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Ketchup, mostarda e mel: o que realmente precisa ir à geladeira?

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Entre ciência, legislação e boas práticas, descubra quando a refrigeração é obrigatória e quando é apenas uma questão de qualidade. Quem nunca discutiu sobre onde guardar o ketchup? Ou se a mostarda precisa mesmo ficar na geladeira depois de aberta? Embora pareçam dilemas domésticos, essas perguntas têm base científica sólida — e entender o comportamento microbiológico por trás dos condimentos é fundamental tanto para quem trabalha na indústria quanto para quem atua em serviços de alimentação ou simplesmente é dona de casa.

Aqui vai um insight importante: a recomendação “refrigerar após abrir” não está necessariamente ligada apenas à segurança microbiológica, mas também à preservação da qualidade sensorial. Produtos como molhos, geleias e manteigas têm características que dificultam o crescimento microbiano: baixa atividade de água (aw), alta acidez (pH baixo), presença de sal, açúcar ou conservantes naturais, além de terem passado por processos térmicos para eliminar patógenos.

Esses fatores, isolados ou combinados, tornam a maioria dos condimentos estável à temperatura ambiente — ao menos do ponto de vista da segurança de alimentos. O que se perde fora da geladeira, na maioria das vezes, é a cor, sabor e textura, não a inocuidade. Como explica a professora Abby Snyder, da Universidade Cornell:

“Microrganismos deteriorantes podem até se desenvolver, mas raramente os patogênicos. O principal risco é sensorial, não sanitário.”

O que dizem as normas legais brasileiras?

A RDC 727/2022 da ANVISA regula a rotulagem de alimentos embalados e estabelece que as condições de armazenamento devem constar no rótulo quando necessárias para garantir qualidade e segurança. Para quem trabalha com food service, a RDC 216/2004 determina que produtos prontos para consumo sejam mantidos sob condições que previnam contaminação. Mas atenção: isso não significa que tudo precisa estar refrigerado. A IN 161/2022, que estabelece padrões microbiológicos, reconhece que produtos com pH ácido e alta concentração de sal ou açúcar são naturalmente mais estáveis, tendo critérios menos restritivos.

E aqui entra um conceito fundamental: a tecnologia de obstáculos (hurdle technology). A RDC 331/2019 classifica alimentos com pH abaixo de 4,5 como ácidos, de baixo risco para patógenos como Clostridium botulinum. Quando combinamos acidez com baixa atividade de água (aw < 0,85 já inibe Staphylococcus aureus), criamos barreiras que tornam o produto microbiologicamente seguro sem refrigeração.

Na prática: cada condimento é um caso

  1. Ketchup é provavelmente o exemplo mais emblemático. Com pH em torno de 3,9 e aw entre 0,93-0,97, ele é naturalmente estável. É por isso que restaurantes o deixam fora da geladeira sem causar surtos de DTA. A refrigeração aqui é puramente para manter cor e sabor vibrantes por mais tempo. Conforme a RDC 216/2004, não há restrição para manter sachês individuais em temperatura ambiente no food service — desde que protegidos de luz e calor excessivo.
  2. Mostarda é ainda mais impressionante. Com pH entre 3,5-4,5 e compostos antimicrobianos naturais (isotiocianatos), ela é praticamente autoconservante. Como diz Brandon Collins, sommelier de mostarda: “É antibacteriana, então nada pode realmente crescer nela.” A geladeira apenas preserva aquele ardor característico que se perde com o tempo. Microbiologicamente falando, pode ficar na despensa sem preocupação.
  3. Mel é o campeão da estabilidade. Com aw de aproximadamente 0,6 e mais de 65% de açúcares redutores, é um ambiente hostil à vida microbiana. A IN 11/2000 do MAPA nem exige refrigeração — aliás, refrigerar mel é um erro comum que acelera a cristalização. Mas atenção ao alerta do Ministério da Saúde e da Sociedade Brasileira de Pediatria: nunca ofereça mel a bebês menores de 1 ano, devido ao risco de esporos de Clostridium botulinum. Outra informação importante: o mel de abelhas nativas (sem ferrão) tem um teor mais elevado de umidade e precisa, sim, ser mantido sob refrigeração.
  4. Maionese comercial é interessante porque muda de status. Fechada, fica em temperatura ambiente graças ao pH 3,8-4,2 e à pasteurização. Aberta, precisa ir para a geladeira — não tanto pelo risco microbiológico (o pH ácido protege), mas porque o calor desestabiliza a emulsão. E aqui vai um ponto crítico da RDC 216/2004: maionese caseira com ovos crus é proibida em estabelecimentos comerciais justamente pelo risco de Salmonella.
  5. Molho de soja tradicional, com 15-18% de sal e processo fermentativo natural, dispensa refrigeração. Mas cuidado com versões “light” reduzidas em sódio — essas podem precisar de frio; sempre confira o rótulo.
  6. Geleias, doces em pasta e compotas, apesar da alta concentração de açúcar e pH ácido, devem ir para a geladeira após abertura para evitar fungos na superfície.

Contaminação cruzada, o verdadeiro vilão

Aqui está o segredo que muita gente ignora: mesmo produtos microbiologicamente estáveis podem ser comprometidos por manipulação inadequada. Utensílios úmidos ou sujos, armazenamento em ambientes incorretos (com condensação) — tudo isso introduz microrganismos que não deveriam estar ali. Para a indústria e para o food service, implementar POPs claros e treinar equipes sobre contaminação cruzada é tão importante quanto escolher a temperatura de armazenamento.

Para quem formula e fabrica

Se você trabalha com desenvolvimento de produtos, sabe que estudos de vida de prateleira não são opcionais. Análises microbiológicas, avaliação sensorial, monitoramento de pH e aw, testes de desafio microbiano (challenge test) — tudo isso justifica aquela frase no rótulo. A rastreabilidade completa, incluindo condições de armazenamento por lote, não só facilita recalls como demonstra comprometimento com a qualidade. E lembre-se: a declaração no rótulo não é só para cumprir tabela — ela orienta o consumidor e protege sua marca.

O que levar dessa discussão?

Produtos com pH < 4,5 e/ou aw < 0,85 são microbiologicamente seguros à temperatura ambiente. A refrigeração, nesses casos, é aliada da qualidade, não da segurança. Mas isso não significa negligenciar o frio — ele retarda oxidação, preserva compostos voláteis e mantém a experiência sensorial que o consumidor espera.

A conformidade com a RDC 727/2022 e outras normas não é burocracia: é gestão de risco baseada em ciência. E a maior lição? Refrigerar o que é necessário é prudência. Refrigerar o que não precisa é zelo. Saber a diferença é o que separa profissionais preparados de quem apenas segue instruções.

Como sempre dizemos: a manipulação higiênica após a abertura é mais crítica que a temperatura de armazenamento. Use colheres limpas e secas, mantenha embalagens bem fechadas, e eduque equipes e consumidores sobre boas práticas. Isso, sim, faz a diferença.

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Nutrigenômica e Segurança de Alimentos: quando a promessa de saúde vira excesso

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Hoje parece impossível ir ao mercado sem encontrar embalagens estampando frases como “rico em ferro”, “fonte de cálcio” ou “enriquecido com vitaminas do complexo B”.

Somado a isso, cresce o consumo de suplementos multivitamínicos e packs prontos, muitas vezes sem orientação profissional.

O resultado? Uma equação perigosa: nutrientes essenciais sendo consumidos muito além da quantidade recomendada.

A nutrigenômica, ciência que estuda como nutrientes interagem com nossos genes, mostra que cada pessoa responde de forma diferente aos alimentos. Mas na prática, estamos vivendo o oposto da personalização: uma avalanche de fortificação industrial mais a suplementação indiscriminada que ignora a individualidade e empurra muitos para o risco da hipervitaminose.

Neste artigo você vai entender:

  • Como a nutrigenômica se conecta à segurança de alimentos;
  • O impacto da fortificação em larga escala nos industrializados;
  • A sobreposição com suplementos e os riscos do consumo desenfreado;
  • Como fazer escolhas mais seguras e conscientes no dia a dia.

O que é nutrigenômica

A nutrigenômica busca compreender como genes e nutrientes interagem. Ela abre caminho para dietas personalizadas, adaptadas ao DNA de cada indivíduo. Mas enquanto a ciência caminha nessa direção, o mercado de alimentos e suplementos empurra a população para o excesso padronizado.

A nutrigenômica emergiu no início dos anos 2000 com o avanço das tecnologias de sequenciamento genético, possibilitando compreender como as variações no DNA influenciam a resposta individual aos nutrientes. Inicialmente focada em pesquisas laboratoriais, a área vem evoluindo para aplicações práticas, como dietas personalizadas, que buscam otimizar a saúde e prevenir doenças através da alimentação alinhada ao perfil genético de cada indivíduo. Este avanço tecnológico permitiu ampliar a compreensão da interação gene-nutriente, marcando uma revolução na ciência nutricional.

O boom da fortificação industrial de alimentos

Farinha de trigo enriquecida com ferro e ácido fólico, leite “rico em cálcio e vitamina D”, cereais matinais “fortes em vitaminas”, bebidas lácteas com adição de zinco… A fortificação tem sua importância na prevenção de deficiências de nutrientes na população (exemplo clássico: redução da anemia com a fortificação de farinhas).

Mas quando somamos todos os produtos que consumidos diariamente, biscoitos, achocolatados, pães, bebidas, a ingestão de micronutrientes pode ultrapassar com facilidade a Ingestão Diária Recomendada (IDR).

Algumas variações genéticas comuns ilustram o impacto dessa individualidade alimentar. Como exemplo, polimorfismos no gene MTHFR (metilenotetrahidrofolato redutase) podem influenciar a metabolização do ácido fólico, essencial para prevenir defeitos congênitos em fetos. Pessoas com variantes menos eficientes desse gene podem necessitar de diferentes formas ou quantidades de folato. Outro exemplo é a intolerância à lactose, genética e comum, que determina a capacidade de digerir o açúcar do leite. Além disso, variações que afetam o metabolismo da cafeína, do álcool e do sódio podem modificar os riscos de consumo padrão desses componentes em alimentos industrializados. Ignorar essas diferenças, especialmente quando há uma fortificação padronizada, pode levar a efeitos adversos para muitos indivíduos.

Suplementos + alimentos industrializados = sobreposição perigosa

Fonte: https://www.elfarmaceutico.es/formacion-investigacion/salud/beneficios-usos-micronutrientes_152213_102_amp.html

Agora imagine esse cenário:

  • Café da manhã com cereal enriquecido, leite fortificado e suco adicionado de vitamina C;
  • Almoço acompanhado de um multivitamínico “para garantir energia”;
  • Pré-treino com pack de cápsulas contendo as mesmas vitaminas já presentes nos alimentos.

Essa sobreposição silenciosa pode levar a quadros de excesso, muitas vezes confundidos com “sintomas vagos” como dor de cabeça, enjoo, fadiga e que em casos mais graves evoluem para problemas hepáticos, renais e até malformações em gestantes (ex.: excesso de vitamina A).

O que a ciência e a toxicologia mostram

  • Vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K) acumulam-se no organismo, aumentando risco de intoxicação.
  • Minerais em excesso (ferro, zinco, selênio) podem causar desequilíbrios e interações negativas com medicamentos.

Dados da OMS mostram aumento global de casos de hipervitaminose em países onde a suplementação cresce junto com a indústria de alimentos fortificados. No Brasil, embora faltem dados oficiais consolidados, estudos regionais e relatos emergenciais indicam um aumento no consumo indiscriminado de suplementos vitamínicos e multivitamínicos, muitas vezes sem acompanhamento profissional. Pesquisa da Sociedade Brasileira de Nutrição realizada em 2023 apontou que cerca de 40% dos adultos entrevistados fazem uso habitual de suplementos, muitos combinando esses produtos com alimentos industrializados fortificados, potencializando riscos de hipervitaminoses. Casos clínicos frequentes relatam sintomas inespecíficos como fadiga, dores de cabeça e náuseas, que podem estar associados ao consumo excessivo desses micronutrientes.

Interações pouco discutidas

Além do excesso, há outras interações:

  • Vitamina K interfere em anticoagulantes;
  • Ferro reduz absorção de antibióticos;
  • Zinco atrapalha alguns anti-hipertensivos.

Essa informação raramente aparece de forma clara nos rótulos, o que torna ainda mais difícil para o consumidor comum avaliar riscos.

A regulamentação atual da Anvisa exige informações sobre composição nutricional e advertências básicas, mas ainda carece de regras específicas sobre alertas para a sobreposição de nutrientes oriundos da combinação de alimentos fortificados e suplementos. A rotulagem raramente informa sobre o risco potencial de toxicidade por consumo concomitante, dificultando a avaliação consciente do consumidor. Além disso, a ausência de padronização nessas informações aumenta o desafio para profissionais de saúde no acompanhamento dos casos de excesso nutricional.

A nutrigenômica nos lembra que não existe “dose padrão” de saúde.

Cada organismo responde de forma única, mas a realidade atual é que estamos expostos a uma combinação de alimentos industrializados fortificados e suplementos com micronutrientes em quantidades padronizadas que muitas vezes ultrapassam os limites seguros individuais.

Informação e acompanhamento profissional são fundamentais para transformar a promessa de saúde em benefício real, e não em excesso perigoso.

Fonte: https://drauziovarella.uol.com.br/alimentacao/como-ler-os-rotulos-de-alimentos/amp/

Antes de colocar no carrinho ou engolir uma cápsula:

  1. Olhe o rótulo: veja se o alimento já contém vitaminas e minerais adicionados.
  2. Some o todo: considere não apenas o suplemento, mas todos os industrializados que consome.
  3. Evite duplicar: packs + multivitamínicos + produtos fortificados = risco de excesso.
  4. Informe seu médico ou nutricionista sobre suplementos e alimentos enriquecidos que consome.
  5. Desconfie de promessas milagrosas de energia ou imunidade em cápsulas.

O futuro da nutrigenômica aponta para avanços digitais que prometem revolucionar o acesso à alimentação personalizada. Aplicativos de dieta baseados em perfis genéticos, alimentos personalizados impressos em 3D e o uso crescente de inteligência artificial para combinar dados genéticos, hábitos e preferências são tendências já em desenvolvimento. Além disso, acredita-se que regulamentações mais rígidas, alinhadas ao avanço da ciência, irão exigir maior transparência nas informações oferecidas ao consumidor. Essas inovações poderão tornar a promessa da nutrigenômica em benefícios concretos, minimizando riscos e potencializando a saúde de forma individualizada.

Compartilhe este artigo com quem você sabe que consome suplementos juntamente com muitos produtos industrializados. Informação é prevenção.

Diogo Ximenes tem mais de 17 anos de experiência na área de qualidade e segurança de alimentos. Construiu uma trajetória sólida desde o laboratório de controle de qualidade até a liderança de equipes e implementação de sistemas de gestão reconhecidos. Foi responsável pela certificação FSSC 22000 em duas indústrias sucroalcooleiras e pela implantação da ISO 17025:2017 em laboratório industrial, elevando padrões de precisão e conformidade. Durante a pandemia, liderou a produção e regulamentação de 11 produtos antissépticos, unindo conhecimento técnico e visão estratégica. Pós-graduado em engenharia de alimentos, certificado como Auditor Líder FSSC 22000 v6 e em Design Sanitário EHEDG, segue comprometido em promover a excelência, inovação e sustentabilidade na indústria de alimentos.

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A mágica tábua de descongelar alimentos: mito ou solução?

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Você sabe qual temperatura ideal para armazenar os alimentos prontos para o consumo? Existe uma faixa de temperatura conhecida como Zona de Perigo, na qual a temperatura é ideal para o crescimentoQuem nunca saiu correndo para trabalhar e esqueceu de tirar a mistura do freezer que atire a primeira pedra!

A correria do dia a dia muitas vezes nos leva a buscar atalhos pouco recomendados para descongelar alimentos: deixá-los sobre a pia, na varanda ou até mesmo usando água quente. Mas aqui vai o alerta: esses métodos não são nada seguros. Quando a parte externa da carne atinge temperaturas acima de 5°C, ela entra na temida zona de perigo (entre 5°C e 60°C). Nessa faixa de temperatura, bactérias patogênicas como Salmonella e E. coli podem dobrar de população a cada 20 minutos — e o pior: isso acontece mesmo que o centro da peça ainda esteja congelado. Deixar um alimento nessa zona por mais de 2 horas é como abrir as portas para uma festa de microrganismos indesejados.

Nos últimos tempos, as redes sociais foram invadidas por um novo “truque de cozinha”: a tábua de descongelar alimentos. Ela chama atenção pelo aparente poder de agilizar o processo, mas será que funciona mesmo? E o mais importante: é um procedimento seguro?

Essas tábuas são feitas de metais como alumínio ou cobre, conhecidos por sua altíssima condutividade térmica. Sabe aquela sensação de encostar numa colher de metal ‘gelada’ versus numa de madeira? A colher de metal parece muito mais fria, certo? Isso acontece porque o metal “rouba” o calor da sua mão muito mais rápido.

Com a tábua é o inverso: ela capta o calor do ambiente e o transfere rapidamente para o alimento congelado, enquanto dissipa o frio que vai sendo liberado durante o degelo. É como se a tábua funcionasse como uma “ponte expressa” para o calor.

Comentário técnico: A condutividade térmica mede a capacidade de um material transferir calor. Os números impressionam: o alumínio conduz cerca de 205 W/m·K, enquanto a madeira conduz apenas 0,15 W/m·K. Isso significa que o alumínio transfere calor mais de 1.300 vezes mais rápido que a madeira! Por isso essas tábuas realmente aceleram o processo comparadas a um prato ou tábua comum.

A física também ajuda a explicar o fenômeno. Segundo as leis da termodinâmica, quando dois corpos com temperaturas diferentes entram em contato, há sempre um fluxo espontâneo de calor do mais quente para o mais frio, até que se atinja equilíbrio térmico. É exatamente isso que acontece quando colocamos uma peça congelada sobre a tábua metálica.

Comentário técnico: A primeira lei da termodinâmica (conservação de energia) mostra que a energia não se cria nem se destrói, apenas se transforma — no caso, o calor do ambiente flui através do metal até o alimento. A segunda lei explica que esse fluxo de calor sempre viaja naturalmente do corpo mais quente para o mais frio, nunca o contrário (a menos que haja trabalho externo, como em geladeiras).

Aqui vem a parte importante: esse ganho de tempo não elimina o risco microbiológico. A tábua funciona à temperatura ambiente, o que significa que o alimento passa parte do tempo exposto exatamente àquela zona de perigo que mencionamos no início.

E tem mais: carnes moídas são ainda mais críticas nesse cenário. Enquanto um bife inteiro tem bactérias apenas na superfície externa, a carne moída tem uma área de exposição centenas de vezes maior. Durante a moagem, qualquer contaminação superficial se distribui por toda a massa, criando inúmeras “portas de entrada” para microrganismos. É por isso que carnes moídas exigem cuidado redobrado no descongelamento e devem ser consumidas mais rapidamente.

Organizações como a Anvisa (RDC nº 216/2004, que estabelece procedimentos operacionais padronizados para serviços de alimentação) e o USDA (Departamento de Agricultura dos EUA) são categóricas: o método mais seguro continua sendo o descongelamento sob refrigeração, com a geladeira ajustada abaixo de 4°C.

Pode parecer menos prático — e realmente é mais demorado —, mas é a única forma de garantir que todo o alimento permaneça fora da zona de risco do início ao fim do processo, preservando tanto sua qualidade quanto a segurança de alimentos.

E se eu REALMENTE precisar usar a tábua?

Bem, a tábua de descongelamento pode até ajudar em situações emergenciais ou quando você quer dar aquele “empurrãozinho” inicial no degelo. Se for usar, siga estas orientações:

  • Tempo máximo: não deixe o alimento mais de 30-40 minutos em temperatura ambiente, mesmo na tábua
  • Espessura ideal: funciona melhor com peças finas (bifes, filés, hambúrgueres) — peças grandes continuam demorando
  • Vire o alimento: para descongelar uniformemente dos dois lados
  • Higienização: lave a tábua com água quente e detergente após cada uso;
  • Cozinhe imediatamente: assim que descongelar, leve direto ao preparo
  • Nunca use para carne moída: o risco é alto demais

Quadro comparativo dos métodos de descongelamento

Método Vantagens Riscos/Desvantagens Indicação
Geladeira (< 4°C) Seguro, preserva qualidade, evita multiplicação de patógenos Mais lento, exige planejamento (8-24h dependendo do tamanho) Melhor opção para carnes, aves, pescados
Água fria corrente (embalagem fechada) Mais rápido que a geladeira (1-3h), mantém alimento fora da zona de perigo Requer atenção constante e troca de água a cada 30 min Útil em emergências
Micro-ondas (defrost) Muito rápido (minutos), permite preparo imediato Pode cozinhar partes externas de forma desigual; precisa cozinhar logo após o descongelamento Somente quando vai direto ao fogo/forno
Tábua de descongelamento Mais rápido que deixar em prato comum; prático em bancada Funciona à temperatura ambiente, expõe ao risco microbiológico; não serve para peças grandes Apenas como complemento ou pré-descongelamento rápido de peças finas
Temperatura ambiente (pia/varanda) Nenhuma vantagem real Risco altíssimo de contaminação; método completamente inseguro Nunca recomendado

A conclusão sincera

No fim das contas, a velha tática da vovó continua vencendo: tirar a carne do freezer na noite anterior e deixar descongelando na geladeira. Chatinho? Talvez. Dá mais trabalho lembrar? Com certeza. Mas é seguro? Absolutamente.

A tábua de descongelamento não é exatamente um mito — ela realmente acelera o processo graças às propriedades físicas do metal. Mas também não é a solução mágica que dispensa planejamento. Quando o assunto é segurança de alimentos, não existe atalho milagroso: tempo e temperatura continuam sendo os fatores decisivos.

Pense assim: você pode até usar a tábua para dar uma “adiantada” em situações de aperto, mas jamais como método principal. O planejamento simples de transferir os alimentos do freezer para a geladeira algumas horas antes continua sendo o caminho mais inteligente — e o único que garante que você e sua família comam com tranquilidade.

Afinal, a pressa pode até ser inimiga da perfeição, mas quando falamos de segurança de alimentos, ela é inimiga mesmo da sua saúde.

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Bebidas adulteradas com metanol: como ocorrem, riscos e como se proteger

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O Food Safety Brazil recentemente postou uma matéria sobre o metanol e bebidas adulteradas. Não obstante, devido ao fato deste assunto (infelizmente) não sair das redes sociais e do imaginário coletivo dos consumidores, resolvemos contribuir com mais um post, com intuito de trazer uma outra abordagem (ou apenas complementar outros posts) sobre este importante tema.

Você sabia que uma única dose de bebida adulterada pode ser suficiente para deixar sequelas irreversíveis, ou até tirar uma vida?

Imagem: O Globo

Somente em setembro deste ano, só na Grande São Paulo, pelo menos três pessoas morreram após consumir bebidas alcoólicas adulteradas com metanol. E outras dezenas acabaram internadas com sintomas graves, como perda de visão, coma e sequelas neurológicas. Este alerta é tão importante quanto urgente. O assunto não é só policial: é saúde pública, confiança do mercado e risco real para quem consome.

Talvez pareça algo distante, restrito a bares suspeitos ou festas clandestinas, mas a verdade é que a fraude pode estar em qualquer copo, em qualquer cidade.

O perigo nem sempre é visível: o metanol é transparente e praticamente não tem odor distinto. Por isso, entenda o que está por trás dessa ameaça.

Neste artigo você vai entender:

  • Como o metanol pode chegar às bebidas
  • Por que sua presença é tão perigosa
  • Como identificar sinais e sintomas em caso de intoxicação
  • O que produtores, comerciantes e consumidores podem fazer para reduzir riscos

Este artigo foi desenvolvido com a colaboração técnica do Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, CRM/ PE 24196, que revisou e contribuiu especialmente para a seção médica sobre toxicologia do metanol e condutas clínicas. A contribuição médica visou garantir a acurácia no detalhamento dos sinais, sintomas e orientações de urgência.

O que é e como o metanol pode chegar às bebidas

Imagem: O Globo

Numa linguagem bem simples, o metanol é um tipo de álcool que não deveria estar em nenhuma bebida. Ele é usado como combustível e solvente, mas quando ingerido pelo ser humano (por ingestão direta, absorção dérmica ou inalação), transforma-se em substâncias altamente tóxicas no fígado, primeiro em formaldeído e depois em ácido fórmico.

Essas substâncias “envenenam” o corpo de dentro para fora: provocam uma forte acidificação do sangue e afetam principalmente os olhos e o sistema nervoso central. É daí que vêm os relatos de pessoas que ficaram com a visão borrada, cegueira permanente ou até faleceram após consumir bebidas adulteradas com metanol.

Fontes naturais e de processo

  • Em frutas como maçãs, uvas e cítricos, a pectina presente nas cascas e polpas pode ser degradada por enzimas (como a pectina metilesterase), naturais da própria fruta ou produzidas por microrganismos presentes no mosto. Essa reação libera metanol, que pode se acumular e ser concentrado na destilação. Em destilados de frutas (ex.: algumas aguardentes frutadas), isso é relevante. Pequenas quantidades podem ser toleradas em processos naturais nos destilados de frutas, mas em níveis elevados são resultado de má prática ou fraude. A quantidade identificada na bebida ajuda a diferenciar se é “natural ou criminoso”.
  • Na cana-de-açúcar, a formação natural de metanol tende a ser menor, mas não é zero, dependendo do processo de matéria-prima e de eventuais contaminações microbiológicas.
  • Cortes de destilação malfeitos: durante a destilação, diferentes frações (“cabeça”, “coração” e “cauda”) concentram compostos distintos. O metanol tem ponto de ebulição mais baixo que o etanol e costuma concentrar-se nas frações de cabeça; se o operador de destilação não faz cortes apropriados ou usa equipamento impróprio, uma fração de metanol pode passar para o produto final. Em operações legais e controladas, as cabeças são descartadas; em operações amadoras ou sem técnica, o risco aumenta.

Adição deliberada de metanol ou álcoois industriais

  • O risco maior vem da adição intencional: uso de álcool combustível como matéria-prima para fabricar bebidas que são vendidas como cachaça, aguardente ou vodca. Esse álcool pode ser diluído em água e até receber óleo fúsel (resíduo de destilação) para simular características sensoriais. Esse tipo de prática não é comprovada em larga escala, mas é tecnicamente possível e representa risco gravíssimo. Só investigações periciais podem confirmar.

Misturar ou reprocessar álcool combustível/industrial para consumo humano é perigoso, ilegal e caracteriza fraude.

Erros e más práticas de armazenamento e manipulação

  • Diluições e reenchimento: abrir uma garrafa, misturar com outra substância e fechar novamente, ou a reutilização de embalagens com produtos de outras origens sem a devida descaracterização de rótulo, podem introduzir contaminantes e fazer com que esse item seja encaminhado para consumo humano, intencionalmente ou não.

Intersecção entre economia informal e crime organizado

  • Em mercados onde há forte pressão por preços baixos, sobra espaço para cadeias paralelas: fornecedores sem nota fiscal, pequenos revendedores, pontos de venda sem controle sanitário. Onde existe essa vulnerabilidade, esquemas criminosos (roubo de álcool, mistura com solventes, revenda em embalagens não identificadas) podem prosperar.

O que o consumidor não vê

  • O problema é que o metanol não altera significativamente o sabor ou cheiro. Muitas vezes, a bebida adulterada parece “normal”. Por isso, a percepção visual e a desconfiança em relação ao contexto de compra são essenciais.

Como identificar e investigar uma suspeita

Sintomas de alerta:

É importante entender que sintomas leves (dor de cabeça, enjoo, tontura) podem ser confundidos com “ressaca”, mas quando aparecem dificuldade para enxergar (visão turva, halos de luz ou neblina) ou alteração na respiração, é sinal de alerta. Nesses casos, não espere melhorar sozinho. Procure atendimento imediatamente e informe que pode ser intoxicação por metanol. Levar a garrafa ou uma amostra da bebida ao hospital pode ajudar a confirmar a causa.

O perigo é ainda maior porque os sintomas nem sempre aparecem imediatamente. Muitas vezes, a pessoa toma a bebida e só depois de várias horas, quando já não relaciona o mal-estar ao que bebeu, começam dores de cabeça, náuseas, tontura e visão embaçada. É o chamado “período de latência”, que atrasa o diagnóstico e agrava os riscos.

Quando a intoxicação evolui, podem surgir sintomas mais graves: respiração acelerada, convulsões, confusão mental, coma e falência de órgãos. É uma situação de urgência médica que exige hospitalização imediata.

Por isso, se alguém apresentar sintomas visuais ou neurológicos depois de consumir bebida alcoólica suspeita, deve procurar atendimento o quanto antes e avisar sobre a possibilidade de metanol, levando consigo, se possível, a garrafa ou amostra da bebida consumida. Isso ajuda a equipe médica a agir rápido, com os tratamentos disponíveis, como uso de antídotos e até hemodiálise, se for o caso.

Para identificação técnica a partir de amostras suspeitas

  • GC-FID / GC-MS (cromatografia gasosa com detector adequado) é o padrão-ouro para quantificar metanol e outros álcoois (etanol, propanol, butanóis e congêneres). A análise de headspace (espaço de cabeça) é recomendada para voláteis em matrizes alcoólicas.
  • Testes rápidos de campo: existem kits colorimétricos e tiras que apontam adulteração grosseira (não substituem GC), úteis para triagem em fiscalização; resultados positivos devem ser confirmados por laboratório credenciado.
  • Análise de congêneres e perfil isotópico: em investigações complexas, técnicas como isótopos estáveis podem ajudar a distinguir etanol produzido por fermentação de etanol industrial, e o “fingerprint” químico revela adulterações intencionais.

O Brasil conta com os CEATOX (Centros de Informação e Assistência Toxicológica), que oferecem orientação imediata para profissionais de saúde e população em casos de intoxicação e suspeitas de intoxicação. O contato pode ser feito pelo telefone 0800-722-6001 (Disque-Intoxicação), disponível 24h em todo o país.

A presença de metanol em bebidas não é um acidente: é o ponto de encontro entre processos mal conduzidos, adulteração criminosa e brechas de fiscalização. A proteção vem de três frentes: produtores responsáveis, fiscalização efetiva e consumidores atentos.

O que produtores, pontos de venda e consumidores devem reforçar

  • Controle rigoroso de fornecedores e notas fiscais.
  • Boas práticas de destilação: descarte de cabeças, controle de temperatura, manutenção preventiva de equipamentos.
  • Rotulagem e rastreabilidade de lotes.
  • Amostragem e ensaios periódicos para parâmetros básicos (teor alcoólico real versus declarado e testes para quantificar metanol).
  • Denúncia e cooperação com vigilância sanitária local quando houver suspeita.
Imagem: IA para o ebook “Do copo ao negócio: guia completo para empreender no mercado de bebidas

O que os consumidores devem observar na bebida antes do consumo

1. Caso compre a garrafa, observe se ela está bem lacrada.

2. Observe se há rasuras ou impressões de baixa qualidade no rótulo. No rótulo, devem constar as seguintes informações:
a. Nome do produto (denominação de venda conforme legislação)
b. Lista de ingredientes (em ordem decrescente de quantidade)
c. Volume (ml, L)
d. Teor alcoólico (quando for bebida alcoólica)
e. Lote (para rastreabilidade)
f. Validade, porém bebidas alcoólicas com 10% ou mais de álcool são isentas de declarar a validade
g. Identificação do fabricante (razão social, CNPJ, endereço)
h. Número de registro da bebida no órgão competente: MAPA para bebidas alcoólicas e grande maioria das outras bebidas (vinho, cerveja, cachaça, sucos industrializados etc.); ANVISA para certas bebidas não alcoólicas (ex.: energéticos, bebidas adicionadas de nutrientes, suplementos líquidos).
i. Advertências obrigatórias (quando aplicável: “Evite o consumo excessivo de álcool” (bebidas alcoólicas), informação sobre presença de glúten (“Contém Glúten” ou “Não Contém Glúten”), conforme Lei nº 10.674/2003 e outras declarações específicas (adoçantes, cafeína, alergênicos, conforme o caso e as normas da
Anvisa).

3. Desconfie de bebidas com cor turva, sedimentos estranhos ou odor fora do esperado.

4. Prefira estabelecimentos comerciais formais e marcas de bebidas com procedência clara e conhecidas.

5. Desconfie de preços muito baixos e de bebidas vendidas em embalagens improvisadas, sem identificação ou reaproveitadas.

6. Em festas e pontos turísticos, prefira bebidas lacradas ao invés de porções fracionadas.

7. Ao menor sinal de alteração visual depois de beber, busque atendimento de urgência. Tempo é crítico no tratamento.

8. Consuma com moderação. Além da segurança física, o consumo consciente protege sua saúde em longo prazo.

9. E novamente, em caso de sintomas suspeitos, procure emergência médica imediatamente e acione o CEATOX (0800-722-6001).

Se viu algo suspeito (bebida vendida sem nota, garrafa com lacre rompido, rótulo suspeito e com ausência de informações e pessoas passando mal após consumir bebidas sem identificação), relate à Vigilância Sanitária municipal ou à polícia. Em caso de sintomas (conforme relatados neste artigo) após ingestão, procure emergência e informe que há suspeita de intoxicação por metanol e leve amostra da bebida, se possível.

No fim das contas, a fraude com metanol não é apenas sobre uma bebida adulterada: é sobre confiança. Confiança naquilo que se consome. Confiança no mercado que se frequenta. Confiança de que um momento de lazer não se transformará em tragédia. E, enquanto autoridades ampliam fiscalizações, a conscientização do consumidor é uma das armas mais poderosas contra esse tipo de crime.

Compartilhe este alerta com quem você conhece. E, antes de abrir a próxima garrafa, lembre-se: segurança começa pela escolha consciente.

Nosso agradecimento especial ao Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, cuja colaboração foi essencial para trazer informações médicas seguras e de fácil compreensão a este tema tão sensível.

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Diogo Ximénes tem mais de 17 anos de experiência na área de qualidade e segurança de alimentos, construiu uma trajetória sólida desde o laboratório de controle de qualidade até a liderança de equipes e implementação de sistemas de gestão reconhecidos. Foi responsável pela certificação FSSC 22000 em duas indústrias sucroalcooleiras e pela implantação da ISO 17025:2017 em laboratório industrial, elevando padrões de precisão e conformidade. Durante a pandemia, liderou a produção e regulamentação de 11 produtos antissépticos, unindo conhecimento técnico e visão estratégica. Pós-graduado em Engenharia de Alimentos, certificado como Auditor Líder FSSC 22000 v6 e em Design Sanitário EHEDG, segue comprometido em promover a excelência, inovação e sustentabilidade na indústria de alimentos.

8 min leituraO Food Safety Brazil recentemente postou uma matéria sobre o metanol e bebidas adulteradas. Não obstante, devido ao fato deste assunto (infelizmente) não sair das redes sociais e do imaginário […]

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Cachorro-quente de rua: comer ou não comer? Eis a questão!

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Imagine a cena: você está caminhando pela cidade, sente aquele cheiro irresistível de cachorro-quente no ar, e sem pensar duas vezes, já está na fila do carrinho do tio da esquina. Mas será que é seguro o que você pretende ingerir?

Provavelmente muitas pessoas que não atuam diariamente com segurança dos alimentos simplesmente saboreiem seu cachorro-quente despreocupadamente. No entanto, profissionais da área, que estão familiarizados com os riscos, sabem que um simples cachorro-quente pode trazer uma série de problemas.

Os ingredientes: uma receita para o caos?

1 – Pão

O pão, do ponto de vista da segurança dos alimentos, é intrinsecamente seguro devido à sua baixa atividade de água (Aw), geralmente abaixo de 0,85, o que inibe o crescimento da maioria das bactérias patogênicas.

No entanto, apesar de relativamente seguro, pode conter contaminantes, principalmente fungos. A umidade elevada e a exposição ao ar favorecem o desenvolvimento de espécies como Aspergillus spp., Penicillium spp. e Fusarium spp., algumas das quais são produtoras de micotoxinas, substâncias tóxicas associadas a efeitos adversos na saúde humana.

Para minimizar o risco de contaminação, recomenda-se armazenar o pão em locais secos e arejados, evitar a exposição prolongada ao ar e, se necessário, conservar em refrigeradores ou embalagens adequadas para retardar o crescimento de fungos.

Além disso, a manipulação inadequada pode transformar o pão em um vetor para contaminação cruzada, facilitando a transmissão de Staphylococcus aureus e coliformes fecais, especialmente quando não há higienização correta das mãos e dos utensílios.

2 – Salsicha

A salsicha industrializada já vem cozida, mas isso não significa que ela está livre de perigos.

Se armazenada fora da refrigeração pode servir de substrato para a multiplicação de Listeria monocytogenes, Salmonella spp. e Escherichia coli (E. coli O157:H7).

A temperatura ideal para conservação de embutidos é abaixo de 5°C, mas no carrinho de rua muitas vezes a realidade é outra: são caixas de isopor sem controle térmico adequado, permitindo assim a proliferação bacteriana.

Há ainda um fato interessante sobre salsichas: o nome Clostridium botulinum deriva do latim “botulus” , que significa justamente salsicha. Os primeiros casos documentados de botulismo estavam associados ao consumo de salsichas contaminadas, principalmente na Alemanha do século XIX.

Essas salsichas eram produzidas com o embutimento em tripas naturais e armazenadas em condições anaeróbicas (com pouco ou nenhum oxigênio). Como o Clostridium botulinum é uma bactéria anaeróbia estrita, essas salsichas criavam um habitat ideal. Além disso, o pH neutro ou levemente alcalino e a presença de nutrientes favorecem a multiplicação das bactérias e a produção da toxina botulínica, uma das mais potentes conhecidas.

Esse problema foi reduzido com o avanço das técnicas de conservação, como a refrigeração e o uso de conservantes como os nitritos que inibem o crescimento microbiológico, lembrando que se usado de forma inadequada, os nitritos também são um problema, uma vez que podem ser convertidos a N-nitrosaminas, que são potencialmente carcinogênicos.

3 – Maionese

A maionese caseira, por vezes usada pelos vendedores de rua, pode ser uma bomba-relógio.

A maionese caseira, amplamente utilizada em lanches de rua, apresenta alto risco sanitário, principalmente por ser produzida com ovos crus, uma vez que a Salmonella spp. pode estar presente nos ovos contaminados, causando intoxicações severas.

A Salmonella pode migrar do trato intestinal das galinhas para os ovos através da casca por contaminação externa. Essa contaminação ocorre durante a postura, quando os ovos podem entrar em contato com fezes contaminadas na cloaca ou no ninho. Como a casca possui poros, uma bactéria pode penetrar, especialmente se houver umidade ou rachaduras, atingir a membrana interna e, em alguns casos, a gema, onde pode se multiplicar.

Mesmo as versões industrializadas de maionese precisam ser mantidas refrigeradas para evitar o crescimento de microrganismos patogênicos, porém, num carrinho de hot dog, mantido fora de refrigeração constantemente, a maionese pode se transformar num meio de cultivo. Por isso, pequenos volumes em sachês podem significar menos risco que em bisnagas.

4 – Molho de tomate

Embora o molho de tomate possua pH ácido (em torno de 4,0 a 4,5), o que inibe o crescimento de muitos microrganismos patogênicos, ainda assim pode ser contaminado por bactérias acidotolerantes, como Lactobacillus spp. e Acetobacter spp., além de fungos , como Aspergillus spp., Penicillium spp. e Fusarium spp.

Fungos podem produzir micotoxinas como as fumonisinas e ocratoxinas, que são substâncias tóxicas associadas a potenciais efeitos carcinogênicos, imunossupressores e causadores de danos ao fígado e rins.

Mesmo em molhos industrializados, especialmente os que vêm em latas, embalagens de vidro ou sachês, pode ocorrer crescimento de fungos. Isto ocorre especialmente após a abertura, caso o produto fique exposto ao oxigênio, possibilitando o acesso dos esporos de fungos, e ainda mais se mantido em temperatura ambiente por longos períodos.

Além disso, há o risco de contaminação cruzada se o mesmo utensílio for usado para mexer a salsicha e o molho sem higienização adequada.

Exposição de alimentos ao consumidor em carrinhos

Molhos e outros produtos expostos em carrinhos de cachorro-quente podem, também, permitir o crescimento de Staphylococcus aureus devido à contaminação por contato direto ou indireto.

O Staphylococcus aureus, que naturalmente é encontrado na pele, nariz e garganta, pode ser transferido para os alimentos pelo toque das mãos, máquinas contaminadas ou até por gotículas expelidas ao falar ou espirrar.

O crescimento destes microrganismos ocorre entre 10°C e 45°C, especialmente na faixa de 30°C a 37°C, situação na qual pode se multiplicar rapidamente, principalmente em alimentos ricos em nutrientes, como molhos cremosos e à base de ovos. Se houver tempo suficiente e as condições forem favoráveis, pode ocorrer a produção de toxinas estafilocócicas, que são termoestáveis.

Um outro risco: produtos expostos em carrinhos, invariavelmente estão expostos a insetos carreadores de microrganismos, como moscas e baratas.

Basta uma única mosquinha pousar sobre o alimento para que uma contaminação possa ocorrer, pois durante seus voos, as moscas acabam se alimentando de tudo que é detrito, como fezes, animais mortos e matéria orgânica em decomposição. materiais repletos de microrganismos, inclusive bactérias patogênicas, que vão pegar carona em suas asas e patas até os alimentos.

Se uma mosquinha age como um avião monomotor para carrear microrganismos, uma barata pode ser associada a um Boeing 747, carreando ainda mais microrganismos pelo mesmo mecanismo de contato: detritos – alimentos.

Os perigos invisíveis: falta de higiene e armazenamento inadequado

Além dos perigos microbiológicos específicos de cada ingrediente, há riscos associados às condições de manipulação e armazenamento. Sem lavagens frequentes das mãos, sem superfícies higienizadas e sem equipamentos de refrigeração adequados, o cachorro-quente pode se tornar um verdadeiro festival de bactérias e vírus gastrointestinais.

Se o mesmo pegador é usado para a salsicha crua e a salsicha quente sem limpeza, estamos diante de um exemplo clássico de contaminação cruzada. O mesmo vale para facas, tábuas de corte e até para o manuseio do dinheiro seguido do preparo do lanche.

Alimentos perecíveis precisam de controle rigoroso de temperatura. No caso dos cachorros-quentes de rua, a refrigeração inadequada pode transformar ingredientes aparentemente inofensivos em verdadeiros veículos de intoxicação alimentar.

Outro ponto importante: observe as condições de higiene do vendedor antes de pedir seu lanche. Mãos sujas, unhas compridas e ausência de luvas podem indicar que a manipulação do alimento não está seguindo as boas práticas. E lembre-se: um simples espirro pode disseminar vírus e bactérias pelo seu lanche.

Comer ou não comer?

O cachorro-quente de rua pode ser uma opção saborosa, mas se não for preparado e armazenado sob condições sanitárias adequadas, pode representar um risco significativo à saúde.

Isso não significa que seu consumo deva ser completamente evitado, mas é essencial que o consumidor esteja atento às condições de higiene do local, ao armazenamento dos ingredientes e às práticas do manipulador.

Se for impossível resistir, passe o olhar pelo crivo técnico e prefira barracas que demonstrem boas práticas em segurança dos alimentos, incluindo:

  1. Atendente com mãos limpas, unhas curtas e bem tratadas, e que faça uso de luvas descartáveis quando manipular o cachorro-quente;

  2. Uniformes limpos, touca ou boné para evitar queda de cabelos na comida;

  3. Pães e condimentos armazenados em local seco e protegido contra contaminação;
  4. Separação entre alimentos crus e prontos para consumo, incluindo o uso de utensílios diferentes para manipular alimentos crus e cozidos;

  5. Molhos e ingredientes frescos mantidos em recipientes protegidos e bem fechados;

  6. Alimentos quentes devem mantidos acima de 60°C até o consumo, assim como bebidas e ingredientes refrigerados devem permanecer abaixo de 5°C;

  7. Disponibilidade de água potável para lavagem das mãos e utensílios, com uso de detergente e sanitizante adequado para limpeza das superfícies;

  8. Lixo deve ser mantido fechado, sem acúmulo e descartado corretamente e com frequência. Não deve haver moscas, formigas ou outros insetos rodeando a barraca. Além disso, deve manter a barraca fechada quando não estiver em uso para evitar insetos e roedores;

  9. Pagamentos feitos separadamente da manipulação de alimentos;

  10. Disponibilizar guardanapos e sachês individuais para condimentos.

Seguir esses cuidados reduz os riscos de contaminação e melhora a qualidade, garantindo segurança do cachorro-quente para os clientes.

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É seguro utilizar utensílios de cerâmica para servir alimentos?

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Os utensílios culinários produzidos em cerâmica estão mais presentes nos domicílios, restaurantes e outros locais destinados à alimentação. Isso ocorre pela abundância de matérias-primas naturais no Brasil, como a argila, e pela prática aumentada de produção artesanal desses utensílios. Temos grandes indústrias produtoras de cerâmica, ateliês e pessoas que praticam em casa.

Inclusive, a cerâmica produzida no Brasil, por grandes indústrias tem mercado internacional, o que também é facilitado pela disponibilidade de matéria prima e pelo aperfeiçoamento das técnicas de produção, com a incorporação de tecnologias avançadas do setor.

Agora, um questionamento que deve ser feito tanto por quem produz cerâmica como por quem compra utilitários para utilizar na alimentação é:

– este utensílio é livre de elementos tóxicos?

– ele é seguro para ser utilizado para aquecimento de alimentos, seja no micro-ondas ou em fornos convencionais?

– ele é seguro para servir diferentes alimentos, como molhos, alimentos ácidos, cremosos, líquidos?

Para responder a essas perguntas, trarei algumas informações sobre as etapas de produção de itens cerâmicos e possíveis pontos de atenção, quando pensamos em fontes de contaminação e fontes de possíveis intoxicações.

Preparação da matéria-prima

Uma informação importante é a diferença entre barro e argila. Barro é o material bruto composto por material orgânico e mistura de solo, e a argila é um dos componentes do barro.

A maior parte das matérias-primas utilizada tanto na indústria de cerâmica quanto para produção independente (em ateliês ou mesmo em casa) é de origem natural, obtida a partir da ação de ventos e chuvas que decompõem materiais rochosos, e pode ser encontrada nas margens de rios, em regiões pantanosas ou em áreas mais montanhosas.

Normalmente os materiais cerâmicos são formados após processo de moagem e com a junção de mais de uma matéria-prima argilosa, podendo também receber água e aditivos.

As argilas são compostas por silicatos de alumínio ou magnésio hidratado e outros elementos, como ferro, potássio.

Formação das peças – Modelagem

Várias técnicas podem ser empregadas para que a argila tome forma de uma peça utilitária, utilizada em construção civil ou decorativa. Quando esse processo é feito na indústria, usam-se equipamentos para obter a forma desejada e quando é feito de forma independente, a modelagem pode acontecer a partir das mãos do ceramista, com ou sem o auxílio de equipamentos. Esse é um dos motivos para que a prática possa ser executada individualmente.

O processamento térmico é de fundamental importância para obtenção dos produtos cerâmicos, pois dele depende o desenvolvimento das propriedades finais destes produtos. Esse tratamento compreende as etapas de secagem e queima.

Secagem

Finalizada a etapa de modelagem, quando já temos as peças na forma final, precisamos que elas passem por um processo de secagem, para secar a água que ainda existe no material. Essa etapa é importante para evitar rachaduras ou defeitos na peça.  É um processo lento e gradual, portanto finalizada a modelagem, a peça ainda demorará alguns dias para ser submetida ao forno para a queima. A duração dessa etapa depende do local onde a peça se encontra, da umidade e da temperatura da região onde foi produzida, quando pensamos em práticas em ateliês ou residenciais.

Queima

Quando a peça apresenta aparência “seca”, ela já pode ir para a etapa de queima, em forno, em temperaturas mais altas, entre 800°C a 1700°C, etapa também conhecida como sinterização. Nessa etapa o material muda suas características, e as peças adquirem rigidez e resistência mecânica pela fusão de componentes da massa.

Esmaltação e decoração 

Alguns materiais cerâmicos podem ser utilizados logo após essa primeira queima, mas se pensarmos em utensílios culinários, eles precisam de uma camada a mais, conhecida como esmalte.

Isso porque a argila é porosa, portanto, não é de fácil e segura higienização após contato com alimentos. tornando-se uma possível fonte de contaminação.

A fase de esmaltação consiste em aplicar materiais especiais que derretem em altas temperaturas e formam uma camada vítrea, com a finalidade de impermeabilizar, proteger e/ou decorar.

Esmaltes ou vidrados são misturas de matérias-primas naturais e produtos químicos ou compostos vítreos que uma vez aplicados à superfície de um material cerâmico e após altas temperaturas (nova queima) formarão uma camada semelhante ao vidro, fina e contínua. Essa camada é impermeável quando constante, e tem importância por aumentar a resistência mecânica do utensílio. É crucial que essa camada seja íntegra e contínua, pois se houver uma rachadura ou trinca, por exemplo, forma-se uma área de contato com a argila e voltamos a ter a possibilidade de contaminação do alimento.

Os esmaltes (vidrados) são obtidos a partir de matérias-primas naturais e de produtos da indústria química.

  • Entre as matérias-primas naturais, estão: quartzo, areia do mar, quartzito, caulim, lepidolita, espodumênio, ambligorita, feldspato, calcita, fluorita, talco, dolomita e zirconita.
  • Entre os produtos químicos, estão: borax, ácido bórico, carbonato de sódio, nitrato de sódio, carbonato de potássio, nitrato de potássio, óxidos de chumbo, carbonato de cálcio, carbonato de bário, carbonato de magnésio, carbonato de lítio, carbonato de estrôncio e óxido de zinco.

Para conferir coloração aos esmaltes, são adicionados corantes e a sua formulação também é importante do ponto de vista toxicológico.

Do ponto de vista de segurança de alimentos, os esmaltes aplicados são de suma importância, uma vez que podem ser compostos por elementos químicos com potencial perigo à saúde humana, como chumbo, cádmio e em alguns casos, o cromo hexavalente.

Todo material que entra em contato com alimentos deve ser cuidadosamente desenvolvido para não se tornar uma possível fonte de intoxicação para as pessoas, transferindo substâncias de potencial tóxico para o alimento, seja durante o consumo, armazenagem ou mesmo aquecimento. Para ter essa segurança são realizados testes de migração, nos quais o alimento e o material de contato são submetidos a situações que simulam a produção de alimentos e então os possíveis resíduos tóxicos são mensurados.

Segundo a Resolução n° 27/1996, os artigos de cerâmica, vidro ou metal que contenham algum tipo de revestimento/decoração cerâmica (esmaltada ou vitrificada) na face de contato com o alimento ou bebidas devem atender aos limites de migração total e migração específica de chumbo e cádmio. A norma também prevê que materiais cerâmicos porosos não podem estar em contato com alimentos.

A migração específica identifica e quantifica certos elementos químicos que podem estar presentes e serem extraídos de artigos cerâmicos, caso façam parte da sua composição. No caso do chumbo e cádmio, os limites da Resolução 27/1996 são estabelecidos para 3 categorias de objetos, conforme explicado na tabela abaixo:

Tabela 1 – Limites máximos de migração específica de chumbo e cádmio em materiais cerâmicos, vidro ou material esmaltado ou vitrificado.

Chumbo (Pb) Cadmio (Cd)
Categoria 1 – objetos não preenchidos ou com profundidade máxima de 25 mm 0,8 mg/dm2 0,07 mg/dm2
Objetos que podem ser preenchidos 4,0 mg/kg 0,3 mg/kg
Utensílios de cozinha com capacidade superior a 3 litros 1,3 mg/kg2 0,1 mg/kg

Com todas essas informações, aqueles que pretendem fazer sua própria cerâmica ou comprá-la de artesãos devem observar se a peça está esmaltada, se possui rachaduras, trincas e qual esmalte foi utilizado. Os fornecedores de esmalte têm fichas técnicas com informações sobre toxicidade.

Se o utensilio foi produzido de forma correta, respeitando as etapas de queima, sinterização, fechando os poros, recebeu esmaltes atóxicos, torna-se bonito e seguro para servir todo tipo de alimento e inclusive pode ser levado a fornos.

Imagem: RF.studio 

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O caso do rato na Coca-Cola: a versão do consumidor e a impossibilidade técnica

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Em 2000, na cidade de Santo André (SP), o consumidor Wilson Batista de Rezende comprou uma garrafa retornável de Coca-Cola. Segundo seu relato, ao consumir parte do conteúdo, percebeu que havia um rato dentro do frasco. O episódio, rapidamente noticiado pela imprensa local, transformou-se em um dos casos mais célebres do direito do consumidor brasileiro, não apenas pela repercussão popular, mas pelos anos de debate técnico, judicial e social que se seguiram.

O processo teve início com o ajuizamento de ação de indenização por danos morais e materiais. Wilson alegava ter sido exposto a risco extremo ao ingerir parcialmente o produto e exigia compensação pela falha de segurança. A empresa, por sua vez, sustentou desde o princípio a impossibilidade técnica de contaminação por corpo estranho de grande porte em linha de produção automatizada. Assim começou um embate que atravessou perícias, recursos, disputas midiáticas e, por fim, sentença definitiva em 2025, mais de duas décadas após o fato.

Utilizar como decorativa e também para capas Imagem criada por inteligência artificial – A sombra do rato sobre a garrafa representa, de forma simbólica, o caso em questão.

A versão do consumidor

De acordo com o processo, Wilson teria adquirido a garrafa em estabelecimento regular, devidamente lacrada, e notado sabor e odor estranhos ao consumir. Ao observar contra a luz, teria constatado a presença de um pequeno roedor dentro do líquido. Fotografias foram apresentadas e, segundo os autos, a garrafa foi preservada como prova.

O impacto emocional de situações assim é evidente. Mesmo sem a ingestão integral do corpo estranho, o consumidor é confrontado com a quebra da confiança, aquilo que a doutrina jurídica chama de violação da legítima expectativa de segurança. É natural, portanto, que a versão tenha gerado forte comoção social.

O argumento da indústria

A defesa da Coca-Cola sempre foi pautada em dados técnicos de processo. O envase de bebidas em escala industrial ocorre em ambientes de alta complexidade tecnológica, compreendendo:

  • Lavagem de garrafas retornáveis em soluções cáusticas a temperaturas elevadas, capazes de remover e destruir matéria orgânica.
  • Rinsagem e esterilização de garrafas novas com jatos de água tratada e ar filtrado.
  • Envase em salas com pressão positiva, tubulações sanitárias e tampas esterilizadas.
  • Inspeção ótica e eletrônica, para detecção de partículas sólidas.
  • Controle de torque e vedação, além de testes de vácuo e pressão em amostras de cada lote.

Com essas barreiras sucessivas, a tese da defesa foi de que seria praticamente impossível que um animal inteiro atravessasse o processo sem ser destruído ou detectado. Para a empresa, a contaminação teria ocorrido posteriormente, como em situações durante o transporte, armazenagem no ponto de venda ou até mesmo por manipulação fraudulenta.

O papel das perícias

O processo judicial incluiu diversas perícias ao longo dos anos. Os especialistas avaliaram:

  • Integridade da tampa e do lacre, verificando sinais de violação.
  • Características do líquido, incluindo pH (tipicamente 2,5 em refrigerantes), presença de CO2 dissolvido e gases de putrefação.
  • Estado do corpo estranho, observando autólise, fragmentação e tempo provável de permanência.
  • Cadeia de custódia da amostra, avaliando se houve risco de contaminação posterior.

Os laudos mais recentes reforçaram a impossibilidade técnica de contaminação em linha de produção, convergindo com a tese da defesa. O argumento central foi que um roedor inteiro não resistiria ao processo de lavagem cáustica nem passaria despercebido por inspeções. Além disso, a degradação observada no corpo estranho sugeria tempo de exposição incompatível com o envase.

O desfecho judicial

Após anos de recursos e debates, a Justiça proferiu sentença final em 2025, negando o pedido de indenização. O juiz reconheceu que não havia prova suficiente do nexo causal entre a fabricação e a presença do animal, acolhendo a tese de impossibilidade técnica.

O caso, porém, não deixou de marcar a jurisprudência. Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que a simples presença de corpo estranho em alimento ou bebida, mesmo sem ingestão, caracteriza dano moral. Essa decisão, em outro processo, fortaleceu a posição do consumidor em casos de risco potencial. Mas no episódio específico de Wilson Rezende, a prova técnica acabou prevalecendo em sentido contrário.

As lições sanitárias e industriais

Do ponto de vista da segurança dos alimentos, casos como este expõem um dilema clássico: a indústria depende de processos de barreira e controle estatístico, mas o consumidor julga pela experiência individual.

Ainda que a probabilidade de falha seja ínfima, a percepção de risco é devastadora para a confiança na marca.

O CDC brasileiro (Código de Defesa do Consumidor) adota a responsabilidade objetiva do fornecedor, ou seja, basta que o produto seja colocado em risco para haver obrigação de reparar. Essa lógica aplica-se em situações em que há corpo estranho inequívoco em garrafa lacrada, sem necessidade de ingerir. Mas também admite a avaliação pericial, que pode afastar o nexo causal, como ocorreu neste caso.

Do lado sanitário, reforça-se a importância da rastreabilidade de lotes e segregação imediata em caso de denúncia; auditorias independentes nas linhas de produção e nos pontos de venda; educação do consumidor sobre canais de reclamação e preservação de evidências e a responsabilidade compartilhada com o varejo, que deve cuidar de armazenagem e exposição.

Entre confiança e expectativa

O episódio do “rato na Coca-Cola” é, no fim das contas, um estudo de caso sobre como indústria, justiça, varejo e consumidor se relacionam em torno da segurança dos alimentos. A fábrica opera com HACCP, BPF e sistemas robustos de segurança; o varejo precisa preservar integridade até a venda; o consumidor espera transparência e previsibilidade; e a Justiça busca equilibrar risco técnico e dignidade da pessoa.

Mais de vinte anos depois, a sentença absolveu a empresa, mas o caso permanece como lição.

Em segurança dos alimentos, não basta ser tecnicamente improvável que algo aconteça. É preciso garantir que o consumidor acredite na integridade do produto. Essa confiança é tão frágil quanto uma garrafa retornável: basta uma fissura para se perder.

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Maniçoba, uma iguaria tradicional que pode ser mortal

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A maniçoba é um prato típico da culinária paraense, amplamente consumido na região Norte do Brasil, especialmente durante festividades como o Círio de Nazaré, a maior festa religiosa do país e uma das maiores celebrações católicas do mundo. Esta festa acontece em Belém do Pará, no segundo domingo de outubro, reunindo milhões de fiéis que acompanham a procissão em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da Amazônia.

A palavra “maniçoba” tem origem na língua tupi-guarani, sendo que “mani” literalmente significa mandioca e “çoba” ou “soba” refere-se a partes da planta, como é o caso das folhas.

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Morango do Amor: doce viral, riscos reais e o que levar em conta sobre segurança de alimentos

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A viralização de receitas nas redes sociais têm transformado o comportamento alimentar contemporâneo. Como discutido em artigo anterior sobre a trend do macarrão, essas receitas, compartilhadas informalmente, evidenciam o quanto hábitos aparentemente inofensivos podem representar riscos quando desconectados de princípios básicos de higiene e manipulação segura de alimentos. No caso do morango do amor, a estética sedutora do doce esconde uma série de etapas críticas, desde a escolha e higienização do morango até a manipulação dos ingredientes que o revestem.

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Larvas no chocolate: entenda o aumento de casos e onde realmente ocorre a contaminação

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Este artigo traz uma reflexão ponderada sobre o crescimento de casos de contaminação por larvas no chocolate. Queremos propor, sempre com positividade e pitadas de bom humor, argumentos para a indústria que se vê pressionada pela imprensa e população, na maioria das vezes de forma infundada, a se responsabilizar por situações que não estão sob seu controle. Entretanto, se aquele que compra começa a prestar atenção ao local onde está a mercadoria, a grande maioria dos problemas já estariam solucionados e os repórteres estariam ocupados em outras tarefas.

Enquanto isso, no programa de auditório 

Um apresentador sensacionalista descreve em rede nacional: “o que deveria ser uma experiência sensorial reconfortante se transforma em um episódio asqueroso. O consumidor compra um chocolate e quando desembrulha o perfumado doce, percebe sinais de deterioração e algo se movimentando no meio da sobremesa. Frustração, sentimentos de traição, revolta e até náuseas”.

As redes sociais têm amplificado o relato de consumidores indignados diante dessa desagradável experiência. E alguns podem colocar em cheque a integridade de toda a indústria, como acontece com café e azeite, quando após a ANVISA ou o Ministério da Agricultura reprovarem alguns fabricantes negligentes, paira uma desconfiança sobre cada pacote de café e garrafa de azeite no supermercado.

Mas por qual razão aumenta o relato de larvas no chocolate? Será que a qualidade dos insumos, ou o rigor sanitário dos fabricantes se deteriorou? “A culpa deste vexame é de quem?”, esbraveja o apresentador do programa sensacionalista, sempre com um fundo musical de suspense e comoção barata.

Em casos assim, embora o acusador não determine culpados, o nome da marca escrito na embalagem é o mais exposto. Mas o culpado normalmente está bem longe da portaria daquela indústria. Explico: existem duas razões, mais relacionadas à economia e estratégia de negócio, que entendemos ser as catalisadoras desse aparente caos das larvas nos chocolates. Prepare-se para mandar esse texto para um outro setor da empresa.

Mais pessoas, mais chocolates

A primeira razão é o fenômeno de crescimento na produção e consumo dessa iguaria no Brasil. Em 2022 alcançamos 3,6 Kg por pessoa anualmente, e os alimentos à base de chocolate estão presentes em 92,9% dos lares brasileiros. O mercado brasileiro de chocolate foi estimado em US$ 3,38 bilhões em 2024 e poderá ultrapassar US$ 4 bilhões até 2029.

Em 2023 a indústria produziu 805 mil toneladas de chocolates em variados formatos. Para se ter uma dimensão comparativa desse tamanho, os doces derivados de amendoim, como a popular paçoca, chegam a apenas 11,4% dos lares brasileiros.

Então essa é a primeira resposta: há mais brasileiros consumindo chocolates e, logicamente, há maior exposição desse alimento a riscos de contaminações variadas, com mais pontos de venda e maior desafio logístico e sanitário na distribuição e armazenamento. A contaminação por larvas em chocolate sempre existiu, mas a quantidade de consumidores afetados era menor e a cultura de exposição na internet não existia até alguns anos atrás.

A “traça” do marketing

A segunda razão para o aumento nos relatos tem relação com o modelo de negócio de alguns fabricantes. É a ampliação dos pontos de venda através de franquias ou dispersão em locais menos ortodoxos.

Os franqueados dos fabricantes frequentemente relatam que em algumas épocas do ano recebem compulsoriamente produtos com pouca aceitação pelo mercado local, comprometendo o giro de estoque, e aumentando o tempo de prateleira, o que causa maior exposição a contaminantes e outros efeitos ambientais que podem causar deterioração dos alimentos.

Os pontos de venda, antes focados em padarias, supermercados, “delicatessen”, lojas de departamentos e outros locais com razoável padrão sanitário, têm sido ampliados para postos de combustível, bares, farmácias e locais que algumas vezes têm condições sanitárias comprometidas. Há poucas semanas encontrei chocolate de uma marca nacional sendo exposta ao lado de maços de cigarro em um mercadinho localizado em uma zona rural.

Não queremos aqui fazer juízo de valor sobre qual a melhor estratégia para distribuição e comercialização, mas é inegável que as condições sanitárias no ponto de venda podem contribuir decisivamente para o aumento das contaminações.

Talvez o leitor esteja pensando: “será que esse artigo vai colocar toda a contaminação na conta do local de armazenamento ou venda? A indústria que cresceu nesse volume não tem nenhuma falha?”

Calma. O texto vai melhorar agora.

Fazer chocolate é doce, mas não é mole não 

Logicamente não existe nenhum processo produtivo perfeito, e podem existir falhas na indústria de alimentos, mas o que temos observado durante a inspeção e planejamento para contenção de pragas na indústria do chocolate é um rigor sanitário capaz de eliminar quase totalmente os riscos de contaminação por pragas. Desde a seleção de matéria-prima, condições higiênicas da estrutura industrial, climatização (sim, a indústria do chocolate tem bastante controle de temperatura), armazenamento, e inclusive programa de controle de pragas, as avaliações têm revelado cada vez menos risco de uma falha acontecer durante o processo produtivo.

E na dúvida chama o VAR. Aqui mesmo no blog há alguns anos, já houve um excelente artigo esclarecendo sobre larvas nos chocolates, quando o especialista já afirmava: contaminações identificadas mais de 90 dias depois da fabricação, possivelmente foram causadas no ponto de venda ou até na casa do consumidor final. OU SEJA, a culpa não está na linha de produção. Se o nobre consumidor encontrou contaminação com larva viva 4 meses, 8 meses depois da fabricação, não pode ter vindo da fábrica. Portanto, essa é uma oportunidade ímpar do próprio fabricante registrar na sua cadeia de venda e distribuição que eles são tão responsáveis pela integridade dos alimentos quanto o técnico presente na fabricação, ao lado da esteira, vendo as barras passarem.

E TEM MAIS. Seja na imprensa, ou em laudos periciais, especialistas afirmam que predominam contaminações durante as fases de distribuição e armazenamento. Mas também se amontoam decisões judiciais condenando fabricantes à indenização de consumidores afetados por contaminações de larvas, mesmo sem culpa comprovada.

Comunicação que informa, conscientiza e posiciona no mercado 

Pensando na solução, para todos nós que respondemos pela integridade do alimento produzido, e podemos ter nossa carreira e marca afetadas pela publicização de uma contaminação repugnante de larva, cabe manter os cuidados de boas práticas na fabricação e no armazenamento.

Cuide da sua cadeia de produção.  Mantenha uma empresa parceira para controle de pragas que tenha domínio dos “personagens”  mais frequentes no cacau e cereais. Embora pareça ser uma afirmação óbvia, a maioria das empresas controladoras de pragas no país é bastante eficiente em alguns animais sinantrópicos mais comuns como ratos, baratas e formigas, mas pouco atentas à biologia e comportamento dos carunchos e traças.

Ponto de venda de chocolate
Imagem gerada por AI

Cuide da cadeia de distribuição e vendas. Usar de sanções e multas para vendedores nem sempre funciona no Brasil. E no final quem perde sempre é a marca. Por isso, conscientize seus parceiros de venda através de vídeos e outras publicações (com QRCode nas embalagens), comunicando claramente como deve ocorrer o armazenamento e exposição dos alimentos. Instrua com vídeos públicos o ponto de venda, para que mantenha uma rotina mensal para vigilância e controle de pragas, pois é comum no Brasil o varejo mobilizar controladores apenas quando expostos a uma infestação, ou na hora de renovar o alvará anualmente. Este cuidado não passa despercebido pela imprensa, nem pelo consumidor que percebe maior valor no seu chocolate porque tem mais qualidade (veja no QR Code).

Mesmo que pareça deslocado da sua função, somos uma sociedade de símbolos e relacionamentos. E é por esses motivos que existe toda essa cadeia produtiva para um alimento que é sinônimo de afeto (levemente ameaçado nas últimas semanas por um morango viral). Brasileiro é afetivo. Acredite.

CULTURA DA QUALIDADE? Encaminhe o link desse texto para as áreas de marketing, logística, gerência e/ou diretoria, pois o a mobilização desse time faz toda diferença.

Imagem em destaque gerada por IA (Gemini)

5 min leituraEste artigo traz uma reflexão ponderada sobre o crescimento de casos de contaminação por larvas no chocolate. Queremos propor, sempre com positividade e pitadas de bom humor, argumentos para a […]

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