Materiais de contato com alimentos soam como tema “emergente” embora não seja assim tão novo na história da humanidade. Pessoas já morreram ou adoeceram por exposição aguda ou crônica a substâncias que migram para bebidas e alimentos, motivando a publicação de regulamentos específicos. Falar um pouco sobre histórias relacionadas, “causos” e erros será a motivação da série de posts sobre o tema.
Inicio a jornada contando minha prosaica experiência ao ler o livro de receitas que minha finada avó paterna me deu (após minhas súplicas) em 2019. Trata-se da 46ª edição do “Dona Benta – Comer Bem, da Cia Editora Nacional de São Paulo, de 1955. Fora um presente muito estimado dado pelo meu avô, e certamente na época um luxo que uma devota esposa prendada recebia do seu provedor esposo. Hoje é uma relíquia.
O primeiro conteúdo que ele apresenta é uma série de “Conselhos úteis” dedicados a materiais de contato com alimentos, no caso, utensílios culinários.
Consegui com uma amiga a edição número 76 de 2004 (a penúltima) e me ocorreu compará-la lado a lado com meu exemplar vintage. Vale a pena ler na íntegra pois ficam claras as preocupações com higiene e segurança. Destaco e comento:
Sobre o cobre
“As panelas de metal exigem cuidados especiais, principalmente as de cobre quando não são estanhadas interiormente. O perigo do uso das panelas de cobre é o azinhavre – veneno dos mais violentos” (versão de 1955). Embora a recomendação tenha seguido vigente meio século depois, este último adjetivo, “veneno dos mais violentos” foi substituído pelo suave “potencialmente venenoso” na versão mais recente.
Abrindo parênteses sobre este perigo, o que chamam de azinhavre é o Cu2(OH)2CO3(s – diidroxicarbonato de cobre-II – a forma oxidada), a “ferrugem” dos utensílios feitos com ligas metálicas que contêm cobre, como por exemplo o latão ou o bronze. Mas esta não é a única substância contendo cobre na fórmula que representa risco à saúde.
O elemento químico cobre, até certa concentração, é essencial ao organismo, porém deletério quando acima dos limites aceitáveis nos alimentos. É considerado contaminante inorgânico, sendo regulamentado pela IN n° 88/2021. Em relação à legislação de material de contato, a RDC Nº 498/2021 define que:
3.1.6. Cobre, latão ou bronze revestidos integralmente por uma camada de ouro, prata, níquel ou estanho tecnicamente puros. Se permite o uso de equipamentos de cobre sem revestimento para elaboração de alimentos particulares a nível industrial e/ou artesanal a critério da autoridade sanitária competente sempre que se demonstre sua função tecnológica de uso.”
2.8. Os materiais metálicos não devem conter mais de 1% (m/m) de impurezas constituídas por chumbo, arsênio, cádmio, mercúrio, antimônio e cobre, considerados em conjunto. O limite individual de arsênio, mercúrio e chumbo não deve ser maior do que 0,01% (m/m).
Por se ligar à enzimas e bloquear ou catalisar reações bioquímicas, o cobre é associado a doenças degenerativas do sistema nervoso. Ainda que o assunto seja controverso no meio científico, já se correlaciona com Parkinson e Alzheimer. Assim, realmente o livro da vovó mandou bem neste alerta.
Continuando os conselhos, o cobre continuou com espaço para as atenções:
“Os tachos de cobre… nunca se deve deixar esfriar neles qualquer doce ou alimento”. O curioso é o enfoque no resfriamento, dado que a migração ocorre em maior velocidade a altas temperaturas, então infiro que a “base científica” da recomendação tenha sido reduzir o tempo de contato com alimentos necessário até reduzir-se a temperatura naturalmente, porém é um procedimento de eficácia limitada.
E finalmente, esta última recomendação foi a mais assustadora, pois me fez pensar quantas pessoas não tenham sido vitimadas pela adoção desta “tecnologia” para dar uma cor a mais nos alimentos dado que parece haver uma implícita história de sintomas agudos:
“Deve-se evitar colocar ácidos e líquidos salgados, gordurosos e oleosos em vasilhas de cobre. Estas geralmente são empregadas para dar cor a conservas…. De facto, ficam assim com uma linda cor verde…Essa coloração é devida à acção de sais de cobre. Embora mínimas as quantidades destes sais, é preciso ter cuidado e moderação no uso de tais legumes. Nem todos os estômagos tem a resistência suficiente para suportá-los por muito tempo“.
E o chumbo
E por fim: “Convém evitar de todo, na economia doméstica, utensílios de chumbo. Os sais de chumbo combinam-se facilmente com o limão ou o vinagre, formando oxiácidos de chumbo, que é veneno”. Já na versão de 2004, quando o uso de tal metal já tinha sido banido do dia a dia, foi feita somente a menção de se evitar o chumbo das panelas de barro. Sobre este perigo nos materiais de contato com alimentos, vamos falar num próximo post.
Outra curiosidade é que a possibilidade do uso do aço inox somente é citada na versão mais recente, ficando de escanteio o alumínio, antes sugerido para aplicações como raladores. Seguindo a mesma linha de não ser recurso disponível na época, os materiais plásticos para contato com alimentos emergem como importantes em tábuas e potes para armazenamento.
E você, sabia que o livro da vovó já trazia conselhos para proteger a saúde das famílias em relação a perigos químicos originários de material de contato? Acha que os livros de culinária devem continuar educando a respeito?
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