Propósito
O objetivo deste texto é fornecer orientação aos países membros da OIE (Organização Mundial de Saúde Animal – veja os membros aqui) no que diz respeito ao papel e responsabilidades dos Serviços Veterinários* na segurança dos alimentos, para auxiliar no cumprimento dos objetivos de “Food Safety” estabelecidos nas legislações nacionais e as exigências dos países importadores.
Figura 1 – Logo da OIE
Fonte: IVSA
Contexto
Historicamente, os Serviços Veterinários foram criados para controlar doenças do rebanho bovino em nível de fazenda, com ênfase na prevenção e controle das principais epizootias (significado de epizootia), além de doenças que podem afetar os seres humanos (zoonoses). À medida que os países começaram a trazer graves doenças para seu território, o âmbito dos serviços de saúde animal aumentou, a fim de garantir uma produção mais eficiente e um produto de origem animal de melhor qualidade.
O papel dos Serviços Veterinários tem se estendido da fazenda ao matadouro, onde os veterinários exercem uma dupla responsabilidade – a vigilância epidemiológica das doenças dos animais e garantia da segurança da carne. A educação e treinamento dos veterinários, que inclui tanto a saúde animal (incluindo zoonoses) como a higiene e inspeção dos alimentos tornam-os unicamente equipados para desempenhar um papel central na garantia da segurança dos alimentos, especialmente a segurança dos produtos de origem animal. Conforme descreveremos abaixo, além dos veterinários, vários outros grupos de profissionais estão envolvidos no apoio integrado à segurança dos alimentos em toda cadeia de produção.
Figura – Veterinário atuando tradicionalmente em fazendas
Fonte: Publimetro
Abordagens para a segurança dos alimentos
1. O conceito da produção de alimentos contínua
A qualidade e segurança de alimentos são asseguradas da forma mais eficaz através de uma abordagem integrada e multidisciplinar, considerando toda a cadeia de produção. A eliminação ou controle de riscos na fonte, isto é, uma abordagem preventiva, é mais eficiente na redução ou eliminação de efeitos indesejados na saúde humana, do que confiar todo o controle sobre o produto final, aplicada tradicionalmente através do “controle da qualidade”. As abordagens para a segurança dos alimentos têm evoluído nas últimas décadas, de controles tradicionais baseados em Boas Práticas (Boas Práticas Agrícolas, Boas Práticas de Higiene, etc), até sistemas de segurança de alimentos mais direcionados à Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) com abordagens baseadas em risco.
2. Os sistemas de gestão baseadas no risco
O desenvolvimento de sistemas baseados no risco tem sido fortemente influenciado pelo acordo da OMC (Organização Mundial do Comércio) sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (Acordo “SPS”). Este acordo estipula que signatários devem assegurar que suas medidas sanitárias e fitossanitárias são baseadas em uma avaliação de riscos para a saúde humana, animal e vegetal, utilizando técnicas desenvolvidas por organizações internacionais relevantes. A avaliação de risco, o componente científico da análise de risco, deve ser separada da gestão de riscos para evitar a interferência de interesses econômicos, políticos e outros. O Acordo “SPS” reconhece especificamente como referências internacionais as normas desenvolvidas pela OIE para saúde animal (zoonoses), e pela Comissão do Codex Alimentarius para a segurança dos alimentos. Nas últimas décadas também tem havido uma tendência para redefinição das responsabilidades. A abordagem tradicional, em que os manipuladores de alimentos são considerados os principais responsáveis pela qualidade dos alimentos, enquanto as agências reguladoras são encarregadas de garantir a segurança dos alimentos, tem sido substituída por sistemas mais sofisticados em que dão aos manipuladores de alimentos, a responsabilidade de ambos, tanto da qualidade como da segurança dos alimentos. O papel das autoridades supervisoras é analisar informações científicas com base no desenvolvimento de normas apropriadas para segurança dos alimentos e realizar inspeções para garantir que os sistemas de controle sejam adequados, validados, eficientes e acima de tudo cumpridos. Em caso de não cumprimento, as agências regulatórias são responsáveis por garantir que ações corretivas apropriadas sejam tomadas, e as sanções cabíveis, aplicadas.
Os Serviços Veterinários desempenham um papel essencial na aplicação e implantação do processo de análise de risco, incluindo a extensão e natureza veterinária das atividades de segurança de alimentos em toda a cadeia, conforme descrito acima. Cada país deve estabelecer seus objetivos de proteção à saúde pública e animal, através de consulta com as partes interessadas (especialmente produtores, processadores e consumidores), em conformidade com os contextos sociais, econômicos, culturais, e religiosos do país. Estes objetivos devem ser colocados em prática por meio de legislação e política nacional, e por meio de medidas que aumentem a consciência dentro do país e parceiros comerciais.
3. Funções dos Serviços Veterinários
Os Serviços Veterinários contribuem para realização destes objetivos através da atuação direta de certas tarefas veterinárias, e por meio de auditorias das atividades de saúde pública e animal conduzidas por agências governamentais, veterinários do setor privado e outras partes interessadas. Além dos veterinários, vários outros grupos de profissionais estão envolvidos para garantir a segurança dos alimentos em toda a cadeia alimentar, incluindo os analistas, epidemiologistas, tecnólogos de alimentos, profissionais de saúde humana e ambiental, microbiologistas e toxicologistas. Independentemente das funções atribuídas aos diferentes grupos profissionais e interessados pelo sistema administrativo no país, uma estreita cooperação e comunicação eficaz entre todos os envolvidos é imperativo para alcançar os melhores resultados com os recursos combinados. Onde tarefas veterinárias são delegadas a indivíduos ou empresas, não concernentes à autoridade veterinária, informações claras sobre os requerimentos regulamentários e um sistema de controle devem ser estabelecidas para monitorar e verificar o desempenho das atividades delegadas. A autoridade veterinária mantém a responsabilidade final para o desempenho satisfatório dessas atividades.
4. Ao nível de fazenda
Através da sua presença nas fazendas e com colaboração adequada aos produtores, os Serviços Veterinários desempenham um papel chave na garantia de que os animais serão mantidos em condições higiênicas e de que haverá detecção precoce, vigilância e tratamento de doenças, incluindo as de importância na saúde pública. Os Serviços Veterinários também podem dar informações e aconselhamentos de como evitar, eliminar ou controlar na produção primária os riscos da segurança de alimentos (por exemplo, resíduos de drogas e pesticidas, micotoxinas e contaminantes ambientais), incluindo por meio da nutrição animal. O suporte técnico dos Serviços Veterinários é importante e tanto veterinários privados, como funcionários da autoridade veterinária podem ajudar.
Os Serviços Veterinários desempenham um papel central na garantia do uso responsável e prudente dos produtos biológicos e medicamentos veterinários, incluindo antibióticos, na criação animal. Isto ajuda a minimizar o risco de desenvolvimento de resistência antimicrobiana e níveis inseguros de resíduos de medicamentos veterinários em produtos de origem animal.
5. Inspeção da carne
A inspeção de animais vivos (ante-mortem) e as suas carcaças (post-mortem) em matadouros desempenha um papel chave na rede de vigilância das doenças de animais e zoonoses, e na garantia da segurança, adequação da carne e subprodutos para suas utilizações previstas. Controle ou redução dos riscos biológicos de importância na saúde pública e animal, através da inspeção de carnes ante e post-mortem, é uma responsabilidade central dos veterinários, e estes devem ter a responsabilidade primária para o desenvolvimento de programas de inspeção pertinentes.
Figura – Exemplo de veterinário na inspeção da carne
Fonte: Portal do Agronegócio
Sempre que possível, os procedimentos de inspeção devem ser baseados nos sistemas de risco. Os sistemas de gestão devem retratar os padrões internacionais e abordar os riscos significativos para a saúde humana e animal. O Código de Práticas de Higiene para a Carne (CHPM) do Codex Alimentarius constitui o principal padrão internacional para a higiene da carne, e incorpora uma abordagem baseada no risco para a aplicação de medidas sanitárias em toda a cadeia da produção de carne.
Tradicionalmente, o principal foco do Código Terrestre foi sobre a proteção global da saúde animal e sua transparência. Sob seu atual mandato, a OIE também aborda riscos de segurança de alimentos em produtos de origem animal. O Código Terrestre inclui várias normas e recomendações destinadas a proteger a saúde pública e o desenvolvimento de novas normas para evitar a contaminação de produtos de origem animal por Salmonella spp. e Campylobacter spp. A OIE e o Codex colaboram estreitamente no desenvolvimento de normas para garantir a perfeita cobertura de toda a cadeia da produção de alimentos. As recomendações da OIE e da Comissão do Codex Alimentarius, para a produção e segurança dos produtos de origem animal, devem ser lidas em conjunto.
A Autoridade Veterinária deve prever certa flexibilidade na prestação do serviço de inspeção da carne. Os países podem adotar modelos administrativos diferentes, envolvendo graus de delegação a órgãos competentes reconhecidos oficialmente que operam sob a supervisão e controle da Autoridade Veterinária. Se o pessoal do setor privado realiza as atividades de inspeção ante-mortem e post-mortem sob a supervisão e responsabilidade da Autoridade Veterinária geral, esta deve especificar os requisitos de competência para todas as pessoas e verificar seu desempenho. Para assegurar a aplicação eficaz dos procedimentos de inspeção ante-mortem e post-mortem, a Autoridade Veterinária deve dispor de sistemas para o monitoramento desses procedimentos e a troca de informações obtidas. A identificação animal e os sistemas de rastreabilidade dos animais devem ser integrados, a fim de serem capazes de rastrear os animais abatidos até o seu lugar de origem, e os produtos derivados durante toda cadeia de produção de carne.
6. Certificação de produtos de origem animal para o comércio internacional
Outra função importante dos veterinários é garantir que a certificação sanitária para o comércio internacional esteja em conformidade com as normas de saúde animal e segurança de alimentos. Certificação em relação às doenças animais (incluindo zoonoses) e higiene da carne devem ser da responsabilidade da Autoridade Veterinária. A certificação pode ser fornecida por outras profissões em conexão com o processamento de alimentos e higiene (por exemplo, pasteurização de produtos lácteos), e conformidade com os padrões de qualidade do produto.
7. Os papéis dos Serviços Veterinários
A maioria dos surtos relatados de doenças transmitidas por alimentos (DTA) é devido à contaminação de alimentos com agentes zoonóticos, muitas vezes durante produção primária. Os Serviços Veterinários desempenham um papel fundamental na investigação de tais surtos em todo o caminho de volta até a fazenda, e na formulação e implementação de medidas corretivas, uma vez que a origem do surto foi identificada. Este trabalho deverá ser realizado em estreita colaboração com profissionais da área de saúde humana e ambiental, analistas, epidemiologistas, produtores, processadores, comerciantes de alimentos e outras pessoas envolvidas.
Além dos papéis mencionados acima, os veterinários estão bem equipados para assumir papéis importantes para a garantia da segurança dos alimentos em outras partes da cadeia alimentar, por exemplo, através da aplicação de controles baseados no sistema APPCC e outros sistemas de garantia de qualidade durante o processamento e distribuição dos alimentos. Os Serviços Veterinários também desempenham um importante papel na sensibilização dos produtores de alimentos, processadores e outras partes interessadas.
8. Otimizando a contribuição dos Serviços Veterinários para a segurança dos alimentos
A fim de que os Serviços Veterinários façam a melhor contribuição possível para a segurança dos alimentos, é importante que a educação e formação destes profissionais nos papéis descritos atendam a elevados padrões, e que existam programas nacionais de desenvolvimento profissional contínuos e abrangentes. Os Serviços Veterinários devem cumprir com os princípios fundamentais de qualidade da OIE (explicados aqui e aqui).
Deve haver uma atribuição clara e bem documentada das responsabilidades e da cadeia hierárquica de comando dentro dos Serviços Veterinários. A autoridade nacional competente deve fornecer um ambiente institucional adequado para permitir que os Serviços Veterinários desenvolvam e implementem políticas e padrões necessários, com recursos adequados para que realizem suas tarefas de forma sustentável. No desenvolvimento e implementação de políticas e programas de segurança de alimentos, a Autoridade Veterinária deve colaborar com outras agências responsáveis para garantir que os riscos de segurança dos alimentos sejam abordados de maneira coordenada.
* Serviços Veterinários significam organizações governamentais e não governamentais que implementam medidas de sanidade animal e de bem-estar, e outras normas e recomendações contidas no Código Terrestre e no Código Sanitário OIE dos animais aquáticos no território. Os serviços veterinários estão sob o controle geral e direção da Autoridade Veterinária. Organizações do setor privado, veterinários, para profissionais veterinários ou profissionais de saúde dos animais aquáticos são normalmente acreditados ou aprovados pela Autoridade Veterinária para entregar as funções delegadas.
(Nota do autor: No Brasil a “Autoridade Veterinária” dos “Serviços Veterinários” é o MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).
Artigo foi traduzido originalmente da página oficial da OIE com adaptações.
Maria
Olá, qual é o autor do texto?