Os coronavírus e as origens ambiental e alimentar em perspectiva

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As previsões de novas pandemias se repetem ao longo das décadas e com preocupação justificada.  Surtos de gripe A que seriam capazes de provocar pandemias como a influenza aviária e suína e dizimar grande número de pessoas não se confirmaram. Historicamente, a gripe causada pelo vírus russo H2N2 (1889-1890) levou 1,2 milhões de pessoas a óbito. Quase três décadas depois, o vírus H1N1 da gripe espanhola (1918-1919) fez sucumbir entre 50 e 100 milhões de pessoas.  Em sequência, a pandemia do vírus da gripe asiática H2N2 (1957-1958) acometeu dois milhões de pessoas e a gripe de Hong Kong – vírus H3N2 (1968-1969) – eliminou três milhões. Mais recentes e menos letais, a pandemia da “gripe aviária” H5N1 (1997-2004) causou cerca de 400 óbitos e a pandemia da “gripe suína” H1N1 (2009-2010) levou a morte 17 mil pessoas.

Muitas das doenças infecciosas mais perigosas que afetaram as populações humanas como peste, varíola, raiva, ebola, tifo, febre amarela e AIDS, tiveram origem em animais silvestres. Em algumas situações, o vírus permanece praticamente o mesmo que nas espécies hospedeiras evolutivas e com múltiplas oportunidades para se espalhar de animais para seres humanos.

Ali Ekici e colaboradores não sabiam que ao prenunciar uma pandemia inevitável e iminente de influenza surgiria uma ameaça tão mórbida  como a Covid-19 causada pelo coronavírus humano SARS-Cov-2.

Os coronavírus são nossos conhecidos há várias décadas já que vários genomas (229E, HKU1, NL63, OC43) causam resfriado comum no homem. Entre os coronavírus causadores das Síndromes Respiratórias Agudas Graves-SRAG, o SARS-CoV-1 matou quase 800 pessoas entre 2002 e 2003 e o MERS-CoV entre 2012 e 2018 levou a óbito 791 pessoas.  Enquanto isso, até o momento, o SARS-CoV-2 causou a morte de mais de 310 mil pessoas em todo o mundo.

Essas doenças geralmente têm vários reservatórios de animais e hospedeiros intermediários, bem como vias de transmissão complexas que incluem o contato direto ou indireto entre humanos e animais.

As doenças causadas pelos beta-coronavírus emergentes causadores da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV-1) e Coronavírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV) foram originárias de morcegos.

Os beta-coronavírus são circulantes em morcegos frugívoros, o que demonstrou as necessidades de avaliar o risco de passagem para populações humanas, especialmente para indivíduos que caçam e consomem morcegos infectados.

A origem de hospedeiros animais em relação ao SARS-CoV-1 foi caracterizada nos mercados, restaurantes e fazendas  de vários países orientais  onde três pequenos carnívoros (guaxinins, civetas e ferrets) superexplorados pelo comércio internacional tiveram destaque. Uma das principais lições deixada pela  SARS-CoV-1 é que as raízes subjacentes das doenças zoonóticas emergentes podem estar na crise paralela da perda em massa da biodiversidade como resultado da exploração excessiva de populações de animais selvagens e da destruição de seus habitats naturais pelo aumento da população humana.

No caso do MERS-CoV, causador da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que está relacionado aos dromedários e camelos, especula-se  uma fonte de infecção  através da carne e, principalmente, do leite dessas espécies, sendo recomendado não ingerir esses alimentos.

O SARS-CoV-2 é o vírus mais recente dentre todos aqueles que surgiram da vida selvagem (morcegos), que romperam a barreira das espécies animais, sofreram mutações e depois se espalharam entre os seres humanos.

Na China, a maioria dos casos iniciais da Covid-19 estava relacionada a pessoas  que tinham visitado o mercado de frutos do mar –  Huanan South Seafood Market – em Wuhan, que também vende  carne e animais vivos exóticos.

Também há a questão do possível acesso de morcegos aos armazéns já que um dos principais riscos em grandes instalações de processamento de alimentos são estruturas superiores com construções não higiênicas. Surgiu a hipótese de que os frutos do mar ou a água do recipiente estivessem contaminadas (p. ex., excrementos de morcegos). A rastreabilidade e origem do pescado ou animais  deveriam ser investigadas para revelar se esses artigos do mercado de Huanan foram comercializados para outros mercados onde houve outros casos.

As carnes e os frutos do mar são ricos em glicosaminoglicanos, assim como a mucina do trato respiratória e que, portanto, podem servir como receptores altamente carregados para o SARS-CoV-2 para aderir e interagir com o tecido epitelial do hospedeiro.

No caso específico da SRAG causada pelo SARS-CoV-1, os colaboradores que abatiam ou manipulavam animais silvestres para alimentação foram os mais representados entre os casos iniciais da doença.

As evidências clínicas da Covid-19 sugerem que o sistema digestivo pode servir como uma rota alternativa de infecção quando as pessoas estão em contato com animais selvagens ou doentes infectados e portadores assintomáticos ou indivíduos com sintomas entéricos leves desde o início.

Mesmo assim, a demanda por alimentos “de luxo” exóticos em cadeias comerciais  como carnes de civeta, pangolim, porcos-espinhos, ratos de bambu, sopas de barbatana de tubarão e  de morcegos não param de crescer em restaurantes, em mercados ilegais e através de plataformas on-line, onde os consumidores também podem encontrar receitas e conselhos sobre culinária.

Semelhante a epidemia da SARS causada  pela SARS-Cov-1, a Covid-19 teve propagação zoonótica e de pessoa para pessoa, e constituiu uma ameaça significativa à saúde global e ao desenvolvimento socioeconômico.  Deve haver medidas para regulamentar a conservação da vida selvagem e a segurança alimentar para impedir a exposição humana a um novo vírus, incluindo o aumento da conscientização social sobre os perigos de consumo de carne de animais silvestres, fortalecendo a legislação sobre consumo e comércio de animais silvestres, melhorando os padrões de segurança alimentar e estabelecendo mecanismos de vigilância.

Foram expressas preocupações sobre o potencial desses vírus persistirem em alimentos crus de origem animal e existem pesquisas em andamento para avaliar a viabilidade e o tempo de sobrevivência da SARS-CoV-2 nos alimentos.

Órgãos como a Organização Mundial de Saúde -OMS e o Centro de Controle de Doenças americano – Center of Diseases Control –  têm  recomendado evitar viagens para áreas de alto risco, contato com indivíduos sintomáticos e consumo de carne de regiões com surtos de Covid-19.

Conclusões

Apesar da pandemia, parece que os governantes ainda não entenderam os aspectos ambientais dessas doenças já que nesse momento, vários mercados de animais vivos reabriram na China e em outros países asiáticos.

No Brasil, o aumento das práticas de desmatamento para atividades diversas expõe a população ao surgimento de um novo agente com potencial pandêmico. Quando ocorre essa prática, é comum por falta de desenvolvimento comercial nas imediações, haver o consumo de carne de animais de caça. Soma-se a isso o contrabando de animais vivos em virtude da queda acentuada das atividades de turismo. As autoridades brasileiras dos diferentes órgãos (saúde, ambiental, agricultura) devem se posicionar quanto a essas possibilidades evitando o surgimento de novas doenças.

Autores: Alfredo Tavares Fernandez –  Professor doutor das disciplinas de tecnologia de carnes e derivados, Inspeção de POA II e epidemiologia das Doenças de Origem Alimentar da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal Fluminense- UFF

Elaine de Castro Antunes Marques Fernandez – MBA em Segurança de Alimentos e Gestão de Qualidade e Segurança de Alimentos – Universidade Veiga de Almeida

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