanal é feito por um artesão, e caseiro é feito em casa. Um queijo artesanal e um queijo caseiro não tem nada a ver um com outro. Um artesão , ou mestre artesão dedica a vida ao processo de produção e obviamente é melhor que uma massa latica “sabor queijo” que a industria nos oferece. Acho que seria importante era você exatamente separar as duas coisas e ajudar com o trabalho de separação desses dois conceitos.
Juliane Dias
Certamente. Há artesãos qualificados e que buscam aprimoramento e conhecimento científico. E há também os caseiros de fundo de quintal que se passam por artesãos, não profissionais de fato. Sobre o queijo, as recentes legislações e certificações tem feito um bom trabalho pela segurança dos alimentos, ao mesmo tempo que valoriza estas preciosidades da nossa cultura gastronômica.
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Dora Goes
Excelente artigo que nos remete a refletir: o artesanal pode ser consumido desde que seja seguro. E sim, sou consumidora deles. Tanto o industrial como o artesanal não podem ser clandestinos. 1 único alimento pode ceifar 1 vida e digo isso porque 3 colheres de sopa de um molho pesto me deixou o ano de 2022 na uti, tetraplégica, respirando por aparelhos. Que haja mais consciência de quem produz alimentos e de nós consumidores.