O Food Safety Brazil recentemente postou uma matéria sobre o metanol e bebidas adulteradas. Não obstante, devido ao fato deste assunto (infelizmente) não sair das redes sociais e do imaginário coletivo dos consumidores, resolvemos contribuir com mais um post, com intuito de trazer uma outra abordagem (ou apenas complementar outros posts) sobre este importante tema.
Você sabia que uma única dose de bebida adulterada pode ser suficiente para deixar sequelas irreversíveis, ou até tirar uma vida?

Somente em setembro deste ano, só na Grande São Paulo, pelo menos três pessoas morreram após consumir bebidas alcoólicas adulteradas com metanol. E outras dezenas acabaram internadas com sintomas graves, como perda de visão, coma e sequelas neurológicas. Este alerta é tão importante quanto urgente. O assunto não é só policial: é saúde pública, confiança do mercado e risco real para quem consome.
Talvez pareça algo distante, restrito a bares suspeitos ou festas clandestinas, mas a verdade é que a fraude pode estar em qualquer copo, em qualquer cidade.
O perigo nem sempre é visível: o metanol é transparente e praticamente não tem odor distinto. Por isso, entenda o que está por trás dessa ameaça.
Neste artigo você vai entender:
- Como o metanol pode chegar às bebidas
- Por que sua presença é tão perigosa
- Como identificar sinais e sintomas em caso de intoxicação
- O que produtores, comerciantes e consumidores podem fazer para reduzir riscos
Este artigo foi desenvolvido com a colaboração técnica do Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, CRM/ PE 24196, que revisou e contribuiu especialmente para a seção médica sobre toxicologia do metanol e condutas clínicas. A contribuição médica visou garantir a acurácia no detalhamento dos sinais, sintomas e orientações de urgência.
O que é e como o metanol pode chegar às bebidas

Numa linguagem bem simples, o metanol é um tipo de álcool que não deveria estar em nenhuma bebida. Ele é usado como combustível e solvente, mas quando ingerido pelo ser humano (por ingestão direta, absorção dérmica ou inalação), transforma-se em substâncias altamente tóxicas no fígado, primeiro em formaldeído e depois em ácido fórmico.
Essas substâncias “envenenam” o corpo de dentro para fora: provocam uma forte acidificação do sangue e afetam principalmente os olhos e o sistema nervoso central. É daí que vêm os relatos de pessoas que ficaram com a visão borrada, cegueira permanente ou até faleceram após consumir bebidas adulteradas com metanol.
Fontes naturais e de processo
- Em frutas como maçãs, uvas e cítricos, a pectina presente nas cascas e polpas pode ser degradada por enzimas (como a pectina metilesterase), naturais da própria fruta ou produzidas por microrganismos presentes no mosto. Essa reação libera metanol, que pode se acumular e ser concentrado na destilação. Em destilados de frutas (ex.: algumas aguardentes frutadas), isso é relevante. Pequenas quantidades podem ser toleradas em processos naturais nos destilados de frutas, mas em níveis elevados são resultado de má prática ou fraude. A quantidade identificada na bebida ajuda a diferenciar se é “natural ou criminoso”.
- Na cana-de-açúcar, a formação natural de metanol tende a ser menor, mas não é zero, dependendo do processo de matéria-prima e de eventuais contaminações microbiológicas.
- Cortes de destilação malfeitos: durante a destilação, diferentes frações (“cabeça”, “coração” e “cauda”) concentram compostos distintos. O metanol tem ponto de ebulição mais baixo que o etanol e costuma concentrar-se nas frações de cabeça; se o operador de destilação não faz cortes apropriados ou usa equipamento impróprio, uma fração de metanol pode passar para o produto final. Em operações legais e controladas, as cabeças são descartadas; em operações amadoras ou sem técnica, o risco aumenta.
Adição deliberada de metanol ou álcoois industriais
- O risco maior vem da adição intencional: uso de álcool combustível como matéria-prima para fabricar bebidas que são vendidas como cachaça, aguardente ou vodca. Esse álcool pode ser diluído em água e até receber óleo fúsel (resíduo de destilação) para simular características sensoriais. Esse tipo de prática não é comprovada em larga escala, mas é tecnicamente possível e representa risco gravíssimo. Só investigações periciais podem confirmar.
Misturar ou reprocessar álcool combustível/industrial para consumo humano é perigoso, ilegal e caracteriza fraude.
Erros e más práticas de armazenamento e manipulação
- Diluições e reenchimento: abrir uma garrafa, misturar com outra substância e fechar novamente, ou a reutilização de embalagens com produtos de outras origens sem a devida descaracterização de rótulo, podem introduzir contaminantes e fazer com que esse item seja encaminhado para consumo humano, intencionalmente ou não.
Intersecção entre economia informal e crime organizado
- Em mercados onde há forte pressão por preços baixos, sobra espaço para cadeias paralelas: fornecedores sem nota fiscal, pequenos revendedores, pontos de venda sem controle sanitário. Onde existe essa vulnerabilidade, esquemas criminosos (roubo de álcool, mistura com solventes, revenda em embalagens não identificadas) podem prosperar.
O que o consumidor não vê
- O problema é que o metanol não altera significativamente o sabor ou cheiro. Muitas vezes, a bebida adulterada parece “normal”. Por isso, a percepção visual e a desconfiança em relação ao contexto de compra são essenciais.
Como identificar e investigar uma suspeita
Sintomas de alerta:
É importante entender que sintomas leves (dor de cabeça, enjoo, tontura) podem ser confundidos com “ressaca”, mas quando aparecem dificuldade para enxergar (visão turva, halos de luz ou neblina) ou alteração na respiração, é sinal de alerta. Nesses casos, não espere melhorar sozinho. Procure atendimento imediatamente e informe que pode ser intoxicação por metanol. Levar a garrafa ou uma amostra da bebida ao hospital pode ajudar a confirmar a causa.
O perigo é ainda maior porque os sintomas nem sempre aparecem imediatamente. Muitas vezes, a pessoa toma a bebida e só depois de várias horas, quando já não relaciona o mal-estar ao que bebeu, começam dores de cabeça, náuseas, tontura e visão embaçada. É o chamado “período de latência”, que atrasa o diagnóstico e agrava os riscos.
Quando a intoxicação evolui, podem surgir sintomas mais graves: respiração acelerada, convulsões, confusão mental, coma e falência de órgãos. É uma situação de urgência médica que exige hospitalização imediata.
Por isso, se alguém apresentar sintomas visuais ou neurológicos depois de consumir bebida alcoólica suspeita, deve procurar atendimento o quanto antes e avisar sobre a possibilidade de metanol, levando consigo, se possível, a garrafa ou amostra da bebida consumida. Isso ajuda a equipe médica a agir rápido, com os tratamentos disponíveis, como uso de antídotos e até hemodiálise, se for o caso.
Para identificação técnica a partir de amostras suspeitas
- GC-FID / GC-MS (cromatografia gasosa com detector adequado) é o padrão-ouro para quantificar metanol e outros álcoois (etanol, propanol, butanóis e congêneres). A análise de headspace (espaço de cabeça) é recomendada para voláteis em matrizes alcoólicas.
- Testes rápidos de campo: existem kits colorimétricos e tiras que apontam adulteração grosseira (não substituem GC), úteis para triagem em fiscalização; resultados positivos devem ser confirmados por laboratório credenciado.
- Análise de congêneres e perfil isotópico: em investigações complexas, técnicas como isótopos estáveis podem ajudar a distinguir etanol produzido por fermentação de etanol industrial, e o “fingerprint” químico revela adulterações intencionais.
O Brasil conta com os CEATOX (Centros de Informação e Assistência Toxicológica), que oferecem orientação imediata para profissionais de saúde e população em casos de intoxicação e suspeitas de intoxicação. O contato pode ser feito pelo telefone 0800-722-6001 (Disque-Intoxicação), disponível 24h em todo o país.
A presença de metanol em bebidas não é um acidente: é o ponto de encontro entre processos mal conduzidos, adulteração criminosa e brechas de fiscalização. A proteção vem de três frentes: produtores responsáveis, fiscalização efetiva e consumidores atentos.
O que produtores, pontos de venda e consumidores devem reforçar
- Controle rigoroso de fornecedores e notas fiscais.
- Boas práticas de destilação: descarte de cabeças, controle de temperatura, manutenção preventiva de equipamentos.
- Rotulagem e rastreabilidade de lotes.
- Amostragem e ensaios periódicos para parâmetros básicos (teor alcoólico real versus declarado e testes para quantificar metanol).
- Denúncia e cooperação com vigilância sanitária local quando houver suspeita.

O que os consumidores devem observar na bebida antes do consumo
1. Caso compre a garrafa, observe se ela está bem lacrada.
2. Observe se há rasuras ou impressões de baixa qualidade no rótulo. No rótulo, devem constar as seguintes informações:
a. Nome do produto (denominação de venda conforme legislação)
b. Lista de ingredientes (em ordem decrescente de quantidade)
c. Volume (ml, L)
d. Teor alcoólico (quando for bebida alcoólica)
e. Lote (para rastreabilidade)
f. Validade, porém bebidas alcoólicas com 10% ou mais de álcool são isentas de declarar a validade
g. Identificação do fabricante (razão social, CNPJ, endereço)
h. Número de registro da bebida no órgão competente: MAPA para bebidas alcoólicas e grande maioria das outras bebidas (vinho, cerveja, cachaça, sucos industrializados etc.); ANVISA para certas bebidas não alcoólicas (ex.: energéticos, bebidas adicionadas de nutrientes, suplementos líquidos).
i. Advertências obrigatórias (quando aplicável: “Evite o consumo excessivo de álcool” (bebidas alcoólicas), informação sobre presença de glúten (“Contém Glúten” ou “Não Contém Glúten”), conforme Lei nº 10.674/2003 e outras declarações específicas (adoçantes, cafeína, alergênicos, conforme o caso e as normas da
Anvisa).
3. Desconfie de bebidas com cor turva, sedimentos estranhos ou odor fora do esperado.
4. Prefira estabelecimentos comerciais formais e marcas de bebidas com procedência clara e conhecidas.
5. Desconfie de preços muito baixos e de bebidas vendidas em embalagens improvisadas, sem identificação ou reaproveitadas.
6. Em festas e pontos turísticos, prefira bebidas lacradas ao invés de porções fracionadas.
7. Ao menor sinal de alteração visual depois de beber, busque atendimento de urgência. Tempo é crítico no tratamento.
8. Consuma com moderação. Além da segurança física, o consumo consciente protege sua saúde em longo prazo.
9. E novamente, em caso de sintomas suspeitos, procure emergência médica imediatamente e acione o CEATOX (0800-722-6001).
Se viu algo suspeito (bebida vendida sem nota, garrafa com lacre rompido, rótulo suspeito e com ausência de informações e pessoas passando mal após consumir bebidas sem identificação), relate à Vigilância Sanitária municipal ou à polícia. Em caso de sintomas (conforme relatados neste artigo) após ingestão, procure emergência e informe que há suspeita de intoxicação por metanol e leve amostra da bebida, se possível.
No fim das contas, a fraude com metanol não é apenas sobre uma bebida adulterada: é sobre confiança. Confiança naquilo que se consome. Confiança no mercado que se frequenta. Confiança de que um momento de lazer não se transformará em tragédia. E, enquanto autoridades ampliam fiscalizações, a conscientização do consumidor é uma das armas mais poderosas contra esse tipo de crime.
Compartilhe este alerta com quem você conhece. E, antes de abrir a próxima garrafa, lembre-se: segurança começa pela escolha consciente.
Nosso agradecimento especial ao Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, cuja colaboração foi essencial para trazer informações médicas seguras e de fácil compreensão a este tema tão sensível.
Leia também:
- Os perigos escondidos em garrafas e latas de bebidas (https://foodsafetybrazil.org/perigos-escondidos-em-latas-garrafas-bebidas/)
- Rótulos das bebidas energéticas ocultam, mentem ou não são precisos nos teores de cafeína (https://foodsafetybrazil.org/rotulos-das-bebidas-energeticas-ocultam-mentem-ou-nao-sao-precisos-nos-teores-de-cafeina/)
- Food fraud: dados históricos (https://foodsafetybrazil.org/food-fraud-dados-historicos-foodsafetybrazil/)
Diogo Ximénes tem mais de 17 anos de experiência na área de qualidade e segurança de alimentos, construiu uma trajetória sólida desde o laboratório de controle de qualidade até a liderança de equipes e implementação de sistemas de gestão reconhecidos. Foi responsável pela certificação FSSC 22000 em duas indústrias sucroalcooleiras e pela implantação da ISO 17025:2017 em laboratório industrial, elevando padrões de precisão e conformidade. Durante a pandemia, liderou a produção e regulamentação de 11 produtos antissépticos, unindo conhecimento técnico e visão estratégica. Pós-graduado em Engenharia de Alimentos, certificado como Auditor Líder FSSC 22000 v6 e em Design Sanitário EHEDG, segue comprometido em promover a excelência, inovação e sustentabilidade na indústria de alimentos.
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