Por favor, parem de chamar os sulfitos de alergênicos!

5 min leitura

Sulfitos não são alergênicos! Justamente por isso, considero muito assertivo que na Resolução ANVISA/DC Nº 26 de 02/07/2015 que dispõe sobre os requisitos para rotulagem obrigatória dos principais alimentos que causam alergias alimentares, o SULFITO não fosse incluído no Anexo 1, onde se listam os principais alimentos que causam alergias alimentares e que devem ser obrigatoriamente declarados.

Este tema inclusive já foi tratado aqui no BLOG FOOD SAFETY BRAZIL nos artigos a seguir:

  1. Porque sulfito não foi considerado alergênico na RDC26/15?
  2. Sulfitos: importância na indústria alimentícia e seus possíveis malefícios à população.

Por que voltar a este tema se o primeiro parágrafo já finaliza a questão?

Há relevância justamente porque muitas empresas, algumas grandes e formadoras de opinião, ainda insistem em colocar os SULFITOS em suas listas de alergênicos, muitas vezes fazendo exigências a seus fornecedores que são similares ao que se faz com alergênicos típicos, porém, são casos específicos que exigem, se necessário, controles diferentes.

Se tratado tudo num mesmo pacote, temos a criação de burocracias e inclusão de custos que não agregam valor em termos de segurança dos alimentos, além de colaborar com a geração de desinformação na ciência dos alimentos. Por isso, temos sim que esclarecer e desmistificar um pouco mais este assunto.

É importante nesta discussão iniciar definindo o que são alergênicos e alergias alimentares, e a própria Resolução citada anteriormente traz uma ótima definição:

Alergênico alimentar é qualquer proteína, incluindo proteínas modificadas e frações proteicas, derivada dos principais alimentos que podem causar alergias alimentares, que por sua vez são reações adversas reprodutíveis mediadas por mecanismos imunológicos específicos que ocorrem em indivíduos sensíveis após o consumo de determinado alimento.

Ou seja, são as proteínas contidas em alimentos que podem causar reações alérgicas, e os sulfitos não são proteínas, mas sais do ácido sulfuroso H2SO3, e estes sais de sulfito contêm o ânion SO3 -2, normalmente usados nas formas descritas na figura 1.

 

Figura 1: Fórmulas químicas, rendimento teórico de SO2 e respectivos números de identificação internacional dos agentes sulfitantes.

Numa alergia típica, nosso sistema imunológico identifica o ingresso de uma macromolécula proteica estranha, chamada de antígeno e  então produz proteínas destinadas a unirem-se às invasoras, anulando-as. Estas proteínas são os anticorpos, e esta reação mútua é sumamente específica e constitui um mecanismo de defesa. Mas o sistema imunológico pode falhar e não cumprir devidamente com sua obrigação ou até voltando-se contra o indivíduo, o que pode acontecer de duas maneiras:

  1. Funcionando de forma insuficiente, que é chamado de imunodeficiência, e deixa os indivíduos susceptíveis ao ataque de organismos estranhos que podem causar doenças;
  2. Funcionando de forma exagerada em relação a substâncias que normalmente são bem toleradas pela maioria dos indivíduos, isto se conhece pelo nome de alergia.

Portanto, uma alergia é a reação antígeno-anticorpo, mas esta não é a causa imediata das manifestações, estas produzem-se pela liberação ou ativação de substâncias biológicas sumamente ativas. Estas substâncias causam uma série de mudanças na musculatura lisa, nas paredes dos vasos, no sangue e em diversas glândulas que dão como resultado a sintomatologia própria da reação alérgica, em casos graves e extremos, podendo levar inclusive a choques anafiláticos e até causar morte.

Então qual é o problema com os sulfitos?

Os agentes sulfitantes são classificados como aditivos alimentares e atuam na inibição da deterioração provocada por bactérias, fungos e leveduras em alimentos ácidos, e na inibição de reações de escurecimento enzimático e não enzimático durante processamento e estocagem.

Os sulfitos agem como inibidores de inúmeras enzimas, incluindo polifenoloxidase (PFO), ascorbato oxidase, lipoxigenase, peroxidase e enzimas dependentes de tiamina. PFO é encontrada em frutas e vegetais e a inibição de sua atividade é amplamente utilizada no controle da deterioração enzimática. A atividade da PFO é alta em alimentos que são particularmente sensíveis ao escurecimento oxidativo, como batatas, maçãs, cogumelos, bananas, pêssegos, coco ralado, sucos de frutas e em vinhos.

Sulfitos podem inibir diretamente a enzima ou também interagir com os intermediários da reação de escurecimento, impedindo sua participação nas reações que levam à formação de pigmentos escuros.

Os agentes sulfitantes são quimicamente equivalentes após incorporação no alimento, uma vez que são convertidos às mesmas espécies iônicas ou não-iônicas em um determinado pH, força iônica, concentração não-eletrolítica e temperatura, conforme reações químicas mostradas na equação química a seguir com a dissociação do metabissulfito de potássio (K2S2O5) em meio aquoso:

O íon bissulfito é a espécie predominante em alimentos que apresentam pH entre 3 e 7, enquanto em valores de pH menores que 3 e maiores que 7, o desvio do equilíbrio é direcionado para a formação de SO2 molecular e íon sulfito, respectivamente.

Contudo, a ingestão de alimentos contendo sulfitos tem sido considerada como uma das principais causas de broncoespasmos em indivíduos asmáticos que são entre 3 a 5% da população, muito embora indivíduos sensíveis a sulfitos sem histórico de reações asmáticas também possam também apresentar reações adversas após ingestão de alimentos sulfitados. Mas existem dados que indicam que tal ocorrência atinge cerca de 5 a 10% dos adultos que são asmáticos e não todos, e que os indivíduos sensíveis a sulfito são mais afetados quando essas substâncias são inaladas.

Aqui temos então uma diferença crucial no mecanismo de resposta imunológica da alergia: qualquer quantidade, mesmo traços ínfimos, pode desencadear uma resposta do organismo, mas no caso do sulfito não, pois o risco estará associado à exposição a uma determinada quantidade, que no caso do sulfito foi bem estudada e definida, sendo o limite Ingestão Diária Aceitável (IDA) determinado pelo JECFA (1998) de 0,7 mg/ kg peso corpóreo/ dia, expresso como SO2.

Isso ajuda muito, por exemplo, no desenvolvimento de produtos, para determinarmos limites de controle para monitoramentos de validação de limpeza, em controle de PCCs (Pontos Críticos de Controle) ao longo dos processos, ou mesmo, para controle de qualidade na liberação de produtos fabricados.

Entender claramente que sulfitos não são alergênicos em análises de riscos voltadas a Food Safety se mostra relevante, especialmente porque nos ajuda a compreender que as medidas preventivas devem ser diferentes:

*** Num alergênico típico se requer um cuidado extremo em termos de riscos com contaminação cruzada. Não existem limites realmente seguros quanto a higienizações numa linha industrial onde haja produção intercalando produtos com e sem alergênicos, para garantir total ausência de riscos no produto que não deveria ter alergênicos. Mesmo traços não detectados em métodos analíticos poderiam desencadear uma reação alérgica em indivíduos mais sensíveis, justo porque bastam picogramas para o organismo desencadear uma resposta imunológica a proteínas.

*** Já no caso do sulfito é diferente, existem limites de tolerância bem conhecidos, e isso nos permite construir mais adequadamente medidas de controle ao longo dos processos, ficando mais fácil validar que não há presença, ou que há presença, mas está em níveis aceitáveis.

Por isso tudo, a questão do sulfito pode e deve ser considerada no levantamento de perigos quando se considera que entre o público-alvo consumidor de um produto pode haver pessoas asmáticas, porém a forma de lidar com este perigo não é a mesma que deve ser usada quando se lida com alergênicos. Por isso, para que as medidas sejam apropriadas e assertivas, deve-se começar tratando os sulfitos pelo que eles são, e não são alergênicos.

18 thoughts on

Por favor, parem de chamar os sulfitos de alergênicos!

  • Marcela Duarte

    Olá! Ótimo texto, mas e quando precisamos atender a União Europeia?

    • Marco Túlio Bertolino

      Não tem jeito, se seu cliente pede, independente de tudo, a gente faz, vai além do food safety, é questão relação busineess to business, mas estas informações ajudam a argumentar, explicar e mostrar como direcionou ações numa auditoria.

  • Marcia Aguiar

    Bem esclarecedor esse post, uma dúvida muito comum no levantamento de perigos. Parabéns…

  • Ana Caroline Pelegrino

    Texto super esclarecedor! Parabéns!

  • Marcos Roberto E. Sá Nogueira

    O texto é realmente esclarecedor e ótimo para direcionar esforços, sem tratrar sulfitos como alergênicos. No entanto eu tenho a mesma dúvida da Marcela Duarte. Certificações de Segurança de Alimentos, no caso FSSC22000, nos exige o atendimento aos países de exportação.
    Como proceder (manipulação, armazenamento e demais cuidados preventivos) para o devido atendimento a União Europeia e demais destinos?

    • Marco Túlio Bertolino

      Não tem jeito, se seu cliente pede, independente de tudo, a gente faz, vai além do food safety, é questão relação busineess to business, mas estas informações ajudam a argumentar, explicar e mostrar como direcionou ações numa auditoria.

  • Marco Túlio Bertolino

    Se um cliente exige, e vale o custo benefício do contrato, devemos fazer o que o cliente quer. É uma questão comercial acima da técnica. Mas ter argumentos para buscar melhores soluções junto a estas exigências, ajuda muito.

  • Rogério Castro

    Ótimo texto, muito recheado de informações!

  • Everton Santos

    Ótimo texto !!!

  • Joanna

    Ola, eu tenho alergia a vinhos e cervejas, mas não eh sempre, fico com o rosto vermelho e quente, posso tomar o vinho em um dia e ter essa reação e tomar no dia seguinte e não ter, o que pode ser?
    Vinhos gran reserva não me dar essa reação, tem alguma coisa relacionada ao sulfito?

    • Marco Túlio Bertolino

      Oi Joanna, sem dúvidas o vinho tem sulfito, são acrescentados com função antioxidante, antibacteriana e conservatória, e sem eles, os vinhos poderiam se degradar mais rapidamente, dificultando toda cadeia de distribuição. Os gran reserva também levam sulfito.
      Contudo, como o artigo explica, sulfitos causam sintomas como o que descreveu sentir, mas isso não é necessariamente uma alergia. Alergias são reações exageradas do organismo de alguns indivíduos a uma determinada proteína, o que não é o caso do sulfito, que não são proteínas.

  • Liliana Pérez

    Se o senhor pudesse sentir o que me acontece cada vez que eu como, por engano ou falta de informação, um alimento com sulfitos: mudaria de opinião. Além dos asmáticos, deve-se considerar às pessoas que sofrem efeitos digestivos, como vômitos, diarreias e enxaquecas ficando. É preciso entender que não é de pouca relevância o assunto, por mais que ainda não se conheçam os mecanismos de ação. Deixo aqui referências https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/63533/1/2-Favero-et-al-Sulfitos-13-06-2011.pdf

    • Marco Túlio Bertolino

      Ok Lilian, obrigado por seu comentário! Entendo que o sulfito seja um problema para você, neste caso, evite alimentos que usem sulfito como vinho, frutas desidratadas, passas, coco ralado, etc, leia sempre os rótulos. Veja que o artigo não diz que o sulfito não seja um problema para algumas pessoas, porém, que sua ação não é via um mecanismo que possa ser chamado de alérgico. Como diz no artigo, uma alergia típica está associada a uma resposta autoimune exagerada do organismo de certos indivíduos a proteínas que o organismo interpreta erradamente como um inimigo (como, por exemplo, as proteínas do leite, ovo ou da soja), portanto, por mais que o sulfito possa ser um problema para algumas pessoas, não é via um mecanismo alérgico, e é justamente o mecanismo de ação que define o que é ou não uma alergia.

  • Andreia Sperandio

    Uma dúvida, como é possível saber a quantidade de sulfito por produto? Existe essa possibilidade?

    • Marco Túlio Bertolino

      Há limites de uso determinadas pela legislação, porém, não há necessidade de declarar a quantidade exata utilizada por produto, considerando ainda que o sulfito inicialmente adicionado numa formulação irá reduzir gradualmente durante a shelf life do produto, podendo zerar ou ficar próxima a zero da validade. Mas para uma questão pontual, a forma de saber a quantidade por produto, é via análise físico química.

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