Há um debate nos países mais desenvolvidos, que já possuem normas sobre rotulagem de alérgenos em alimentos, sobre como estabelecer critérios (os thresholds) para se exigir a rotulagem preventiva, relacionada ao risco de traços de alérgenos advindos de contaminação involuntária na cadeia de produção do alimento. Tais critérios seriam definidos a partir da identificação, a partir de estudos clínicos, do menor risco possível de reações, considerando uma margem de segurança (1).
Parece simples a ideia de selecionar 100 pacientes com alergia a leite, para citar um exemplo, e oferecer porções mínimas de leite a cada um deles para verificar reações, mas, como os mecanismos que desencadeiam as reações não são sempre iguais, o tempo para que ocorra a reação em alguns pacientes é distinto do que gera reação na outra parte de pacientes. Explico.
Pacientes com alergia mediadas por IgE costumam apresentar respostas relativamente rápidas (em minutos ou em até 8 horas) e visíveis a olho nu: urticarias, edemas, reações anafiláticas, por exemplo, o que permite uma identificação relativamente rápida e bastante objetiva no caso de reações.
Os pacientes com alergia mediada por célula (não mediados por IgE) apresentam reações mais lentas (podem reagir em até 72hs), como regra, reações gastrointestinais (refluxo, cólicas, diarreia/constipação, gases, otites, bronquiolite, pneumonia) e este grupo de alérgicos, por conta do mecanismo que gera a reação alérgica, costuma ser extremamente sensível à exposição de traços de alérgenos, muito mais do que boa parte dos IgE mediados, apesar de as reações não o exporem a risco imediato de vida.
Vale trazer um exemplo de situação que ilustra muito bem como um paciente com alergia não mediada por IgE é bastante sensível a traços: criança passa a noite com refluxo persistente. Casa não contém alérgenos (leite, no caso) e não houve nenhum escape durante o lazer fora de casa. Foi consumido um produto diferente do habitual, mas cujo rótulo não indicava a presença de leite. Contato com SAC feito e foi informado o seguinte:
A torrada integral é feita a partir de um pão que não contém leite. Depois de pronto, o pão vai para outro setor da fábrica, onde é cortada e torrado. Após torrado, o produto é embalado em uma máquina que também é utilizada para embalar outro produto (feito em outro prédio), que contém “em sua formulação uma pequena porcentagem de leite desnatado em pó, pequena mesmo”, rotulado como contendo traços de leite.
Temos aqui a situação na qual uma pessoa com alergia não IgE mediada reagiu horas após consumir um produto que continha traços de traços de leite por conta do compartilhamento da máquina de embalar com um produto que contém traços de leite.
Se as reações dos não mediados são mais lentas e nem sempre visíveis, como garantir que esta parcela da população de alérgicos será considerada efetivamente nos estudos? Sendo a ideia de rotular alérgenos salvaguardar direitos à informação, à saúde e à alimentação adequada da população com alergia alimentar, os estudos não podem se basear unicamente nos pacientes com reações rápidas (alergia IgE mediada).
(1) Conferência de Daniel J. Skrypec, Ph.D. no FI & HI South America de 2013 – Vantagens da definição de thresholds para fins de rotulagem preventiva de alérgenos
Gabriela
por fim, existe um limite que define se é traço ou não?
Cecilia Cury
Não, Gabriela. Não há consenso sobre qual seria o limite de tolerância que abarcaria qualquer alérgico. Por ora, a Anvisa optou pelo caminho mais conservador e determinou já RDC 26/15 que deve ser informado o risco da presença de um dado alergênico (não se usa a palavra traço na resolução aprovada).