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Bebidas adulteradas com metanol: como ocorrem, riscos e como se proteger

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O Food Safety Brazil recentemente postou uma matéria sobre o metanol e bebidas adulteradas. Não obstante, devido ao fato deste assunto (infelizmente) não sair das redes sociais e do imaginário coletivo dos consumidores, resolvemos contribuir com mais um post, com intuito de trazer uma outra abordagem (ou apenas complementar outros posts) sobre este importante tema.

Você sabia que uma única dose de bebida adulterada pode ser suficiente para deixar sequelas irreversíveis, ou até tirar uma vida?

Imagem: O Globo

Somente em setembro deste ano, só na Grande São Paulo, pelo menos três pessoas morreram após consumir bebidas alcoólicas adulteradas com metanol. E outras dezenas acabaram internadas com sintomas graves, como perda de visão, coma e sequelas neurológicas. Este alerta é tão importante quanto urgente. O assunto não é só policial: é saúde pública, confiança do mercado e risco real para quem consome.

Talvez pareça algo distante, restrito a bares suspeitos ou festas clandestinas, mas a verdade é que a fraude pode estar em qualquer copo, em qualquer cidade.

O perigo nem sempre é visível: o metanol é transparente e praticamente não tem odor distinto. Por isso, entenda o que está por trás dessa ameaça.

Neste artigo você vai entender:

  • Como o metanol pode chegar às bebidas
  • Por que sua presença é tão perigosa
  • Como identificar sinais e sintomas em caso de intoxicação
  • O que produtores, comerciantes e consumidores podem fazer para reduzir riscos

Este artigo foi desenvolvido com a colaboração técnica do Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, CRM/ PE 24196, que revisou e contribuiu especialmente para a seção médica sobre toxicologia do metanol e condutas clínicas. A contribuição médica visou garantir a acurácia no detalhamento dos sinais, sintomas e orientações de urgência.

O que é e como o metanol pode chegar às bebidas

Imagem: O Globo

Numa linguagem bem simples, o metanol é um tipo de álcool que não deveria estar em nenhuma bebida. Ele é usado como combustível e solvente, mas quando ingerido pelo ser humano (por ingestão direta, absorção dérmica ou inalação), transforma-se em substâncias altamente tóxicas no fígado, primeiro em formaldeído e depois em ácido fórmico.

Essas substâncias “envenenam” o corpo de dentro para fora: provocam uma forte acidificação do sangue e afetam principalmente os olhos e o sistema nervoso central. É daí que vêm os relatos de pessoas que ficaram com a visão borrada, cegueira permanente ou até faleceram após consumir bebidas adulteradas com metanol.

Fontes naturais e de processo

  • Em frutas como maçãs, uvas e cítricos, a pectina presente nas cascas e polpas pode ser degradada por enzimas (como a pectina metilesterase), naturais da própria fruta ou produzidas por microrganismos presentes no mosto. Essa reação libera metanol, que pode se acumular e ser concentrado na destilação. Em destilados de frutas (ex.: algumas aguardentes frutadas), isso é relevante. Pequenas quantidades podem ser toleradas em processos naturais nos destilados de frutas, mas em níveis elevados são resultado de má prática ou fraude. A quantidade identificada na bebida ajuda a diferenciar se é “natural ou criminoso”.
  • Na cana-de-açúcar, a formação natural de metanol tende a ser menor, mas não é zero, dependendo do processo de matéria-prima e de eventuais contaminações microbiológicas.
  • Cortes de destilação malfeitos: durante a destilação, diferentes frações (“cabeça”, “coração” e “cauda”) concentram compostos distintos. O metanol tem ponto de ebulição mais baixo que o etanol e costuma concentrar-se nas frações de cabeça; se o operador de destilação não faz cortes apropriados ou usa equipamento impróprio, uma fração de metanol pode passar para o produto final. Em operações legais e controladas, as cabeças são descartadas; em operações amadoras ou sem técnica, o risco aumenta.

Adição deliberada de metanol ou álcoois industriais

  • O risco maior vem da adição intencional: uso de álcool combustível como matéria-prima para fabricar bebidas que são vendidas como cachaça, aguardente ou vodca. Esse álcool pode ser diluído em água e até receber óleo fúsel (resíduo de destilação) para simular características sensoriais. Esse tipo de prática não é comprovada em larga escala, mas é tecnicamente possível e representa risco gravíssimo. Só investigações periciais podem confirmar.

Misturar ou reprocessar álcool combustível/industrial para consumo humano é perigoso, ilegal e caracteriza fraude.

Erros e más práticas de armazenamento e manipulação

  • Diluições e reenchimento: abrir uma garrafa, misturar com outra substância e fechar novamente, ou a reutilização de embalagens com produtos de outras origens sem a devida descaracterização de rótulo, podem introduzir contaminantes e fazer com que esse item seja encaminhado para consumo humano, intencionalmente ou não.

Intersecção entre economia informal e crime organizado

  • Em mercados onde há forte pressão por preços baixos, sobra espaço para cadeias paralelas: fornecedores sem nota fiscal, pequenos revendedores, pontos de venda sem controle sanitário. Onde existe essa vulnerabilidade, esquemas criminosos (roubo de álcool, mistura com solventes, revenda em embalagens não identificadas) podem prosperar.

O que o consumidor não vê

  • O problema é que o metanol não altera significativamente o sabor ou cheiro. Muitas vezes, a bebida adulterada parece “normal”. Por isso, a percepção visual e a desconfiança em relação ao contexto de compra são essenciais.

Como identificar e investigar uma suspeita

Sintomas de alerta:

É importante entender que sintomas leves (dor de cabeça, enjoo, tontura) podem ser confundidos com “ressaca”, mas quando aparecem dificuldade para enxergar (visão turva, halos de luz ou neblina) ou alteração na respiração, é sinal de alerta. Nesses casos, não espere melhorar sozinho. Procure atendimento imediatamente e informe que pode ser intoxicação por metanol. Levar a garrafa ou uma amostra da bebida ao hospital pode ajudar a confirmar a causa.

O perigo é ainda maior porque os sintomas nem sempre aparecem imediatamente. Muitas vezes, a pessoa toma a bebida e só depois de várias horas, quando já não relaciona o mal-estar ao que bebeu, começam dores de cabeça, náuseas, tontura e visão embaçada. É o chamado “período de latência”, que atrasa o diagnóstico e agrava os riscos.

Quando a intoxicação evolui, podem surgir sintomas mais graves: respiração acelerada, convulsões, confusão mental, coma e falência de órgãos. É uma situação de urgência médica que exige hospitalização imediata.

Por isso, se alguém apresentar sintomas visuais ou neurológicos depois de consumir bebida alcoólica suspeita, deve procurar atendimento o quanto antes e avisar sobre a possibilidade de metanol, levando consigo, se possível, a garrafa ou amostra da bebida consumida. Isso ajuda a equipe médica a agir rápido, com os tratamentos disponíveis, como uso de antídotos e até hemodiálise, se for o caso.

Para identificação técnica a partir de amostras suspeitas

  • GC-FID / GC-MS (cromatografia gasosa com detector adequado) é o padrão-ouro para quantificar metanol e outros álcoois (etanol, propanol, butanóis e congêneres). A análise de headspace (espaço de cabeça) é recomendada para voláteis em matrizes alcoólicas.
  • Testes rápidos de campo: existem kits colorimétricos e tiras que apontam adulteração grosseira (não substituem GC), úteis para triagem em fiscalização; resultados positivos devem ser confirmados por laboratório credenciado.
  • Análise de congêneres e perfil isotópico: em investigações complexas, técnicas como isótopos estáveis podem ajudar a distinguir etanol produzido por fermentação de etanol industrial, e o “fingerprint” químico revela adulterações intencionais.

O Brasil conta com os CEATOX (Centros de Informação e Assistência Toxicológica), que oferecem orientação imediata para profissionais de saúde e população em casos de intoxicação e suspeitas de intoxicação. O contato pode ser feito pelo telefone 0800-722-6001 (Disque-Intoxicação), disponível 24h em todo o país.

A presença de metanol em bebidas não é um acidente: é o ponto de encontro entre processos mal conduzidos, adulteração criminosa e brechas de fiscalização. A proteção vem de três frentes: produtores responsáveis, fiscalização efetiva e consumidores atentos.

O que produtores, pontos de venda e consumidores devem reforçar

  • Controle rigoroso de fornecedores e notas fiscais.
  • Boas práticas de destilação: descarte de cabeças, controle de temperatura, manutenção preventiva de equipamentos.
  • Rotulagem e rastreabilidade de lotes.
  • Amostragem e ensaios periódicos para parâmetros básicos (teor alcoólico real versus declarado e testes para quantificar metanol).
  • Denúncia e cooperação com vigilância sanitária local quando houver suspeita.
Imagem: IA para o ebook “Do copo ao negócio: guia completo para empreender no mercado de bebidas

O que os consumidores devem observar na bebida antes do consumo

1. Caso compre a garrafa, observe se ela está bem lacrada.

2. Observe se há rasuras ou impressões de baixa qualidade no rótulo. No rótulo, devem constar as seguintes informações:
a. Nome do produto (denominação de venda conforme legislação)
b. Lista de ingredientes (em ordem decrescente de quantidade)
c. Volume (ml, L)
d. Teor alcoólico (quando for bebida alcoólica)
e. Lote (para rastreabilidade)
f. Validade, porém bebidas alcoólicas com 10% ou mais de álcool são isentas de declarar a validade
g. Identificação do fabricante (razão social, CNPJ, endereço)
h. Número de registro da bebida no órgão competente: MAPA para bebidas alcoólicas e grande maioria das outras bebidas (vinho, cerveja, cachaça, sucos industrializados etc.); ANVISA para certas bebidas não alcoólicas (ex.: energéticos, bebidas adicionadas de nutrientes, suplementos líquidos).
i. Advertências obrigatórias (quando aplicável: “Evite o consumo excessivo de álcool” (bebidas alcoólicas), informação sobre presença de glúten (“Contém Glúten” ou “Não Contém Glúten”), conforme Lei nº 10.674/2003 e outras declarações específicas (adoçantes, cafeína, alergênicos, conforme o caso e as normas da
Anvisa).

3. Desconfie de bebidas com cor turva, sedimentos estranhos ou odor fora do esperado.

4. Prefira estabelecimentos comerciais formais e marcas de bebidas com procedência clara e conhecidas.

5. Desconfie de preços muito baixos e de bebidas vendidas em embalagens improvisadas, sem identificação ou reaproveitadas.

6. Em festas e pontos turísticos, prefira bebidas lacradas ao invés de porções fracionadas.

7. Ao menor sinal de alteração visual depois de beber, busque atendimento de urgência. Tempo é crítico no tratamento.

8. Consuma com moderação. Além da segurança física, o consumo consciente protege sua saúde em longo prazo.

9. E novamente, em caso de sintomas suspeitos, procure emergência médica imediatamente e acione o CEATOX (0800-722-6001).

Se viu algo suspeito (bebida vendida sem nota, garrafa com lacre rompido, rótulo suspeito e com ausência de informações e pessoas passando mal após consumir bebidas sem identificação), relate à Vigilância Sanitária municipal ou à polícia. Em caso de sintomas (conforme relatados neste artigo) após ingestão, procure emergência e informe que há suspeita de intoxicação por metanol e leve amostra da bebida, se possível.

No fim das contas, a fraude com metanol não é apenas sobre uma bebida adulterada: é sobre confiança. Confiança naquilo que se consome. Confiança no mercado que se frequenta. Confiança de que um momento de lazer não se transformará em tragédia. E, enquanto autoridades ampliam fiscalizações, a conscientização do consumidor é uma das armas mais poderosas contra esse tipo de crime.

Compartilhe este alerta com quem você conhece. E, antes de abrir a próxima garrafa, lembre-se: segurança começa pela escolha consciente.

Nosso agradecimento especial ao Dr. Igor Daniel Moreira Ferreira, cuja colaboração foi essencial para trazer informações médicas seguras e de fácil compreensão a este tema tão sensível.

Leia também:

  • Os perigos escondidos em garrafas e latas de bebidas (https://foodsafetybrazil.org/perigos-escondidos-em-latas-garrafas-bebidas/)
  • Rótulos das bebidas energéticas ocultam, mentem ou não são precisos nos teores de cafeína (https://foodsafetybrazil.org/rotulos-das-bebidas-energeticas-ocultam-mentem-ou-nao-sao-precisos-nos-teores-de-cafeina/)
  • Food fraud: dados históricos (https://foodsafetybrazil.org/food-fraud-dados-historicos-foodsafetybrazil/)

Diogo Ximénes tem mais de 17 anos de experiência na área de qualidade e segurança de alimentos, construiu uma trajetória sólida desde o laboratório de controle de qualidade até a liderança de equipes e implementação de sistemas de gestão reconhecidos. Foi responsável pela certificação FSSC 22000 em duas indústrias sucroalcooleiras e pela implantação da ISO 17025:2017 em laboratório industrial, elevando padrões de precisão e conformidade. Durante a pandemia, liderou a produção e regulamentação de 11 produtos antissépticos, unindo conhecimento técnico e visão estratégica. Pós-graduado em Engenharia de Alimentos, certificado como Auditor Líder FSSC 22000 v6 e em Design Sanitário EHEDG, segue comprometido em promover a excelência, inovação e sustentabilidade na indústria de alimentos.

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Fraude com metanol em bebidas destiladas

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Apesar de terem estruturas químicas quase idênticas, o etanol (C2H5OH), com dois carbonos, e o metanol (CH3OH), com apenas um, são álcoois que seguem trajetórias metabólicas radicalmente distintas no organismo humano.

O metanol é convertido em formaldeído e ácido fórmico, compostos altamente tóxicos que podem provocar acidose metabólica, neurotoxicidade e cegueira irreversível. Já o etanol, embora também tóxico se ingerido em excesso, é metabolizado em acetaldeído e posteriormente em ácido acético, que pode ser integrado ao metabolismo energético, permitindo seu consumo moderado sem efeitos graves à fisiologia.

ADH (Álcool Desidrogenase)/ ALDH (Aldeído Desidrogenase)/ Em resumo: ADH = álcool  aldeído e ALDH = aldeído  ácido.

O uso do etanol por humanos remonta a milênios, com evidências arqueológicas de cervejas e vinhos na Mesopotâmia, Egito e China antiga, frequentemente integrados a rituais religiosos e celebrações comunitárias. A destilação, desenvolvida na Idade Média, permitiu concentrar o álcool em bebidas destiladas como uísque, vodca e gim, difundidas em sociedades europeias.

Ao longo da história, o consumo de etanol consolidou-se não apenas como substância recreativa, mas também como mediador social e cultural, presente em festividades, cerimônias e encontros familiares.

Por isso, o consumo moderado de etanol, definido segundo padrões internacionais como até uma dose padrão por dia para mulheres e até duas para homens, correspondendo a aproximadamente 14 g de álcool puro por dose, induz efeitos leves sobre o sistema nervoso central, como relaxamento e desinibição, sem comprometer significativamente a integridade fisiológica.

Essa diferença entre homens e mulheres reflete variações fisiológicas e metabólicas, incluindo menor volume corporal de água, menor atividade da enzima álcool desidrogenase e diferenças hormonais em mulheres, que tornam a metabolização do álcool mais lenta.

Em contraste, o metanol permanece restrito a aplicações industriais e é absolutamente incompatível com a ingestão humana.

A intoxicação aguda por etanol resulta da ingestão de doses superiores à capacidade metabólica do fígado, normalmente acima de 0,5 g/ kg em adultos. Clinicamente, manifesta-se inicialmente por desinibição, euforia e alterações na coordenação motora, evoluindo em níveis mais elevados para sedação, depressão respiratória, hipoglicemia e, em casos extremos, coma etílico. O efeito depende de fatores individuais, incluindo peso corporal, gênero, tolerância e presença de alimentos no trato gastrointestinal.

Já no caso do metanol, a ingestão de quantidades comparáveis é rapidamente letal ou causa cegueira, devido à formação de formaldeído e ácido fórmico, mostrando que a similaridade estrutural entre os álcoois não se traduz em equivalência toxicológica.

Tabela: Comparativo da toxidade entre etanol e metanol

ETANOL METANOL O que significa Observações
LD50 oral (ratos) (mg/kg) 7.000 – 10.000 mg/kg 5.600 – 7.000 mg/kg Dose letal média em animais (quanto menor, mais tóxico) Valores clássicos de toxicologia; ratos, não humanos.
Dose letal estimada em humanos 300 – 400 ml de etanol puro (4–5 g/kg) 30 – 100 ml de metanol puro (0,5–1,5 g/kg) Quantidade capaz de causar morte em um adulto médio Estimativas médias; varia com peso, sexo e tolerância.
Dose mínima para efeitos graves 0,5 g/kg já provoca intoxicação (embriaguez intensa) 10 ml pode causar cegueira permanente Primeira dose com efeitos severos Dados clássicos de intoxicação; metanol pode ser tóxico mesmo em doses muito baixas.
NOAEL (dose sem efeitos adversos observáveis) 0,25 g/kg/dia (uso crônico) Não estabelecido em humanos; qualquer ingestão pode ser perigosa Ponto de segurança relativo Valor do etanol é apenas estimativa (consumo moderado); para metanol não há nível seguro.
  • LD50 = Lethal Dose 50%) = Dose Letal para 50%” = Indica a quantidade de uma substância necessária para matar 50% de um grupo de animais de teste, geralmente roedores, em um determinado período.
  • NOAEL = Observed Adverse Effect Level = Nível sem Efeito Adverso Observado.

Sintomas e tratamento

Após a ingestão de metanol, os sintomas podem surgir em fases distintas:

  1. Fase inicial, que ocorre em até 12 horas, em que predominam manifestações inespecíficas como náuseas, vômitos, dor abdominal, tontura, fraqueza, sonolência e sinais semelhantes à embriaguez;
  2. Fase latente, entre 6 e 24 horas, em que a pessoa pode aparentar melhora, mas o organismo já está convertendo o metanol em compostos tóxicos;
  3. Fase tardia, geralmente após 12 a 24 horas, podendo se estender até 72 horas, sobretudo se houver ingestão concomitante de etanol, em que surgem complicações graves, como visão borrada, fotofobia, “pontos brilhantes” que evoluem para cegueira, além de falta de ar por acidose metabólica, agitação, confusão mental, convulsões e até coma.

A intoxicação por metanol deve ser tratada como uma emergência médica e o atendimento precisa começar o mais rápido possível, de preferência ainda antes do surgimento dos sintomas graves. O objetivo inicial é impedir que o metanol seja transformado em formaldeído e ácido fórmico, os verdadeiros responsáveis pela toxicidade.

Para isso, utilizam-se antídotos específicos, sendo que o fomepizol é a primeira escolha, mas na ausência dele pode-se administrar o próprio etanol, que compete pela enzima álcool-desidrogenase. Essa enzima é um problema porque é justamente ela que transforma o metanol em formaldeído e, em seguida, em ácido fórmico, compostos altamente tóxicos que provocam acidose metabólica, lesões neurológicas e danos irreversíveis à visão.

Ao bloquear a ação da álcool-desidrogenase, os antídotos impedem a formação desses metabólitos perigosos, mantendo o metanol inofensivo até que seja eliminado do organismo.

Além disso, aplica-se bicarbonato de sódio intravenoso para corrigir a acidose metabólica e ácido fólico ou leucovorina para favorecer a conversão do ácido fórmico em substâncias menos nocivas.

Nos casos mais graves, quando há alterações visuais, acidose severa ou altos níveis de metanol no sangue, a hemodiálise é indicada, pois remove rapidamente tanto o metanol quanto seus metabólitos. O tratamento pode durar de 24 a 72 horas, dependendo da evolução clínica, e deve ser iniciado imediatamente após a suspeita de ingestão, sem esperar a confirmação laboratorial.

A rapidez é essencial: quanto mais cedo o paciente recebe o antídoto e o suporte adequado, maiores são as chances de sobrevivência e menores os riscos de sequelas permanentes, como a cegueira.

Custos e rotas de fraude

O metanol é obtido principalmente a partir do gás natural, por meio da síntese do gás de síntese (CO + H2) em reatores catalíticos, podendo também ser produzido a partir de carvão ou biomassa, dependendo da disponibilidade de matéria-prima. Essa produção em escala industrial, combinada com seu uso como matéria-prima na fabricação de formaldeído, ácido acético, resinas, metilaminas e combustíveis, proporciona economia de escala e contribui para preços mais competitivos.

No caso do etanol, embora possa ser sintetizado por três vias principais, fermentação de açúcares, hidratação do eteno e redução de acetaldeído, na prática industrial quase toda a produção mundial se dá pela fermentação. Esse processo utiliza açúcares provenientes de cana-de-açúcar, milho ou outras matérias-primas vegetais, sendo economicamente viável, sustentável e historicamente consolidado. As demais rotas químicas existem, mas são restritas a nichos específicos ou regiões com abundância de eteno derivado do petróleo.

Em contrapartida, o etanol destinado ao consumo humano exige fermentação controlada, purificação rigorosa e certificação sanitária, para atender a padrões de qualidade alimentar, o que aumenta consideravelmente seu custo e torna sua comercialização mais regulada.

Por isso, do ponto de vista econômico, o metanol apresenta custo significativamente inferior ao etanol no mercado internacional, principalmente devido à sua produção industrial em larga escala e à ampla aplicação química. Em setembro de 2025, o preço médio do metanol gira em torno de US$ 0,35/ litro, dependendo da região, com valores mais baixos observados na América do Sul e Ásia, enquanto o etanol apresentava preços médios globais em torno de US$ 0,72/ litro, com variações significativas entre os países.

Essa diferença de preço reflete não apenas os custos de produção e purificação, mas também os requisitos legais e sanitários associados ao consumo humano, tornando o metanol economicamente atraente para adulteração ilícita de bebidas alcoólicas.

A vantagem econômica do metanol, associada à facilidade de acesso por vias ilegais com objetivo de adulteração de combustíveis, prática recentemente registrada no Brasil, torna o metanol um insumo provável e disponível para a adulteração de bebidas alcoólicas.

Além de seu baixo preço, a semelhança química e sensorial com o etanol permite que o metanol engane consumidores desprevenidos, criando risco extremo de intoxicação aguda, incluindo, como já citado, cegueira e morte, evidenciando a necessidade de fiscalização rigorosa e rastreabilidade em toda a cadeia de produção e distribuição de bebidas alcoólicas.

Há suspeitas de que as mesmas rotas utilizadas para adulterar combustíveis no Brasil também sejam empregadas na adulteração de bebidas destiladas, muitas vezes vendidas em lojas de conveniência nos mesmos postos de combustível que funcionam como canais de distribuição. Dessa forma, a raiz do problema da adulteração está associada ao crime organizado, que explora essas redes logísticas para maximizar lucro, colocando em risco a saúde pública e dificultando o controle das autoridades.

Fraudes com metanol em bebidas resultam da combinação de ignorância sobre os tipos de álcool, ganância pelo lucro e evidente má-fé.

Essas suspeitas, de forma objetiva, derivam da Operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto de 2025, que identificou a importação ilegal de metanol pelo PCC para adulteração de combustíveis, revelando o desvio de grandes volumes para destilarias clandestinas e falsificadores de bebidas alcoólicas, e comprovou o uso de rotas logísticas controladas por facções criminosas, reforçando a ligação entre a adulteração de combustíveis e o risco à saúde pública.

Casos registrados

As bebidas destiladas são as principais impactadas pelo mercado ilegal. De acordo com dados da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), levantados em pesquisa encomendada ao Euromonitor, calcula-se que 33% do mercado total brasileiro de uísque seja ilegal; 27% para vodca; 18% para cachaça; 15% para gim; e 7% para outros destilados. Justamente o mercado ilegal abre a possibilidade de riscos de contaminação.

Entre agosto e setembro de 2025, foram registrados no Brasil casos de intoxicação por metanol, com destaque para São Paulo, onde pelo menos 10 casos foram confirmados e 29 estão sob investigação, com uma morte confirmada e quatro outras mortes sob apuração. Em Pernambuco, há até 4 casos suspeitos, com duas mortes em investigação.

As investigações já revelaram que imóveis na zona norte de São Paulo e em cidades da Grande São Paulo, como Barueri e Americana, funcionavam como pontos de envase e armazenamento clandestino. Nesses locais, garrafas usadas de marcas conhecidas eram compradas ou recolhidas, reenchidas com destilados adulterados, possivelmente contaminados com metanol, e depois rotuladas e lacradas para revenda. Até o momento, mais de 7 mil garrafas foram apreendidas e ao menos 15 suspeitos foram presos.

As autoridades sanitárias e policiais, com apoio do Ciatox de Campinas e do Sistema de Alerta Rápido (SAR), investigam a origem do metanol e rastreiam a distribuição das bebidas adulteradas.

A ingestão de bebidas adulteradas com metanol ocorreu em cenas sociais de consumo alcoólico, incluindo bares, e com diferentes tipos de bebida, como gim, uísque e vodca.

Em São Paulo, as investigações levaram à interdição de pelo menos seis estabelecimentos que comercializam bebidas destiladas, localizados nos bairros dos Jardins, Mooca e Itaim Bibi, além de unidades em São Bernardo do Campo e Barueri. As bebidas apreendidas foram encaminhadas ao Instituto de Criminalística para análises toxicológicas e documentoscópicas, com o objetivo de confirmar a presença de metanol e rastrear a origem da contaminação.

Em resposta, o Ministério da Justiça e Segurança Pública emitiu recomendações urgentes aos estabelecimentos, incluindo encaminhamento imediato de consumidores sintomáticos para atendimento médico, acionamento do Disque-Intoxicação (0800 722 6001) da Anvisa e comunicação à Vigilância Sanitária, Polícia Civil, PROCON e, quando aplicável, ao Ministério da Agricultura e Pecuária.

O recente surto de intoxicação por metanol em São Paulo configura um caso típico de fraude alimentar (food fraud), motivada por interesses econômicos ilícitos. Essa prática envolve a adulteração intencional de produtos alimentícios com substâncias não autorizadas para aumentar volume, reduzir custos ou enganar consumidores, visando lucro financeiro.

Casos semelhantes ocorridos em outros países

  • 1986, na Itália, o “Escândalo do Vinho ao Metanol” resultou em 23 mortes e dezenas de pessoas com cegueira permanente, afetando diversas regiões e aproximadamente 60 empresas vinícolas, com repercussões globais na confiança dos consumidores.
  • 2009, em Bali, Indonésia, pelo menos 25 pessoas morreram após consumir bebidas adulteradas;
  • 2010, na China, vinhos adulterados com metanol levaram ao fechamento de vinícolas e prisão de seis responsáveis;
  • 2013, no distrito de Azamgarh, Uttar Pradesh, Índia, cerca de 39 pessoas morreram e dezenas ficaram cegas ou hospitalizadas pelo mesmo tipo de contaminação;
  • 2016, na ilha grega de Zante, uma jovem de 22 anos ficou cega e sofreu insuficiência renal após ingerir vodca adulterada;
  • 2016, em Irkutsk, Russia, mais de 70 pessoas morreram após consumir uma loção de banho perfumada com extrato de boyaryshnik (espinheiro), que foi erroneamente rotulada como contendo etanol, mas na verdade continha metanol. O problema já começa por ter ingerido um cosmético;
  • 2022, no estado de Gujarat, Índia, pelo menos 42 pessoas morreram e quase 100 foram hospitalizadas após consumir bebida adulterada com metanol;
  • 2023, no Brasil, o CIATox da Unicamp registrou o que considerou os casos mais graves de intoxicação por metanol no Brasil até então. Após consumo de álcool combustível por pessoas em situação de rua, 14 pacientes foram atendidos e 11 faleceram;
  • 2025, na região de Leningrado, também na Rússia, pelo menos 25 pessoas morreram após consumir vodca falsificada vendida por cerca de US$ 1,00 a garrafa. A bebida foi encontrada com níveis letais de metanol e várias pessoas foram presas pela produção e distribuição do álcool adulterado.

Esses incidentes evidenciam a necessidade urgente de medidas eficazes de fiscalização e controle na cadeia de produção e distribuição de bebidas alcoólicas. Em países como Itália e Rússia, após surtos de intoxicação, foram implementadas medidas como certificação de origem das bebidas, fiscalização intensificada, monitoramento fronteiriço e campanhas educativas para alertar consumidores sobre os riscos de produtos adulterados.

Cuidados e controle

No Brasil, a identificação de que o metanol utilizado na adulteração de bebidas alcoólicas pode ter origem em importações fraudulentas destinadas à adulteração de combustíveis, especialmente por facções criminosas como o PCC, reforça a necessidade de esforço conjunto entre órgãos de segurança pública, vigilância sanitária e setor privado.

O rigor na rastreabilidade do metanol na cadeia de suprimentos, incluindo fiscalização em portos, controle aduaneiro e monitoramento de rotas de contrabando, é fundamental para identificar e combater a origem e a distribuição ilegal da substância.

Além disso, os consumidores devem permanecer atentos a sinais de adulteração, como preços muito abaixo da média de mercado, ausência de selo fiscal ou lacres de segurança, adquirindo produtos apenas em estabelecimentos legalizados.

Associados à adulteração de bebidas com metanol, é essencial implementar políticas públicas integradas visando uma articulação entre órgãos de segurança, vigilância sanitária, entidades setoriais e programas educacionais para a sociedade civil. É indispensável criar um ambiente seguro, reduzir incentivos econômicos à fraude e prevenir intoxicações graves ou fatais.

Leia também:

  1. Fraudes históricas no vinho;
  2. Food Fraud: dados históricos;
  3. Cachaça boa é a cachaça segura;
  4. Food Fraud: a perigosa realidade da fraude de alimentos;
  5. OMC publica guia sobre comércio ilícito de alimentos e fraude alimentar.

Referências dos casos citados

Itália – Disponível em: https://www.tenutalamacchia.com/en/scandalo-del-metanolo/. Acesso em: 30 set. 2025.

Bali, Indonésia (2009) – Disponível em: https://www.reuters.com/article/lifestyle/bali-warns-against-drinking-local-spirit-after-deaths-idUSTRE5521VW/. Acesso em: 30 set. 2025.

China (2010) – Disponível em: https://www.thespiritsbusiness.com/2013/10/toxic-alcohol-kills-at-least-40-in-india/. Acesso em: 30 set. 2025.

Índia – Azamgarh, Uttar Pradesh (2013) – Disponível em: https://www.thespiritsbusiness.com/2013/10/toxic-alcohol-kills-at-least-40-in-india/. Acesso em: 30 set. 2025.

Grécia – Ilha de Zante (2016) – Disponível em: https://honey.nine.com.au/latest/hannah-powell-blind-woman-drinks-methanol-holiday-greece/ddc09ede-1ed4-4d79-8f46-b08e7cb55dd5/. Acesso em: 30 set. 2025.

Rússia – Irkutsk (2016) – Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/2016_Irkutsk_mass_methanol_poisoning. Acesso em: 30 set. 2025.

Índia – Estado de Gujarat (2022) – Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/2022_Gujarat_alcohol_poisoning. Acesso em: 30 set. 2025.

Brasil – CIATox da Unicamp (2023) – Disponível em: https://unicamp.br/en/unicamp/noticias/2023/08/16/ciatox-alerta-para-aumento-de-casos-de-intoxicacoes-graves-por-metanol. Acesso em: 30 set. 2025.

Rússia – Região de Leningrado (2025) – Disponível em: https://www.thesun.co.uk/news/36849514/people-dead-methanol-vodka/. Acesso em: 30 set. 2025.

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