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Aquecimento ôhmico na inativação microbiana em leite e derivados

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Tecnologias emergentes na indústria de alimentos vêm sendo amplamente estudadas nos últimos anos. São tecnologias que, além dos benefícios das tecnologias convencionais, têm em paralelo diversas outras vantagens, sejam elas nutricionais, tecnológicas ou ambientais. O aquecimento ôhmico (AO) é uma dessas tecnologias  que vêm sendo pesquisadas com maior frequência nos últimos anos. É uma técnica capaz de converter energia elétrica em energia térmica. Nela, a forma de dissipação do calor na matriz alimentícia é mais uniforme e rápida, sendo um fator importante na manutenção das características do produto in natura.

Processamento mais rápido e eficaz, menor gasto energético, menor impacto ambiental, preservação de características sensoriais e nutricionais, além da maior formação de compostos bioativos são as principais vantagens de se utilizar AO no processamento de leite e derivados, sendo superior ao tradicional processo de pasteurização do leite. Além disso, AO mostra-se eficaz também no que se refere à eliminação de microrganismos deteriorantes e patogênicos de importância em produtos lácteos.

Os mecanismos que levam à inativação microbiana pelo AO são diversos. O primeiro deles é o calor, que promove a destruição da membrana celular e inativação enzimática na célula. Além do efeito térmico, durante o processamento pode ocorrer a formação de compostos que são altamente tóxicos para a célula, como radicais livres, oxigênio e hidrogênio livres, hidroxilas, e peróxido de hidrogênio, sendo estas substâncias praticamente inexistentes nos produtos após o processamento. Por fim, outro fenômeno que garante a eficácia contra microrganismos é a eletroporação, que consiste no acúmulo de cargas na membrana celular, levando à formação de poros, com posterior lise e morte celular.

Para uma eficiente inativação microbiana durante o processamento pelo AO, diversos fatores devem ser cuidadosamente verificados. De maneira geral, esses fatores podem ser divididos em extrínsecos e intrínsecos. Pode-se dizer que todos os parâmetros inerentes ao equipamento e sua operação, como campo elétrico, frequência, corrente, e também tempo e temperatura são considerados extrínsecos e influenciam diretamente o sucesso do processamento. Existe uma grande faixa de V/cm com a qual se pode trabalhar no processamento de alimentos. As variações desses parâmetros irão ditar quão eficaz será seu processamento, e também quanto tempo levará para que se atinja tempo/temperatura esperados. No processamento de leite e derivados são comuns variações de 2V/cm até 20V/cm a 60Hz por exemplo. Porém, em diferentes matrizes esses valores podem sofrer variações.

Os fatores intrínsecos são aqueles relacionados diretamente com a composição do alimento. Tipo de alimento, pH, umidade, teor de gordura, teor de proteína e concentração de sal, por exemplo, são alguns desses fatores que interferem diretamente no tratamento. Um dos compostos que mais tem capacidade de interferir nesta etapa é a gordura, que além de proteger os microrganismos, é um importante isolante térmico, além de diminuir a condutividade elétrica no alimento, sendo necessário ajustar os fatores extrínsecos a fim de otimizar o processo. Estudos verificando a interferência do teor de gordura presente no leite na eliminação de cepas de E. coli O157:H7, Salmonella Typhimurium e Listeria monocytogenes mostraram que quanto menor o teor de gordura, maior a redução populacional desses microrganismos quando se comparam amostras submetidas às mesmas condições de processo.

Outros estudos também avaliaram a eficácia do AO na inativação de Listeria monocytogenes. Em bebidas lácteas, houve reduções de 2,10 log UFC/mL, enquanto o tratamento térmico convencional reduziu 1,38 log UFC/mL, ambos em temperatura de 65ºC. Existem também trabalhos que demonstram sua ação contra diversos outros patógenos como Salmonella, E. coli, Clostridium e bolores e leveduras, nos mais diversos derivados lácteos, como queijo Minas frescal, doce de leite, leites fermentados, além de fórmulas infantis.

Imagem 1: E. coli O157:H7: (a) sem tratamento térmico, (b) tratamento térmico convencional, (c) tratamento por aquecimento ôhmico (Lee et al., 2012).

O aquecimento ôhmico mostra-se eficaz também na destruição de esporos bacterianos, sendo capaz de eliminar, por exemplo, bactérias do gênero Bacillus e Clostridium, microrganismos esses causadores de doenças de origem alimentar, e em alguns casos, deterioração de derivados lácteos.

A utilização do aquecimento ôhmico em conjunto com outras tecnologias emergentes também é opção viável no processamento de alimentos, como no caso de esterilização de embalagens. Dessa maneira é possível obter maior eficiência contra microrganismos que possam causar problemas no produto e ou doenças no consumidor.

Contudo, os desafios para utilização em escala industrial são grandes, principalmente quando se fala em indústrias lácteas de médio e grande porte. O primeiro grande desafio seria a adaptação da planta industrial, uma vez que indústrias já possuem seu desenho e fluxo de processos definidos, documentados e auditados. Dessa forma, a construção e/ou adaptação de um novo espaço, pensando no processamento de grandes volumes de leite, pode custar um valor alto e demandar grande tempo operacional. Paralelamente, existe a necessidade de treinamento de operadores para trabalhar com o equipamento, com conhecimento de todas as suas operações e variações que possam ocorrer durante o processo. Além desses fatores, o aquecimento ôhmico é uma tecnologia pouco conhecida por parte do mercado consumidor de lácteos. Assim, são necessárias campanhas para esclarecer as dúvidas e curiosidades a respeito dessa tecnologia, aumentando a confiança do consumidor nos alimentos submetidos a este processo.

Grandes passos já foram dados sobre os benefícios da utilização do aquecimento ôhmico em produtos lácteos, principalmente com relação à garantia da segurança microbiológica. Contudo, novos estudos ainda necessitam ser feitos para esclarecer e consolidar ainda mais sua importância como uma tecnologia eficiente no processamento de leite e derivados lácteos seguros.

Autores: Ramon S. Rocha1,2 e Adriano Gomes da Cruz2

1IFRJ, Departamento de Alimentos, 2UFF, Faculdade de Medicina Veterinária

Referências

Makroo, H. A., Rastogi, N. K., Srivastava, B. Ohmic heating assisted inactivation of enzymes and microorganisms in foods: A review. Trends in Food Science & Technology, v.97, p.451-465, 2020.

Müller, W. A., Ferreira Marczak, L. D., Sarkis, J. R. Microbial inactivation by ohmic heating: Literature review and influence of different process variables. Trends in Food Science & Technology, v.99, p.650-659, 2020.

Pereira, M. O., Guimarães, J. T., Ramos, G. L. P. A., do Prado-Silva, L., Nascimento, J. S., Sant’Ana, A. S., Franco, R.M., Cruz, A. G. Inactivation kinetics of Listeria monocytogenes in whey dairy beverage processed with ohmic heating. LWT, 127, 109420, 2020.

TIAN, X., YU, Q., WU, W., DAI, R. Inactivation of Microorganisms in Foods by Ohmic Heating: A Review. Journal of Food Protection, v.81, n.7, p.1093–1107, 2018.

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Aquecimento Ôhmico: tecnologia emergente com importância na preservação das características nutricionais, sensoriais e segurança microbiológica de alimentos

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A preocupação por parte das indústrias em fornecer alimentos isentos de microrganismos patogênicos e com composição nutricional satisfatória torna-se cada vez mais comum nos dias atuais, fato este que se deve ao aumento de um mercado consumidor mais exigente e preocupado com relação aos alimentos inseridos em sua dieta. Os tratamentos térmicos convencionais já utilizados pelas indústrias geram perdas importantes para a qualidade do alimento, incluindo a redução na quantidade de micro e macronutrientes, e também perda nas características sensoriais.

Tendo em vista essa necessidade de aprimoramento e atendimento ao mercado, tecnologias utilizadas pelas indústrias passam por um processo de constante estudo e desenvolvimento, incluindo aquelas responsáveis pelo tratamento térmico.

Ao longo dos anos, equipamentos e tecnologias utilizadas pelas indústrias tornaram-se consolidadas por se mostrarem eficazes na função para a qual são empregadas, tendo como exemplo o pasteurizador, equipamento responsável por fazer um tratamento térmico no produto (eleva sua temperatura a 72°C por 15 segundos) com objetivo de eliminar microrganismos patogênicos e possíveis deteriorantes. Vale lembrar que além da pasteurização rápida já citada acima, existem ainda a pasteurização lenta (60°C por 30 minutos) e o Ultra High Temperature (UHT), muito comum em produtos como leite UHT, achocolatados, entre outros.

Em contrapartida aos seus benefícios, pesquisadores têm demonstrado que os tratamentos térmicos convencionais podem gerar perdas nutricionais no alimento, reduzindo assim a biodisponibilidade de nutrientes essenciais para a dieta, e também a perda nas características sensoriais do alimento, fato comumente relatado por consumidores de produtos UHT, por exemplo.

Por conta disso, a busca por tecnologias inovadoras e que consigam gerar um produto com boa aceitação e ao mesmo tempo atendendo a todos os requisitos físicos, químicos e microbiológicos vem se tornando frequente.

O aquecimento ôhmico (ohmic heating) é uma das tecnologias emergentes que vem sendo estudada com maior frequência nos últimos anos dentro do setor alimentício. É uma tecnologia que converte a energia elétrica em energia térmica, e a forma de dissipação do calor na matriz alimentícia é mais uniforme e em alguns casos mais rápida, e sem gerar gradientes de temperatura no produto, ou seja, evitando ter partes de um mesmo alimento com temperaturas diferentes durante o tratamento térmico.

O desenho de um equipamento ôhmico possui partes em comum, como por exemplo um par de eletrodos (podendo haver mais de dois), uma câmara ou tubo por onde permanece o alimento durante o processamento, e também uma fonte de energia, responsável por abastecer o sistema do aparelho através dos eletrodos, como visto abaixo:

Fonte: Adaptado de Sakr e Liu, 2014.

Figura 1: Esquema geral do aparelho ôhmico

Com essa distribuição de calor mais uniforme e menos agressiva ao alimento, nutrientes importantes presentes no alimento como os carboidratos, proteínas e gorduras são mais preservados e consequentemente encontrados em maior quantidade no produto pós-processo térmico, trazendo vantagens nutricionais se comparado com o alimento submetido ao tratamento térmico convencional.

Assim como a pasteurização e demais tratamentos térmicos convencionais mostram-se muito eficazes na função de eliminar microrganismos patogênicos e deteriorantes, o aquecimento ôhmico também apresenta esta característica. Estudos mostram que sua ação nas bactérias é devido à formação de poros na parede celular, o que gera uma perda de compostos intracelulares importantes para a célula e posterior lise (rompimento da membrana). Essa tecnologia é eficaz também na eliminação de esporos bacterianos (estrutura responsável por proteger a célula quando a mesma se encontra em ambientes adversos), ou seja, bactérias esporuladas responsáveis por surtos alimentares como o Bacillus cereus e Clostridium spp. seriam eliminadas nesse processo. Outros patogênicos de importância em surtos, como E. coli O157:H7, Salmonella Typhimurium e Listeria monocytogenes, também foram inativadas durante a etapa de aquecimento ôhmico, sendo relatado em pesquisas recentes. Devido a essas características, o aquecimento ôhmico é capaz de gerar um produto seguro e com estabilidade microbiológica durante sua vida de prateleira.

Outro fator de extrema importância ligado ao aquecimento ôhmico e o que faz dele uma tecnologia promissora é o fato de o mesmo ser considerado uma tecnologia limpa, ou seja, não gera substâncias e resíduos que possam agredir o meio ambiente, podendo ser visto com bons olhos também nesse quesito.

Sabe-se que ainda há muito a estudar e testar sobre as tecnologias emergentes que possam ser aplicadas nas indústrias alimentícias, principalmente no que se refere ao aquecimento ôhmico. Apesar de algumas pesquisas já demonstrarem seus benefícios em diversos aspectos, o custo de instalação e operação dessa tecnologia ainda é inviável para grande parte das indústrias.  Não podemos também desmerecer e deixar de falar da importância da pasteurização e tratamentos térmicos convencionais, que se mostram muito eficientes na eliminação de microrganismos indesejáveis, atendendo a sua função ao logo desses anos. Contudo, no que se refere à segurança de alimentos, inocuidade do produto e características sensoriais desejáveis, o aquecimento ôhmico é sim promissor e deve ser visto com bons olhos por parte de pesquisadores e profissionais do ramo alimentício.

Referências bibliográficas

 JAEGER, H., ROTH, A., TOEPFL, S., HOLZHAUSER, T., ENGEL, K.-H., KNORR, D., VOGEL, R.F., BANDICK, N., KULLING, S., HEINZ, V., STEINBERG, P. Opinion on the use of ohmic heating for the treatment of foods, Trends in Food Science & Technology, v. 55, p. 84-97, 2016.

KIM, S.S.; KANG, D.H. Effect of milk fat content on the performance of ohmic heating for inactivation of Escherichia coli O157:H7, Salmonella enterica Serovar Typhimurium and Listeria monocytogenes. Journal of Applied Microbiology. v.119, p.475-486, 2015.

SILVA, V. L. M.; SANTOS, L. M. N. B. F.; SILVA, A. M. S. Ohmic Heating: An

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STÉPHANIE, R., MATHILDE, C., INÈS, B.-A., FRANCESCO, M. MARIO, M.,

JEANPIERRE, P. Comparative thermal impact of two UHT technologies, continuous ohmic heating and direct steam injection, on the nutritional properties of liquid infant formula. Journal of Food Engineering, v.179, n. 43, p.36-59, 2017.

SAKR, M.; SHULI LIU, S. A comprehensive review on applications of ohmic heating (OH). Renewable and Sustainable Energy Reviews, v.39, p.262–269, 2014.

Ramon Rocha é mestrando em Ciência e Tecnologia de Alimentos pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ, atuando com tecnologias emergentes no setor alimentício e na elaboração de novos produtos para a área de lácteos. Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Salgado de Oliveira (2016), além de formação como Auditor Interno do sistema de gestão de qualidade HACCP/APPCC, pela instituição SGS Academy (2012). Atualmente é responsável técnico da microbiologia do Núcleo Avançado em Tecnologia de Alimentos (RJ). Atua também na elaboração de projetos de pesquisa, com assuntos relacionados à tecnologia, alimentos funcionais,  controle microbiológico de alimentos e afins, além de atuar no ensino, já tendo ministrado aulas sobre tecnologia de leite e derivados como professor convidado em universidades e encontros técnicos. Tem experiência na área de microbiologia, já tendo atuado em diversos segmentos da área, bem como microbiologia hospitalar no Instituto Nacional do Câncer (INCA), consultorias e elaboração de manuais para serviços de alimentação. Coordenou o projeto de reabertura do laboratório de microbiologia da maior indústria de leite em pó de cabra do Brasil, além de elaboração dos planos de rastreabilidade microbiológica da indústria.

Imagem: Steemit.com 

Este post foi um dos vencedores do Concurso Cultural do blog Food Safety Brazil, que ofereceu vagas no V Simpósio Internacional 3M Food Safety.

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