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Mitos sobre alimentos nas redes sociais: feijão contaminado com bactéria mortal

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Atravessamos um momento em que a divulgação de informações e exposição nas mídias digitais torna-se frenética. Infelizmente, a questão principal deixou de ser divulgar, informar, educar e passou a ser simplesmente expor. Na área de alimentos, pelo próprio princípio democrático e fisiológico de elaborar e consumir alimentos, todos se veem aptos a dar palpites e essa questão extrapola o limite do razoável. Alia-se a isso a criatividade quase imensurável do ser humano e os disparates, inverdades, equívocos e até maldades veiculadas na mídia digital se propagam numa velocidade quase incontrolável.

Neste artigo, avaliamos uma mensagem que circula pelas redes sociais relacionada ao consumo do feijão. Após a avaliação do “mito” em questão, segue um resumo básico sobre as características do referido alimento, para utilização como referência e entendimento geral. Todas as informações neste texto são públicas e podem ser facilmente obtidas online. Boa leitura!

Os nomes dos produtos, empresas e pessoas são ocultados para não haver má interpretação dos fatos, porém alguns casos são notoriamente públicos e expostos pelas próprias empresas envolvidas.

Esta é uma mensagem de áudio que circula por redes sociais, retornando à tona de tempos em tempos. A mensagem foi transcrita ipsis litteris.

“A minha monitora, ela é técnica em enfermagem e ela faz plantão final de semana no hospital em Suzano e ela veio com um papo hoje que os médicos estão pedindo para quem for cozinhar feijão colocar de molho 15 minutos antes no vinagre porque eles estão vindo com bicho que está transmitindo uma bactéria que não tem antibiótico que cure. E aí ela vem falando que lá no hospital duas pessoas entraram em óbito por conta dessa bactéria, desse feijão aí, desse bicho que tá vindo por conta dos agrotóxicos, né? É muito veneno. Estou pedindo para repassar essa informação, então assim quem vai cozinhar feijão deixa de molho. Melhor pecar por excesso do que por falta, né? Então não custa nada deixa para cada um quilo de feijão meio copo de vinagre e deixar 15 minutos, lavar de novo feijão, e aí põe para cozinhar porque a única coisa que mata esse bicho é o vinagre, nem cozinhando mata esse bicho. É uma praga isso, não é qualquer piolho, é praga e o que tá matando isso realmente é o vinagre. Então façam, não custa nada tá, eu tô passando aqui para o nosso grupo e vou passar para os meus pais de alunos também, porque os próprios médicos estão pedindo, gente. Repassa porque não é brincadeira, isso é sério e realmente está acontecendo. Então vamos fazer, né? Não custa nada. ”

Avaliação

Analisando o e-mail desde o início, percebemos o tom de teoria conspiratória que normalmente acompanha este tipo de mensagem. A insistência no pedido para repasse da mensagem, as informações genéricas (“no hospital em Suzano”, “os médicos estão pedindo”, etc.) já levantam suspeitas sobre a veracidade da informação logo no início.

Não fica claro qual é o agente contaminante do feijão: ora é um “bicho”, ora é uma “bactéria”, no final volta a ser uma “praga”, e fala-se também que os agrotóxicos são responsáveis pela presença desta ameaça no alimento. De qualquer forma é uma mensagem confusa, sem uma lógica definida, e principalmente baseada em informações transmitidas de maneira não oficial.

Há sugestão de uma prática comum em ambientes domésticos, que é a lavagem de vegetais com uso de vinagre. Esta em si não é uma prática que pode causar mal ao consumidor, inclusive a acidificação da solução de limpeza é uma boa prática para minimizar a contaminação superficial por bactérias oriundas do ambiente de colheita e transporte. No entanto, a mera presença do vinagre diluído não é suficiente para esterilizar o alimento, muito menos para matar “pragas” ou eliminar “agrotóxicos” presentes na superfície do alimento.

A etapa crítica, essa sim com capacidade de eliminar microrganismos, é o cozimento. Normalmente para se aumentar a velocidade de cozimento do feijão, utiliza-se uma panela de pressão.

Eliminação de microrganismos por acidificação

A sugerida lavagem dos feijões utilizando uma solução de vinagre (ácido acético diluído) é uma opção válida, caso o objetivo seja somente garantir uma remoção parcial de possíveis bactérias patogênicas presentes na superfície do alimento. A acidificação desta superfície torna o ambiente menos propício ao desenvolvimento de patógenos como Salmonelas e Listerias, porém não é suficiente para eliminar todo e qualquer microrganismo do alimento. Esporos de fungos e outras bactérias mais resistentes podem sim sobreviver a estas condições, porém não são patogênicas e não representam risco à saúde, principalmente porque, na sequência da higienização, teremos a etapa mais crítica – o cozimento.

A temperatura de ebulição e a pressão

A temperatura de ebulição depende da pressão atmosférica do ambiente em que o processo é realizado. Quando a pressão sofre um aumento, a temperatura sobe também. A pressão padrão, ou seja, a pressão ao nível do mar é de 1 atmosfera (atm). Sendo assim, a temperatura de ebulição da água é de 100ºC. Já nos lugares mais altos, a pressão é menor que 1 atmosfera. Em locais de maior altitude, a temperatura de ebulição da água é de aproximadamente 98ºC, ou seja, é menor que ao nível do mar. Dentro de uma panela de pressão, a pressão pode chegar até a 2 atmosferas e, por isso, a temperatura de ebulição da água é de aproximadamente 120ºC.

A panela é fechada de maneira que o vapor d’água que se forma no seu interior não se dissipe facilmente para o ambiente. Desta maneira, a pressão interna da panela aumenta, podendo chegar a 2 atm. Nesta pressão a água ferve a uma temperatura de aproximadamente 120°C. Como a água atinge uma temperatura maior, os alimentos são cozidos com maior rapidez.

Por segurança, estas panelas de pressão possuem uma válvula para controle de pressão e uma válvula de segurança. A válvula para controle de pressão permite a saída do vapor d’água quando a pressão deste vapor atinge um limite. Caso a pressão interna ultrapasse o valor suportado pela panela, a válvula de segurança se rompe.

Quando vamos cozinhar alimentos em água, o nosso principal interesse é que se atinja a maior temperatura possível a fim de reduzir o tempo de cozimento e não que se atinja o ponto de ebulição, como alguns talvez pensem. Ao nível do mar, a água entra em ebulição a 100ºC, passando do estado líquido para vapor e permanecendo nessa temperatura até que todo o líquido transforme-se em vapor.

Eliminação de microrganismos por cozimento

A etapa mais importante para o preparo do feijão como alimento é seu cozimento. Cozimento por calor é uma das formas mais rudimentares de preparo e conservação de alimentos, sendo utilizada desde o início da história registrada da humanidade.

O calor é utilizado, na maioria das vezes, com intuito de amaciar o alimento, torná-lo mais palatável, acelerar reações químicas que possam trazer características desejáveis de sabor (tostado, caramelizado, etc.), mas também tem como papel principal reduzir a carga microbiana de alimentos crus, principalmente os de origem animal (carnes, leites, etc.). Além do calor atuar diretamente na eliminação de microrganismos, também pode agir na redução da umidade e atividade de água de um alimento, tornando-o menos susceptível à deterioração microbiológica.

O cozimento é fundamental no preparo do feijão para consumo de mesa, assegurando a inativação dos fatores antinutricionais e proporcionando a caracterização das propriedades sensoriais de sabor e textura exigidos pelo consumidor. Receitas populares de preparo de feijão sugerem uma mistura de 1 porção de feijão para 3 porções de água, em uma panela de pressão doméstica comum, com cozimento por 20 a 30 min após a ebulição da água e formação de atmosfera pressurizada na panela (caracterizada pelo escape de vapor pela válvula de controle).

Como vimos anteriormente, o objetivo da pressurização é simplesmente a aceleração do processo de cozimento, uma vez que o ambiente saturado de vapor e pressurizado permite que temperaturas acima de 100°C sejam atingidas, acelerando assim as transformações desejadas.

Outro ponto em que a pressurização atua de forma positiva é, justamente, a aceleração da destruição de microrganismos. A cinética de eliminação de microrganismos por calor úmido tem sua velocidade proporcional ao aumento da temperatura de cozimento utilizada. Há um ramo da ciência de alimentos que estuda exatamente estes processos, chamado termobacteriologia e é de suma importância para estabelecimento de processos seguros na indústria de alimentos. Microrganismos são estudados e têm seus comportamentos mapeados em bancos de dados, e equações são utilizadas para determinar por quanto tempo e a qual temperatura devemos submeter um alimento para que a bactéria-alvo seja destruída e que o alimento se torne seguro.

Existem tabelas simples com referência das temperaturas e tempos necessários para redução da carga microbiológica em alimentos (consulte aqui). Os valores de tempo podem variar de acordo com o tipo de alimento (líquido, sólido, pastoso, pó) e outras características físico-químicas (atividade de água, umidade, pH), mas os valores servem apenas para se ter uma ideia de como se comportam microrganismos quando expostos a diferentes temperaturas e pressões. De maneira geral, quanto maior a pressão, maior a temperatura e, portanto, mais rápida é a eliminação de microrganismos.

A cultura do feijão

O feijão (Phaseolus vulgaris L.) é um dos mais importantes constituintes da dieta do brasileiro, por ser reconhecidamente uma excelente fonte proteica, além de possuir bom conteúdo de carboidratos e de ser rico em ferro. Algumas características como a cor, o tamanho e o brilho do grão, podem determinar o seu consumo, enquanto a cor do halo pode também influenciar na comercialização. Os grãos menores e opacos são mais aceitos que os maiores e que apresentam brilho. A preferência do consumidor norteia a seleção e obtenção de novas cultivares, exigindo destas não apenas boas características agronômicas, mas também valor comercial no varejo.

O Brasil é o maior produtor mundial de feijão-comum. Seu cultivo é bastante difundido em todo o território nacional, no sistema solteiro (só o feijão) ou no consorciado (com outras culturas). Ainda é reconhecido como cultura de subsistência, mas tem atraído a atenção de grandes produtores que utilizam tecnologias avançadas como irrigação, controle fitossanitário e colheita mecanizada.

Presença de agrotóxicos em feijão

No estudo Avaliação de resíduos de agrotóxicos em arroz e feijão e sua contribuição para prevenção de riscos à saúde da população consumidora, publicado pelo Instituto Adolfo Lutz, a exposição à procimidona (um fungicida utilizado na cultura do feijão) pela ingestão de feijão representou 0,02 e 0,1% da IDA, respectivamente, para as populações adulta e infantil. Nos demais agrotóxicos pesquisados não foram detectados resíduos iguais ou em valores maiores do que o limite de detecção da metodologia utilizada. Segundo este estudo, estes resíduos estão em níveis considerados seguros para consumo humano e os agrotóxicos pesquisados estavam todos abaixo do limite de detecção do método utilizado, ou seja, a quantidade que possivelmente se faz presente é tão pequena que o método analítico usado não consegue detectá-la. Esse tipo de estudo nos dá informação robusta e sustentável sobre os riscos do consumo deste alimento. No entanto, no relato que analisamos neste post, menciona-se que o vinagre atuaria auxiliando a livrar o alimento dos perigos gerados pelo agrotóxico, pragas e “bichos” citados. Infelizmente, o vinagre não tem a propriedade milagrosa de eliminar resíduos destas substâncias. Isso nos mostra, mais uma vez, a natureza vazia e alarmista da mensagem divulgada nas redes sociais, contribuindo para espalhar desinformação entre o público leigo.

O processo de produção e colheita do feijão é mais complexo do que apresentamos aqui, em forma simplificada. Ele envolve diversos controles específicos para cada tipo de cultura. No entanto, este resumo tem como objetivo dar ao leitor uma ideia geral de como é produzido este alimento tão popular e característico da cultura brasileira.

Referências e créditos de imagens
http://www.precolandia.com.br/blog/panela-de-pressao/
http://cejarj.cecierj.edu.br/pdf_mod3/CN/Unid3_CN_Quimica_Modulo_3_Vol_1.pdf
https://plantarcrescercolher.blogspot.com/2015/09/cultura-do-feijao-resumo.html
http://proedu.ifce.edu.br/bitstream/handle/123456789/579/Aula_05.pdf?sequence=5&isAllowed=y
https://pixabay.com/pt/plantas-feij%C3%A3o-de-soja-soja-1331667/
https://pixabay.com/pt/cozinha-cozinheiro-fog%C3%A3o-a-g%C3%A1s-490017/
http://abgtecalim.yolasite.com/resources/Processamento%20T%C3%A9rmico%20e%20Trocadores%20de%20Calor.pdf?_sm_au_=iHVsRnjZNNcnkM60

Mariano Ferraz é profissional de qualidade da CPW Nestle há 13 anos. Tem publicações no LinkedIn e na revista de Food Safety 3M, além do e-book “Mitos e Verdades sobre Alimentos” disponível para download na amazon.com. De 0h de 20/07 à meia noite de 23/07, poderá ser feito o download gratuito deste livro clicando aqui . 

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Surtos Alimentares no Brasil – Dados atualizados em 2015

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Para atualização das informações, consulte  Surtos Alimentares no Brasil – Dados atualizados em maio de 2017

As doenças transmitidas por alimentos, mais comumente conhecidas como DTA, são causadas pela ingestão de água ou alimentos contaminados. Existem mais de 250 tipos de DTA e a maioria são infecções causadas por bactérias, vírus e parasitas.

Vale a pena relembrar que surto alimentar por doença transmissível por alimento (DTA) é definido como um incidente em que duas ou mais pessoas apresentam uma enfermidade semelhante após a ingestão de um mesmo alimento ou água, e as análises epidemiológicas apontam a mesma origem da enfermidade.

Surto é o aumento na ocorrência de um agravo à saúde acima dos níveis esperados. Em geral, nos serviços de saúde, os surtos estão relacionados a quebras nas rotinas técnicas, utilização de insumos industrializados com desvio de qualidade e introdução de novas tecnologias. Essas situações aumentam a morbidade e a mortalidade entre os pacientes envolvidos, e elevam os custos assistenciais com grande impacto no sistema de saúde.

A probabilidade de um surto ser reconhecido e notificado pelas autoridades de saúde depende, entre outros fatores, da comunicação dos consumidores, do relato dos médicos, das atividades de vigilância sanitária das secretarias municipais e estaduais de saúde. 

Seguem abaixo as informações de acordo com os dados atualizados da Vigilância Epidemiológica das DTA no Brasil até o mês de outubro de 2015.

No ano de 2014, foram registrados 886 surtos de DTA e 15.700 pessoas doentes contra 861 surtos e 17.455 pessoas doentes no ano de 2013. Até o mês de outubro de 2015, o número de surtos e doentes praticamente está pela metade comparando com 2014.

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A seguir segue a série histórica dos surtos de DTA no Brasil, onde inclui-se também o número de pessoas expostas pelas DTA e o número de óbitos, na qual a taxa de letalidade se manteve na média de 0,05% nos anos de 2013 a 2015.

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A região Sudeste lidera o histórico com mais notificações nos casos de DTA (40,2%) até outubro de 2015, e na sequencia foi região sul com 34,8%.

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Os alimentos mistos continuam à frente dos alimentos mais envolvidos nos surtos, na sequencia ovos, produtos à base de ovos e a água. Os casos não identificados se sobressaem com 51,0% dos registros. A dificuldade de se identificar o agente causador é um fato que se repete historicamente.

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Um dado que chama atenção: em 2015, em 58,5% dos registros não foi possível identificar o agente etiológico responsável pelo surto.

As bactérias Salmonella, S. aureus e E. coli mostram-se como os principais agentes etiológicos mais associados aos surtos, respectivamente.

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As residências continuam como o local principal de ocorrência dos surtos, com 38,4% dos casos relatados até outubro de 2015, seguido dos Restaurantes/Padarias (similares) com 15,5%, um número bastante preocupante.

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Fonte: 

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