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O caso do rato na Coca-Cola: a versão do consumidor e a impossibilidade técnica

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Em 2000, na cidade de Santo André (SP), o consumidor Wilson Batista de Rezende comprou uma garrafa retornável de Coca-Cola. Segundo seu relato, ao consumir parte do conteúdo, percebeu que havia um rato dentro do frasco. O episódio, rapidamente noticiado pela imprensa local, transformou-se em um dos casos mais célebres do direito do consumidor brasileiro, não apenas pela repercussão popular, mas pelos anos de debate técnico, judicial e social que se seguiram.

O processo teve início com o ajuizamento de ação de indenização por danos morais e materiais. Wilson alegava ter sido exposto a risco extremo ao ingerir parcialmente o produto e exigia compensação pela falha de segurança. A empresa, por sua vez, sustentou desde o princípio a impossibilidade técnica de contaminação por corpo estranho de grande porte em linha de produção automatizada. Assim começou um embate que atravessou perícias, recursos, disputas midiáticas e, por fim, sentença definitiva em 2025, mais de duas décadas após o fato.

Utilizar como decorativa e também para capas Imagem criada por inteligência artificial – A sombra do rato sobre a garrafa representa, de forma simbólica, o caso em questão.

A versão do consumidor

De acordo com o processo, Wilson teria adquirido a garrafa em estabelecimento regular, devidamente lacrada, e notado sabor e odor estranhos ao consumir. Ao observar contra a luz, teria constatado a presença de um pequeno roedor dentro do líquido. Fotografias foram apresentadas e, segundo os autos, a garrafa foi preservada como prova.

O impacto emocional de situações assim é evidente. Mesmo sem a ingestão integral do corpo estranho, o consumidor é confrontado com a quebra da confiança, aquilo que a doutrina jurídica chama de violação da legítima expectativa de segurança. É natural, portanto, que a versão tenha gerado forte comoção social.

O argumento da indústria

A defesa da Coca-Cola sempre foi pautada em dados técnicos de processo. O envase de bebidas em escala industrial ocorre em ambientes de alta complexidade tecnológica, compreendendo:

  • Lavagem de garrafas retornáveis em soluções cáusticas a temperaturas elevadas, capazes de remover e destruir matéria orgânica.
  • Rinsagem e esterilização de garrafas novas com jatos de água tratada e ar filtrado.
  • Envase em salas com pressão positiva, tubulações sanitárias e tampas esterilizadas.
  • Inspeção ótica e eletrônica, para detecção de partículas sólidas.
  • Controle de torque e vedação, além de testes de vácuo e pressão em amostras de cada lote.

Com essas barreiras sucessivas, a tese da defesa foi de que seria praticamente impossível que um animal inteiro atravessasse o processo sem ser destruído ou detectado. Para a empresa, a contaminação teria ocorrido posteriormente, como em situações durante o transporte, armazenagem no ponto de venda ou até mesmo por manipulação fraudulenta.

O papel das perícias

O processo judicial incluiu diversas perícias ao longo dos anos. Os especialistas avaliaram:

  • Integridade da tampa e do lacre, verificando sinais de violação.
  • Características do líquido, incluindo pH (tipicamente 2,5 em refrigerantes), presença de CO2 dissolvido e gases de putrefação.
  • Estado do corpo estranho, observando autólise, fragmentação e tempo provável de permanência.
  • Cadeia de custódia da amostra, avaliando se houve risco de contaminação posterior.

Os laudos mais recentes reforçaram a impossibilidade técnica de contaminação em linha de produção, convergindo com a tese da defesa. O argumento central foi que um roedor inteiro não resistiria ao processo de lavagem cáustica nem passaria despercebido por inspeções. Além disso, a degradação observada no corpo estranho sugeria tempo de exposição incompatível com o envase.

O desfecho judicial

Após anos de recursos e debates, a Justiça proferiu sentença final em 2025, negando o pedido de indenização. O juiz reconheceu que não havia prova suficiente do nexo causal entre a fabricação e a presença do animal, acolhendo a tese de impossibilidade técnica.

O caso, porém, não deixou de marcar a jurisprudência. Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que a simples presença de corpo estranho em alimento ou bebida, mesmo sem ingestão, caracteriza dano moral. Essa decisão, em outro processo, fortaleceu a posição do consumidor em casos de risco potencial. Mas no episódio específico de Wilson Rezende, a prova técnica acabou prevalecendo em sentido contrário.

As lições sanitárias e industriais

Do ponto de vista da segurança dos alimentos, casos como este expõem um dilema clássico: a indústria depende de processos de barreira e controle estatístico, mas o consumidor julga pela experiência individual.

Ainda que a probabilidade de falha seja ínfima, a percepção de risco é devastadora para a confiança na marca.

O CDC brasileiro (Código de Defesa do Consumidor) adota a responsabilidade objetiva do fornecedor, ou seja, basta que o produto seja colocado em risco para haver obrigação de reparar. Essa lógica aplica-se em situações em que há corpo estranho inequívoco em garrafa lacrada, sem necessidade de ingerir. Mas também admite a avaliação pericial, que pode afastar o nexo causal, como ocorreu neste caso.

Do lado sanitário, reforça-se a importância da rastreabilidade de lotes e segregação imediata em caso de denúncia; auditorias independentes nas linhas de produção e nos pontos de venda; educação do consumidor sobre canais de reclamação e preservação de evidências e a responsabilidade compartilhada com o varejo, que deve cuidar de armazenagem e exposição.

Entre confiança e expectativa

O episódio do “rato na Coca-Cola” é, no fim das contas, um estudo de caso sobre como indústria, justiça, varejo e consumidor se relacionam em torno da segurança dos alimentos. A fábrica opera com HACCP, BPF e sistemas robustos de segurança; o varejo precisa preservar integridade até a venda; o consumidor espera transparência e previsibilidade; e a Justiça busca equilibrar risco técnico e dignidade da pessoa.

Mais de vinte anos depois, a sentença absolveu a empresa, mas o caso permanece como lição.

Em segurança dos alimentos, não basta ser tecnicamente improvável que algo aconteça. É preciso garantir que o consumidor acredite na integridade do produto. Essa confiança é tão frágil quanto uma garrafa retornável: basta uma fissura para se perder.

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