Inicio este artigo com uma história que muitos já conhecem: durante a corrida espacial, para garantir que uma espaçonave decolasse com reduzida probabilidade de que ocorressem falhas, afinal poderiam ser desastrosas levando a explosões e a perda de anos de trabalho e planejamento, colocando a perder milhões de dólares, a NASA recorreu a uma metodologia de análise, gestão, prevenção e controle de riscos já sedimentada na época para a indústria eletromecânica, o FMEA, que é a Análise do Modo e do Efeito das Falhas.
A seguir o desafio aumentou: levar não só naves inanimadas, mas pessoas ao espaço!
Os engenheiros da NASA, então, juntamente com os engenheiros da Pillsbury, que seria a provedora de alimentos para os astronautas, derivaram do FMEA uma nova metodologia para identificação de perigos que poderiam contaminar os alimentos, fossem eles químicos, físicos ou biológicos, com a determinação de medidas de controle em pontos críticos onde fosse possível minimizar a níveis aceitáveis ou mitigar estes riscos, e esta metodologia foi chamada de Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle, HACCP em inglês.
Considerando que era possível que com uso do HACCP a NASA garantisse alimentos seguros aos astronautas, poderia obviamente ser uma ferramenta útil também aqui na Terra, e o HACCP se tornou objeto de interesse de muitas companhias de alimentos e bebidas inicialmente nos EUA, ao ponto que em 1972 o FDA ditou a necessidade de implantação do HACCP para produção de alimentos enlatados de baixa acidez.
Em 1991, com forte influência dos EUA que já haviam sedimentado a metodologia como eficaz, o Codex Alimentarius publica os 7 Princípios do HACCP, e logo depois, o HACCP foi recomendado pela OMC, FAO e OMS, ganhando propulsão como elemento importante para o comércio internacional e passou a ser exigido por segmentos do setor alimentício na União Europeia e no Canadá.
Mas a coisa ganha mesmo força quando grandes players do segmento de alimentos começam a exigir em negociações business to business dos fornecedores que compunham sua cadeia de suprimentos que o HACCP fosse implementado, e logo os profissionais do ramo perceberam que era uma metodologia bastante eficiente e útil para evitar a contaminação de produtos, evitando reprocesso, devoluções, reclamações e processos judiciais, muito mais que o tradicional controle de qualidade baseado em estatísticas de amostragem e realização de análises.
Os 7 Princípios do HACCP, porém, não são um modelo de gestão, mas uma sistemática operacional, e assim, existiam lacunas a serem preenchidas, pois é carente em requisitos que deem uma sustentação mais robusta, por exemplo: para garantir efetividade no controle e atualização de documentos ou para prover a competência das pessoas que o executam faltam sistemáticas de comunicação que considerem novos perigos por inputs do mercado, dos clientes ou outros stakeholders, ou uma rotina que impulsione a melhoria contínua, seja via auditorias internas ou pelo tratamento de não conformidades que impulsionam a dinâmica do PDCA.
Por isso, logo começaram a surgir iniciativas por parte de diversos países na criação de normas que tinham como base o HACCP, porém, mais robustas por contar com a introdução de elementos de sistemas de gestão aplicáveis ao tema Food Safety. Em 2002, saindo na dianteira, Dinamarca e Holanda publicam suas normas de gestão em Food Safety; em 2004 Alemanha e França publicam a IFS – International Food Standard; logo na sequência Inglaterra publica a BRC Global Standard for Food Safety.
O Brasil também publicou a NBR 14900, mas teve pouca aceitação porque países importadores obviamente preferem que sejam cumpridos seus próprios protocolos, e tem mais força para impor quem tem mais influência no comércio global. Por isso, a NBR 14900 nasceu morta, fora que quando do seu lançamento já estava em discussão adiantada a ISO 22000.
A publicação da ISO 22000 foi ansiosamente esperada, pois se acreditava que ela pudesse suprir uma necessidade de consenso internacional. Supunha-se que, uma vez certificado nesta norma como fornecedor, as demais empresas clientes não precisariam realizar auditorias de segunda parte, isso evitaria diversas auditorias, o que significaria minimizar despesas e evitar a geração de burocracia redundante. Enfim, em 2005 foi publicada a ISO 22000 – Sistemas de Gestão da Segurança de Alimentos, uma norma aplicável a qualquer empresa do segmento de alimentos, inclusive insumos e embalagens, com a ambição de ser compatível e harmonizar um sistema de gestão com base no HACCP, e mais, integrável a um SGI com a Norma ISO 9001 voltada para qualidade.
Mas a ISO 22000 não foi um consenso, foi um “quase” consenso, pois algumas empresas não a aceitaram completamente, alegando que havia uma carência especialmente quanto a requisitos que tratassem temas de apoio ao HACCP. A possível solução veio então com um protocolo denominado FSSC 22000 que integrava a ISO 22000 com a ISO/ TS 22002-1 que tem um aprofundamento em GMP, MIP, e também requisitos visando biossegurança, e que logo contemplará também requisitos para prevenir fraudes como já sinalizou o último encontro do GFSI ocorrido no Japão este ano.
Ainda assim não houve consenso, pois por diferentes motivos, muitas empresas não optaram por estruturar seu sistema de gestão em Food Safety partindo da estrutura de requisitos normativos da FSSC 22000, algumas escolheram a BRC por serem inglesas ou por exportarem muito para o Reino Unido, outras a IFS, também devido a exigências especificas de clientes e seus mercados consumidores.
Parcialmente a questão foi solucionada pelo Global Food Safety Iniciative, o GFSI, que realizou um trabalho analisando as normas de Gestão em Food Safety e suas compatibilidades, reunindo em discussões os grandes players do mercado de alimentos e bebidas, fossem produtores, atacadistas, varejistas, distribuidores, etc, e buscando o tão esperado consenso, ficou determinando que seriam consideradas compatíveis as normas FSSC 22000, a SQF, a IFS e a BRC, o que a priori, passou a ser aceito por organizações como os grupos Carrefour, Walmart, Danone, Kraft Food, Nestlé, Unilever, etc, que têm muita força pela influência nas cadeias de abastecimento e que participam e ajudam a ditar as regras no GFSI.
Enfim um consenso então? Não, quase… novamente!
O mercado é extremamente dinâmico, e particularmente, já perdi a ingenuidade de acreditar que este consenso absoluto chegará! É claro que todos os esforços do GFSI são válidos, e vem sim trazendo as companhias para, se não um consenso normativo, ao menos para um consenso de prioridades e foco, mas quem dita no final que norma uma organização deve implementar são as relações business to business, ou seja, aquilo que os clientes desejam.
Para contextualizar o que digo num exemplo, recentemente um importante player produtor de derivados de coco como flocos, leite de coco, óleo de coco, coco ralado e água de coco que possui certificação FSSC 22000 para todas as suas linhas industriais, certificou também na Norma BRC suas linhas de água de coco, cuja boa parte do destino é o Reino Unido, e portanto, seus clientes ingleses fizeram esta exigência para fechar negócios. Esta mesma empresa diz também que as auditorias de segunda parte não se extinguiram, e em 2018 perceberam um forte ressurgimento desta prática, clientes que querem auditar com base em seus próprios protocolos com requisitos bem específicos.
No final, como profissional da área, sempre retorno à raiz, afinal um bom sistema de gestão que tenha como base um eficiente programa de BPF e MIP, que tenha estruturado bem a gestão das rotinas via POPs, além claro, de planos de HACCP sólidos e confiáveis, já terá um excelente arcabouço para estruturar seu sistema de gestão em Food Safety, só arredondando detalhes, seja para que norma for.
Gercilio Oliveira
Parabéns pelo artigo Marcos! Muito didático e esclarecedor. Como advogado sinto muita a falta de um repositório legal para a consulta das normas sanitárias vigentes. Também percebo vários conflitos de regulamentação entre os entes responsáveis. As causas desse fenômeno também me intrigam.
Marco T Bertolino
Muito obrigado Gercilio. Só lembrando que Normas como FSSC 22000, BRC, etc são protocolos adotados voluntariamente, por empresas que querem ter um sistema de gestão em food safety que lhes permita criar uma base para a produção de alimentos seguros, e são diferentes da legislação sanitária, que neste caso não é uma adoção voluntária, mas uma obrigação a ser devidamente cumprida pelas empresas que se propõe a produzir alimentos, embalagens aditivos, etc. No entanto, para cumprir normas em food safety, ter que cumprir a legislação é conditio sine qua non. Um abraço.
ALEXANDRE CARDOSO
Excelente texto para esclarecer o pessoal que não tem vivência com sistemas de gestão Food Safety.
Abraço
Marco T Bertolino
Obrigado Alexandre, é sempre interessante resgatar velhas histórias para contextualizar quem está chegando ao mundo do food safety… abraço.
Claudia Santos
Muito bom o artigo, parabéns! Veio de encontro com dúvidas de quem está buscando se especializar na área de gestão de segurança dos alimentos. Obrigada.
Marco T Bertolino
Que bom que o artigo foi útil Claudia.
Nathalie Leite
Parabéns! Extremamente lógica a forma como foi escrito!
Marco T Bertolino
Obrigado Nathalie, que bom que gostou do artigo!
Priscilla Ferreira Correa
Artigo bem esclarecer, explicando a evolução das nornas para segurança alimentar.
Kaio Cabral
Artigo bem explicativo mostrando a evolução nas normativas de segurança alimentar como também na existências de algumas. A importância de está com a empresa certificada para o mercado cada vez mais exigente.
Luiz Duarte
O mercado da indústria de alimentos com o passar dos anos, precisou se adequar a normas que garantissem a segurança dos alimentos para o consumidor entre ela o APPCC, excelente artigo.
Ana Mary Amorim
Muito esclarecedor. Concordo plenamente com a sua colocação em relação a ter consolidado BPF, MIP E HACCP, pois muitas vezes as corporações vislumbram outras certificações tendo ainda muita fragilidade e gaps nos seus processos.
Karina Barbosa
Muito bom ter um artigo onde estejam todas as normas juntas para uma comparação !
Érika Teixeira
Excelente artigo, deixa claro e concordo quando o senhor coloca que um bom BPF, MIP, APPCC e POP`s são suficientes para garantir uma produção direcionada para a segurança dos alimentos. O que de fato importa é o comprometimento em oferecer um alimento de qualidade e próprio para consumo.
Natalia Cavalcante Cintra de Macedo
Excelente texto. De forma clara e lacônica conseguiu descrever toda a trajetória dos preceitos de Food Safety.
Parabéns!
Mayra Pedrosa
Muito bom o artigo, bem esclarecedor, principalmente porque reuniu as normas.
LUIZ WILSON CAVALCANTI DUARTE
As normas são essenciais, para a segurança dos alimentos e o HACCP é uma peça fundamental, excelente artigo.
AMANDA LOPES DA SILVA
Muito interessante, num só lugar conhecer a evolução da normalização para o setor de alimentos, alem de conhecer as normas associadas ao setor, bastante esclarecedor!
Ângela Regina Souza Santos
O processo histórico da origem e consolidação das regulamentações para o food safety por muitos são desconhecidos, principalmente para aqueles que não vivenciaram a criação. O artigo vem a colaborar, trazendo em um só local em uma linha temporal as suas correlações e complementariedades. Outro aspecto, que muito pouco comentado a base do HACCPP no FEMEA, tão utilizado para outros processos industriais, como estudo por STAMATIS (1995).
Rosemary Gallindo
Parabéns pelo artigo! Muito interessante a trajetória e entrelaçamento das normas. Gostei muito de ouvir que o FMEA, uma ferramenta muito usada pela NASA e fabricantes de automotivas, foi a inspiração para o HACCP!
Beatriz de Sousa Luiz
Sou aluna do IPOG em Eng de Segurança de Alimentos. É muito esclarecedor o modo que dirige seu texto, práticas como essas são necessárias para grande ou pequeno porte. Parabéns.
Fabiana Vicente
Excelente a forma como aborda de maneira clara e concisa este tema e melhor ainda a forma como arremata o assunto, de que uma vez que garantamos um sistema de gestão estruturado, embasado em sólidos programas de pré- requisitos e planos HACCP, estaremos preparados para atender facilmente seja qual for a norma exigida!!! Parabéns pelo artigo!
Gabriela Ferreira Floriano
Achei o final interessantíssimo, pois as empresas precisam estar cientes da necessidade de ter BPF, MIP e HACCP como bases consolidadas para então pensar em certificações. As vezes vemos muitas organzações perdidas nas tantas normas, sem saber por onde começar. Muito interessante o artigo. Parabéns!!!
Sonja de França Andrade
Achei que o final do artigo foi a cereja do bolo. Não podemos jamais esquecer alguns dos pilares que fazem a segurança de alimentos que são: Programa de BPF, MIP e os POPs.
Marco Túlio Bertolino
No final, se há uma boa base, tudo fica simples, seja qual norma for.
Ricardo Silva Souza
Ótimo material Professor, os esclarecimentos sobre a busca inicial da segurança dos alimentos e o desenvolvimento rápido para os sistemas de gestão são muito enriquecedores.
Marco Túlio Bertolino
Obrigado Ricardo.
Pedro
Parabéns, conseguiste desenrolar o nó em minha cabeça.
Marco Túlio Bertolino
Oi Pedro, realmente é de dr um nó….rs. Que bom que o artigo ajudou. Abraço.
Tatiana Aleshinsky
É frustante saber que tantos esforços para encontrar uma legislação abrangente acabem sempre num “quase”.
Pelo menos eu consegui entender melhor esse assunto que ainda não domino. Valeu!
Marco Túlio Bertolino
Nem me fale!! E francamente, um consenso numa norma única parece algo utópico ainda. O que temos de melhor é a tentativa de consenso via GFSI.
Gutembergue Matias
Muito bom, Túlio.
Artigo bastante esclarecedor.
Seria tão mais simples se houvesse esse consenso. Sabemos que a escolha vai muito do objetivo e desejo de cada clientes. Quem acaba ficando maluco e sendo obrigado a conhecer todos essa normas são os profissionais de Food Safety.
Wêdja Lucena
Excelente conteúdo! É um mundo do Food Safety que se descortina, cada vez mais para as pequenas indústrias! Ao nível que as exigências aumentam, entendemos a importância de se ter o Manual de Boas Práticas implementado, pois é a base de todas as normas.
Lidiane
Concordo, o uso das ferramentas de controle da qualidade sejam quais forem, devem funcionar.
Izabel Nataly F. de França Silva
Professor Túlio, o texto é excelente.
Em virtude de ter experiência apenas em indústrias de pequeno porte as quais não possuem nenhuma certificação eu não tinha ideia de todo esse contexto que levou a existências de tantas normas em food safety, assim como a origem das mesmas.
Por exemplo tinha ouvido a seguinte citação: o cliente x vai exigir a implantação de norma… mas qual o critério para a escolha da norma? Qual a diferença entre elas?
FSSC, IFS, BRC, GFSI…
Parabéns!!! Através de uma leitura rápida pude me atualizar neste assunto tão atual e cada vez mais importante para profissionais de alimentos.
Marco Túlio Bertolino
Coisa boa ler isso, muito feliz que tenha gostado!!
Suzana Ebrahim Wanderley
O universo da qualidade é dinâmico e portanto se encontra em constante mudança. Cabe a nós, profissionais do segmento, nos adequarmos mediante incessante atualização e compartilhamento de informações. O debate da equipe multidisciplinar, ou mesmo dos funcionários envolvidos no processo, nos dá subsídios para abrir nossos horizontes, otimizar os processos e conquistar a excelência almejada.
Mariangela Inácio Marques
Artigo excelente, Marco!
É muito importante as organizações do âmbito alimentício estarem familiarizadas com as normas existentes e ponderar o que deve ser levado em conta de acordo com a realidade da empresa.
Juliana Pedrosa
São várias normas, mas entendo que todas elas tem em comum garantir a saúde do nosso consumidor, cliente final… Então é definir aquela que mais se adequa ao seu objetivo e mãos a obra.
Marco Túlio Bertolino
Exatamente, e cada uma acaba sendo mais apropriada a um contexto.
Andrea Martins
Excelente entender o contexto da origem das normas. E a conclusão é que independente da norma precisamos ter as BPF robustas e bem implementadas e fazer o ciclo PDCA gerar para as necessidades de Food Safety.
Muito obrigada pelo excelente artigo.
Marco Túlio Bertolino
Andrea, exatamente, se temos um bom sistema baseado no PDCA, BPF e HACCP, fica tudo mais fácil, seja qual norma for.
Matheus Ricarte Ferreira
Com uma base consolidada, a dor de cabeça (se existir) será mínima na hora de buscar as certificações desejadas. Ótimo artigo!
Marco Túlio Bertolino
Verdade, base: HACCP + PDCA + GMP….