Pasteurização do leite | Um pouco de história

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Do século XIX até a metade do século XX

O processo de aquecimento do leite foi reconhecido em 1824 como benéfico, quando William Dewees, um médico americano, recomendou a fervura do leite seguida de resfriamento, antes de alimentar bebês. De acordo com ele, este tratamento aumentava a vida útil do leite, afirmando que “a tendência a se decompor era diminuída”. Com o advento da industrialização em torno da virada do século 20, o aumento da produção e distribuição de leite levou a surtos de doenças veiculadas pelo leite.

As doenças comuns transmitidas pelo leite durante esse período eram febre tifoide, difteria, escarlatina, tuberculose e antraz. Entretanto, as informações sobre a destruição de patógenos pelo calor antes de 1900 eram limitadas. Curiosamente, a destruição de microrganismos patogênicos não foi o motivo por trás das primeiras versões comerciais do processo. O impacto do aquecimento do leite cru na saúde pública só se tornaria aparente nos anos posteriores, essencialmente como um benefício secundário.

A pasteurização é o processo de aquecimento de um líquido abaixo do ponto de ebulição para destruir microrganismos. Foi desenvolvida por Louis Pasteur em 1864 para auxiliar na conservação do vinho. Embora o próprio Pasteur não tenha aplicado a pasteurização ao leite, ele realizou estudos posteriores demonstrando que a acidificação do leite era devido ao crescimento de microrganismos. O trabalho de Pasteur explicou o papel dos microrganismos como causa de mudanças indesejáveis nos alimentos.

Muitos pesquisadores depois de Pasteur aplicaram a pasteurização ao leite para destruir microrganismos, alguns a reconhecendo como uma forma de prevenir doenças transmitidas pelo leite e outros como uma maneira de aumentar sua vida útil. Essas doenças foram praticamente eliminadas com a pasteurização comercial, em combinação com práticas de manejo melhoradas em fazendas leiteiras.

Em 1873, o médico pediatra alemão, naturalizado americano, Abraham Jacobi, defendia ferver o leite de vaca antes de oferecê-lo para bebês e crianças, de modo a evitar doenças. A pasteurização do leite em escala comercial usando aquecedores contínuos era uma prática comum na Dinamarca e Suécia em meados de 1880. Na Dinamarca era exigido que o leite fosse aquecido a 85°C para evitar a propagação de tuberculose.

O primeiro equipamento comercial de operação contínua para a pasteurização do leite foi desenvolvido na Alemanha em 1882, no qual o leite era aquecido a 74-77ºC por um tempo indeterminado. Em 1884 o cientista dinamarquês Niels Johannes  Fjord criou um equipamento semelhante que aquecia o leite a 70ºC.

Mais tarde, em 1886, o químico alemão Franz von Soxhlet propôs a pasteurização do leite antes do consumo, mas o processo se resumia a ferver o leite por 40 minutos. Em 1888, Niklaus Gerber desenvolveu um método de pasteurização que envolveu o aquecimento do leite engarrafado a uma temperatura de 65°C por uma hora.

Em 1891, a taxa de mortalidade infantil na cidade de Nova York era de 240 mortes a cada 1.000 nascimentos. Acredita-se que muitas dessas mortes eram devidas ao consumo de leite cru. Em 1893, o filantropo Nathan Straus financiou um depósito para pasteurização de leite em Nova York, fornecendo leite pasteurizado para crianças de famílias pobres, a fim de combater a mortalidade infantil. O leite era aquecido em garrafas a 75°C por 20 minutos e depois resfriado rapidamente sob água corrente.

Os benefícios deste programa foram amplamente promovidos nos Estados Unidos e Europa. Apesar da falta de obrigatoriedade da pasteurização nos Estados Unidos, o tratamento térmico do leite em grande escala estava se tornando cada vez mais popular, uma vez que era reconhecido por microbiologistas e produtores de laticínios como forma de aumentar a vida útil do leite.

Em janeiro de 1908, o serviço de saúde pública dos EUA (US Public Health Service – USPHS ) e o Marine Hospital Service publicaram um artigo com o título  “Milk and its Relation to the Public Health”, que afirmava que o consumo de leite cru era perigoso e muitas vezes causava tuberculose, febre tifoide,  difteria, febre escarlate e distúrbios intestinais em bebês. Neste artigo, o médico americano Walter Wyman escreveu que a pasteurização poderia prevenir muitas doenças e salvar muitas vidas.

A primeira lei a exigir a pasteurização do leite foi aprovada em Chicago em julho de 1908. A lei exigia que todo leite de vaca que entrasse na cidade fosse pasteurizado. Assim, muitas cidades seguiram o exemplo, divulgando leis semelhantes relativas à pasteurização. Como resultado, muitas instalações comerciais de processamento de leite foram construídas nos Estados Unidos para atender às necessidades de conformidade do leite, disseminando a prática da pasteurização.

Em 1924, o Serviço de Saúde Pública dos EUA desenvolveu a Portaria Padrão do Leite para ajudar os estados com programas de pasteurização voluntários. A Portaria de Leite Pasteurizado Tipo A (PMO), como é agora chamada, define práticas relacionadas à ordenha, ao projeto da planta de processamento, manuseio de leite, saneamento e padrões para a pasteurização de leite tipo A.  Sabe-se que na Grã-Bretanha apenas 1,5% do leite era pasteurizado em 1926.

Com os avanços científicos nas áreas de produção de leite, processamento, nutrição e saúde pública, a pasteurização tornou-se mais aceita no final de 1930. Em 1938, os produtos lácteos eram a fonte de 25% de todas as doenças transmitidas por alimentos. Em 1939 a maior parte do leite de varejo ainda não era pasteurizada e isso permaneceu em muitas cidades pequenas e áreas rurais de vários países até a década de 1950.

A determinação das condições de pasteurização

Como a indústria de laticínios adotou lentamente as práticas de pasteurização, numerosos estudos forneceram sugestões para combinações tempo-temperatura de pasteurização baseadas na determinação do tempo para morte térmica de microrganismos patogênicos comuns encontrados no leite cru. Por um período de tempo, as células de Mycobacterium tuberculosis foram consideradas as células bacterianas vegetativas mais resistentes ao calor no leite. Portanto, muitos cientistas entre 1883 e 1906 desenvolveram esquemas de tratamento de calor visando a destruição da M. tuberculosis.

Os parâmetros iniciais de pasteurização, conhecida como pasteurização instantânea, se resumiam a aquecer o leite a uma temperatura entre 68,3 a 81 °C por um instante, seguido de resfriamento. Em 1908, Milton J. Rosenau, então diretor do Laboratório de Higiene do Serviço de Saúde Marinha e Saúde Pública dos EUA, publicou uma revisão abrangente que estabeleceu 60°C por 20 min como o tempo e temperatura mínimos para aquecer o leite a fim de destruir a M. tuberculosis.

Em 1911, o Comitê Nacional de Padrões de Leite, um contingente de importantes bacteriologistas e autoridades de saúde pública de Nova York, recomendou uma combinação tempo-temperatura de 62,8°C por 30 minutos. Embora o método de aquecimento lento tenha sido amplamente utilizado na década de 1930, um novo método contínuo surgiu à medida que os trocadores de calor de placas eram desenvolvidos, resultando no método de pasteurização HTST (High Temperature and Short Time, ou seja, alta temperatura e curto tempo)  mais comumente usado hoje.

No entanto, os requisitos de pasteurização HTST foram difíceis de se estabelecer a partir da literatura existente na época, que não relatava os tempos mínimos de tratamento para temperaturas acima de 65,5°C. Assim, numerosos estudos foram realizados para determinar as combinações tempo-temperatura capazes de controlar efetivamente o M. tuberculosis em altas temperaturas.

O ano de 1933 representa outro ponto de referência, pois este foi o ano em que os equipamentos e métodos de pasteurização HTST foram aprovados e quando os primeiros padrões HTST de tempo-temperatura foram incluídos na Portaria de Leite Pasteurizado de Grau A (PMO); esses padrões tinham uma temperatura de pelo menos 71,1°C por pelo menos 15 segundos.

Embora as combinações de tempo-temperatura para a pasteurização tenham sido estabelecidas inicialmente para a M. tuberculosis, o organismo-alvo de pasteurização foi redefinido quando, em 1957, J. B. Enright e colaboradores, afirmaram que a Coxiella burnetii sobreviveu no leite pasteurizado a 61,7°C por 30 min.

Em resposta, o Serviço de Saúde Pública dos EUA ajustou a temperatura de pasteurização lenta para 62,8°C por 30 min, com a recomendação adicional de que esse limite aumentasse 3°C para produtos com mais gordura ou em produtos com adição de açúcar. Consequentemente, os parâmetros para pasteurização HTST também foram ajustados para 71,7°C por 15 s.

A pasteurização do leite no Brasil

A história da pasteurização do leite no Brasil não é bem relatada. Até o início do Século XX, o leite era comercializado sem nenhum tipo de tratamento. O transporte do leite era feito em latão, em fazendas próximas às cidades e entregue diretamente ao consumidor, com um curtíssimo prazo de validade.

Entre 1910 e 1912, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, ao discutir sobre a tuberculose bovina, reivindicou a pasteurização do leite para consumo humano, iniciativa que, no entanto, não foi adotada no período. A partir da década de 1920, surgiram as primeiras indústrias que se dedicaram ao beneficiamento e distribuição de leite, oferecendo leite tratado pelo processo de pasteurização lenta, tecnologia nova no país. O leite era engarrafado em frascos de vidro retornáveis.

Em 1925, houve a 1ª Conferência Nacional de Leite e Laticínios, realizada no Rio de Janeiro. Nesta conferência, se falou sobre a importância do leite para a saúde, sobre o valor dos métodos científicos e técnicos aplicáveis à sua industrialização, e também sobre os métodos mais eficientes para prevenir doenças relacionadas com a saúde do gado leiteiro. No Brasil, durante muito tempo, o leite pasteurizado foi ofertado simultaneamente com o leite cru.

No ano de 1939 o governo do Estado de São Paulo decretou que todo o leite distribuído à população deveria ser obrigatoriamente pasteurizado. Em 1940, outras exigências passam a ser feitas para a comercialização do leite pasteurizado. As garrafas de vidro deveriam possuir fecho inviolável, além de trazer a marca da empresa e a data de validade. O consumidor passa então a ter acesso ao leite com padrão conhecido e de maior confiabilidade.

A pasteurização do leite só se tornou obrigatória no Brasil em 1952, quando foi aprovado o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal. Esse decreto fez com que a qualidade do leite fosse melhorada e permaneceu em vigor até o fim da década de 1990. Em 1999 foi publicada a Portaria nº 56/1999 do Ministério da Agricultura, que regulamentou a qualidade do leite e tornou obrigatória a adoção da pasteurização rápida para o leite sob inspeção federal.

Posteriormente foi publicada a Instrução Normativa (IN) 51, vigente de 2002 até 2011 que continha um regulamento técnico de identidade e qualidade de leite pasteurizado; essa IN substituída pela IN 62, vigente até maio de 2019. Mesmo com a pasteurização sendo eficaz para o leite, algumas pessoas acreditam que a pasteurização é prejudicial ao leite, diminuindo seu valor nutritivo e que o leite cru é uma alternativa mais segura e saudável.

Referências:

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2 thoughts on

Pasteurização do leite | Um pouco de história

  • SAMIA CAVALCANTE SOUZA

    Boa noite! Esse artigo sobre a pasteurização do leite encontra-se no Scielo? Se não, haveria a possibilidade de você me enviar ele em PDF, para que eu possa incluir as referências em um trabalho que estou fazendo (sobre o aleitamento materno, mas cito o uso do leite de vaca nos séculos anteriores) – por favor?

    Sou finalista do curso técnico em enfermagem, o trabalho é para a disciplina de saúde da criança e do adolescente.

    meu e-mail é: samiacsouza@gmail.com

    Grata pela atenção!

  • Leurie Martins

    Obrigado por esta publicação que esclarece tanto sobre o assunto.

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