Para surpresa de alguns, não existe uma espécie de peixe chamada bacalhau, pois damos este nome a alguns peixes pertencente à família Gadidae, que passam por um processo de desidratação por salga e secura.
O que o título deste artigo chama de “qualidade” é que o bacalhau, de fato, seja um tipo de peixe que possa ter esta denominação, sem fraudes, e em segundo lugar, que esteja livre de contaminantes ou deterioração, portanto, seja seguro.
De forma geral, os peixes que processados dão origem ao bacalhau possuem alto teor proteico e baixo valor calórico. Uma porção de bacalhau cru com cerca de 100 g possui em média 140 calorias, 25 g de proteína e gordura total inferior a 4 g, sendo considerado um peixe magro. Também fornece ômega 3 e as vitaminas A, D, E, B2, B6 e B12, além de manganês, magnésio, fósforo, cálcio, potássio e sódio.
O bacalhau pode compor pratos e ser servido nas mais diversas formas, seja em postas, pedaços, desfiado, em bolinhos, em caldos, tortas e em saladas, podendo ser cozido, grelhado, e de preferência, regado com um bom azeite e acompanhado de uma boa taça de vinho.
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Este artigo trata justamente desta iguaria, tão apreciada na culinária internacional, chamado de stockfish para os anglo-saxônicos, baccalà para os italianos, bacalao para os espanhóis, morue para os franceses, codfish para os ingleses, bakaliáros para os gregos, bakalar para os croatas, kabeljauw para os holandeses, tørfisk ou klippfisk para os escandinavos, saltfiskur para os islandeses, e claro, bacalhau para os povos de língua portuguesa, incluindo nós, brasileiros.
Os portugueses elevaram o preparo do bacalhau ao estado da arte, com diversas receitas desenvolvidas como à Gomes de Sá, com natas, à Brás, à lagareiro, ao Zé do Pipo e muitas outras, e eles criaram a sua própria definição, “bacalhau não é peixe nem carne, bacalhau é bacalhau“.
Do ponto de vista técnico, o que chamamos de bacalhau é um peixe salgado e seco, elaborado com peixe limpo, eviscerado, com ou sem cabeça e convenientemente tratado pelo sal, contendo não mais do que 40% de umidade.
Por ter sido desidratado, concentra propriedades nutricionais, e devido a este fato, em média, 1 kg de bacalhau pode equivaler a 3 kg de peixe fresco.
Dentro destas características, existem 6 tipos diferentes de peixes salgados e secos no mercado brasileiro:
- Gadus morhua, habita o Atlântico Norte, conhecido popularmente como bacalhau do Porto, tem postas altas e claras e se desfaz em lascas tenras quando cozido, sendo perfeito para a culinária;
- Gadus macrocephalus, muito parecido com o primo do Atlântico Norte, porém habita o Pacífico Sul. Sua carne é ainda mais branca, porém não se desmancha em lascas tão uniformes;
- Gadus ogac, conhecido como bacalhau da Groelândia. Esta espécie não é comumente importada pelo Brasil;
- Ophiodon elongatus, conhecido como Ling, possui uma carne clara, tem uma espessura mais estreita e mais rígida e firme;
- Pollachius virens, conhecido com o Saithe, tem a carne mais escura ou mais amarelada, com sabor mais forte e desfia facilmente depois de cozido, sendo uma opção recomendada para bolinhos e recheio de tortas;
- Brosmius brosme, chamado de Zarbo, é um peixe pequeno e claro, com postas pequenas e com menos intensidade de sabor, de carne mais fibrosa, também uma opção para bolinhos e recheio de tortas.
Os três primeiros peixes são produtos de maior valor agregado devido a sua aparência e sabor, reconhecidos como verdadeiros bacalhaus, e os três últimos são espécies que possuem menor valor comercial e não podem ser chamados de bacalhau, mas de “peixe tipo bacalhau”. Por isso, é comum serem alvos de fraude econômica nos pontos de venda quando se tenta vender uns pelos outros.
Mas isso não significa que Ling, Saithe ou Zarbo não sejam bons peixes para o consumo, pois nutricionalmente são, podendo ser apropriados a muitas receitas como bolinhos, recheio de tortas e caldos, mas não são boas opções culinárias quando se requer postas que soltem lascas firmes, que são, geralmente, as características mais apreciadas nos verdadeiros bacalhaus.
CLASSIFICAÇÕES DE QUALIDADE E FORMAS DE COMERCIALIZAÇÃO
Os bacalhaus podem ainda ser classificados em 3 categorias comerciais quanto a sua qualidade percebida:
- Imperial, que é a melhor classificação e significa que o peixe está bem cortado, escovado e curado. O Porto Imperial é exemplo do melhor dos melhores bacalhaus;
- Universal, uma classificação que identifica o bacalhau que apresenta pequenos defeitos, muitas vezes decorrentes da captura ou pesca, em função das redes e anzóis, mas que não chegam a comprometer sua qualidade, visto que o sabor é o mesmo do Imperial;
- Popular, que apresenta manchas e falta de pequenos pedaços extirpados pelo arpão, redes ou anzóis, mas obviamente, assim como os outros, isento de problemas de food safety.
Este tipo de pescado pode chegar aos mercados consumidores em quatro condições que requerem diferentes técnicas de processamento:
- Fresco, distribuído especialmente para a Europa, primeiramente para a Noruega, Dinamarca, Suécia e Holanda, países que estão próximos das áreas de produção. O mais apreciado é o chamado Skrei, Gadus Morhua já adulto, pescado em Lofoten após migrarem do Ártico para o Mar da Noruega para procriarem;
- Seco sem salga, considerado o produto mais nobre, produzido no arquipélago de Lofoten, seguindo a tradição herdada dos vikings: seco ao vento frio do Ártico por três meses, não tem seu corpo aberto e nem recebe sal, tal como o conhecemos no Brasil;
- Salgado sem cura, também chamado de bacalhau verde. Neste caso, no máximo 2 h depois de pescado, o peixe deve ser descarregado nas fábricas situadas nos cais dos portos para degola e limpeza das tripas, para só então, já sem cabeça e vísceras, ser lavado e espalmado, tendo retirado dois terços da espinha central, depois empilhado em grandes fardos com sal em camadas onde permanece ao menos por 8 dias, ao fim dos quais fica com aproximadamente 16% de sal e entre 51 – 58% de umidade. Nesta condição é exportado, sobretudo para Portugal, onde é submetido ao processo final de secagem;
- Salgado e seco, como conhecemos mais popularmente no Brasil. A salga é uma das mais antigas técnicas de conservação de alimentos, cujo método se baseia na utilização do cloreto de sódio (NaCl) que possui uma dupla ação: desidratar por diferença de pressão osmótica entre o meio externo e interno, e penetrar na carne, baixando a atividade da água.
UM POUQUINHO DE HISTÓRIA
A história do bacalhau é milenar, os registros mais antigos falam de sua manufatura na Escandinávia ainda no Século IX, especialmente onde atualmente fica a Islândia e a Noruega, pelos povos que conhecemos como vikings, considerados os pioneiros na pesca do Gadus morhua, espécie farta nos mares por onde navegavam.
O clima seco e frio favorecia seu processamento, por isso apenas secavam o peixe ao ar livre, até que perdesse quase a quinta parte de seu peso e endurecesse como uma tábua, para ser conservado e depois consumido aos pedaços nos longos e rigorosos invernos da região e nas viagens que faziam pelos oceanos.
A cidade de Kristiansund, na Noruega, tornou-se um lugar importante de compra de bacalhau, lá chamado de klippfisk, peixe precipício, pois era seco nos penhascos de pedra dos fiordes.
Os bascos, povo que habitava as duas vertentes dos Pirineus Ocidentais, utilizavam outra técnica para a conservação, a salga, realizando o comércio deste peixe curado, salgado e seco, o que também apurava o sabor.
Foi, portanto, na costa norte da atual Espanha e fronteira com a França, que o bacalhau começou a ser salgado e depois seco nas rochas, ao ar livre, para que fosse melhor conservado e facilitasse seu transporte e comércio.
Devemos aos bascos, como se vê, o comércio do bacalhau, fazendo com que o produto ganhasse notoriedade e se difundisse por novas fronteiras, em especial na Península Ibérica, chegando aos reinos que compunham a Espanha, Galícia e Portugal.
Justamente por estar seco e salgado, o que aumenta a shelf life, o bacalhau foi uma revolução na alimentação, afinal, na época os alimentos perecíveis como os peixes estragavam facilmente pela precária conservação e tinham sua comercialização limitada, lembrando que a geladeira só surgiu no século XX.
Assim, o bacalhau se tornou um protagonista essencial para as grandes navegações. Por volta do século XV, os portugueses “descobriram” este produto, que se tornou a solução para oferecer às tripulações das naus e caravelas uma alimentação mais saudável durante as longas viagens marítimas.
O bacalhau durante as navegações tornou-se tão presente que passou até a ser chamado pelos portugueses de “fiel amigo”.
A cidade do Porto foi a primeira a receber e preparar o bacalhau que os pescadores buscavam nas águas geladas da Terra Nova, Islândia e Groenlândia, por isso, ainda hoje, a cidade de Porto é a capital culinária do bacalhau.
Rapidamente, o consumo do bacalhau se espalhou também entre a população de Portugal, tornando o país um dos maiores consumidores do tradicional pescado, por isso, o país também foi o primeiro importador do bacalhau da Noruega.
Os portugueses comem cerca de 70.000 toneladas de bacalhau por ano, num país com 10 milhões de habitantes, o que resulta, em termos médios, que cada português come 7 kg de bacalhau por ano.
Em Portugal, diz-se, há mais de 365 maneiras de cozinhar bacalhau, uma para cada dia do ano.
Os portugueses levaram o hábito culinário de comer bacalhau para suas colônias em diversos continentes, assim ele chegou ao Cabo Verde e Angola na África, Macau na Ásia, e claro, aqui no Brasil na América do Sul, onde é muito requisitado, mas sua demanda cresce especialmente na quaresma, um período entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Domingo da Páscoa, devido a uma tradição na qual os católicos renunciam ao consumo de carne vermelha em respeito à crucificação de Jesus Cristo.
Convenhamos que deixar de comer carne vermelha para apreciar um bom bacalhauzinho não é assim um sacrifício, não é mesmo?
Provavelmente, por tradição cultural, no Brasil o nome “Porto” passou a identificar o bacalhau de melhor qualidade, ou seja, aquele proveniente da cidade do Porto que era comercializado nos portos das capitais do Rio de Janeiro e Salvador.
Atualmente, só em Portugal, o bacalhau movimenta 420 milhões de euros por ano (mais de um bilhão e 900 milhões de reais), mas a indústria portuguesa também alimenta o mercado internacional. Para se ter uma ideia, cerca de 25% de toda a produção portuguesa de bacalhau é exportada, e destes, mais de um terço são para o Brasil.
O bacalhau corresponde a cerca de 10% da indústria de pescados do mundo.
Atualmente, para garantir uma pesca sustentável, na qual se pesque a cada ano mantendo matrizes para que se reproduzam para o próximo período de pesca, vários países assinam tratados internacionais de controle da pesca, com o objetivo de assegurar a reprodução e a preservação do “Príncipe dos Mares”.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS BACALHAUS
Como se viu até aqui, nem todo peixe seco e salgado é um bacalhau de fato, pois para ser considerado bacalhau, o peixe deve pertencer a uma dessas três espécies: Gadus morhua (bacalhau do Porto ou Cod), Gadus macrocephalus (bacalhau do Pacífico) ou Gadus ogac (Babalhau da Groelândia).
As fraudes mais comuns ocorrem quando outros peixes são rotulados e/ ou vendidos como bacalhau sem de fato serem, o que pode ocorrer especialmente com o Ophiodon elongatus (Ling), Pollachius virens (Saithe) e Brosmius brosme (Zarbo).
Mas como saber qual espécie o consumidor está adquirindo? A tabela a seguir pode ajudar a identificar as principais diferenças entre cada uma destas espécies:
Peixe | Gadus morhua | Gadus macrocephalus | Gadus ogac | Ophiodon elongatus | Pollachius virens | Brosmius brosme |
Nome popular | Bacalhau do Porto | Bacalhau do Pacífico Sul | Bacalhau da Groelândia | Ling | Saithe | Zarbo |
Características do produto salgado | Largo e com postas altas, coloração palha uniforme, pele se solta com facilidade. | Largo e com postas altas, coloração bem clara, pele se solta com facilidade. | Largo e com postas altas, coloração clara, pele se solta com facilidade. | Produto claro, estreito e alongado. | Produto de coloração mais escura, tom amarelado e até acinzentado e um pouco fibroso. | Pequeno e alongado, considerado o menos característico a bacalhau. |
Sabor | Muito saboroso. | Muito saboroso. | Muito saboroso. | Sabor suave. | Sabor mais forte. | Menos sabor. |
Características após cozido | Quando cozido se desfaz em lascas bem-feitas. | Se desfaz em lascas, mas não tão bem quando o Gadus mohua. | Se desfaz em lascas, mas não tão bem quando o Gadus mohua. | Permite um bom corte, produto firme, porém, lascas pequenas. | Quando cozido, desfia e é mais fibroso, forma lascas que se desmancham. | Quando cozido, desfia ou forma lascas mais duras e fibrosas. |
De fato, se você não é um especialista, será difícil identificar visualmente, porém, a Instrução Normativa Nº 1 de 15 de Janeiro de 2019, determina que os fabricantes informem na rotulagem os nomes científicos das espécies das famílias dos peixes utilizados para produtos salgados.
É importante comprar um bacalhau devidamente embalado e rotulado, com sua respectiva rastreabilidade, pois assim se poderá efetivamente saber que peixe está comprando.
CUIDADOS QUANTO À SEGURANÇA DOS ALIMENTOS
Quanto a questões associadas a food safety, independentemente se o peixe comprado é um bacalhau ou um peixe tipo bacalhau, esteja atento a estas características:
- Ausência de coágulos e manchas de sangue ou de fígado afetado;
- Ossos claviculares expostos, com rasgo do músculo;
- Excesso de sal aderente ao peixe;
- Deficiência de salga;
- Muco na face dorsal, em consequência de o peixe não ter sido devidamente lavado antes da secagem;
- Pegajoso na face dorsal, com desorganização da textura, resultante do excesso de calor;
- Manchas avermelhadas, devido à alteração provocada pela existência de bactérias halofílicas;
- Bolor de qualquer cor;
- Manchas amarelo-alaranjadas, devido à alteração provocada pela existência de colônias de fungos halofílicos;
- Coloração anormal, devido à existência de manchas de cor não característica ou coloração, em todo o peixe, que não seja própria do processo tecnológico de fabricação;
- Odor nitidamente desagradável, indicativo de decomposição ou não característico da espécie ou do tipo de tratamento a que o peixe foi submetido;
- Aspecto cozido, em decorrência da alteração na textura do peixe resultante da decomposição do tecido adiposo, devido à ação enzimática, resultante da armazenagem deficiente em temperatura e/ ou arejamento.
Cuidado ao servir crianças e idosos, pois mesmo que tenham declarado no rótulo a ausência de espinhas, o bacalhau pode apresentar eventuais espinhas, pois a regra fala da ausência de mais de uma espinha por kg de produto com dimensão maior ou igual a 10 mm em comprimento ou maior ou igual a 1 mm em diâmetro.
Outro ponto importante é o cuidado também com o armazenamento, pois o peixe salgado seco deve ser armazenado e transportado sob temperatura máxima de 7° C, justamente para manter sua qualidade e evitar eventuais crescimentos microbiológicos.
POR FIM…
A conclusão é que vender como bacalhau aquilo que decididamente não é bacalhau configura fraude, um crime contra as relações de consumo, pois o consumidor é levado a acreditar que está adquirindo um peixe de maior valor comercial e está levando outro inferior.
Analogamente e obviamente, um bolinho feito com peixe tipo bacalhau não é um bolinho de bacalhau, mas de peixe tipo bacalhau.
Por isso, para não cair na fraude, é importante que o consumidor leia as embalagens, conheça as principais espécies de peixes sagados e secos comercializados no Brasil e entenda as diferenças entre eles para que não seja enganado e leve par casa gato por lebre, ou melhor, não leve “tipo bacalhau” por bacalhau”.
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OTTO ALVES BORGES FILHO
O único bacalhau verdadeiro é o Gadus morhua..
Bacalhau macrocephalus é quase 100% parasitado, pois não usam mesa translúcida para identificar novelos de filarias principalmente na musculatura epaxial, não é saboroso como o do atlântico e jamais pode ser comparado!
Marco Túlio Bertolino
Obrigado por seu comentário. Segundo a legislação brasileira, o bacalhau só pode ser produzido com três espécies de peixe: o Gadus morhua, conhecido como o legítimo bacalhau do Porto; o Gadus macrocephalus e o Gadus ogac.