Lá na sua especificação de entrada de ingredientes você tem “food grade” ou “grau alimentício”, não é? Mas sabe exatamente o que define se algo é ou não grau alimentício? Quais são os outros graus que existem?
QUAIS OS GRAUS EXISTENTES?
Vamos começar pela última pergunta: certas substâncias são usadas por inúmeras indústrias ao mesmo tempo. Por exemplo: propileno glicol.
A indústria de alimentos usa como umectante, a indústria farmacêutica como solvente e a indústria química utiliza-o como matéria-prima para produção de resinas de poliéster. Faz sentido que a produção de uma resina siga os mesmos critérios que a produção de um fármaco?
Claro que não. Por isso, existem vários graus (níveis de exigência de pureza, contaminantes e processo). Os graus mais relevantes para o nosso mercado são: alimentício, farmacêutico, veterinário e técnico.
E O QUE SERIA GRAU ALIMENTÍCIO?
Grau alimentício é a característica de uma substância que foi produzida segundo as Boas Práticas de Fabricação de Alimentos e atende os requisitos de identidade e qualidade para aquela categoria, quando existirem.
Complicado? Eu explico no quadro abaixo. Vamos usar o exemplo de uma salsicha.
A salsicha tem que ser produzida dentro das regras de BPF e também atender aos requisitos de identidade e qualidade para ser chamada de salsicha e ser grau alimentício.
Se a salsicha for produzida dentro das regras de BPF, porém não atender aos requisitos: não é salsicha para alimentação humana. “Talvez poderia ser vendida para alimentação animal?” Se atender aos requisitos, porém se não tiver sido produzida sob as BPF também não é grau alimentício.
Portanto, as duas regras são SOMADAS.
Agora vamos pegar o caso do nosso amigo propileno glicol. Vamos dizer que a indústria produtora venda para a indústria química e para a indústria de alimentos. Pode?
Em teoria, sim. Desde que a produção atenda às normas de BPF para alimentos. De modo geral, o grau técnico é menos restritivo que o grau alimentício, então a empresa poderá vender para seus clientes da indústria química, sem problemas, o produto de grau alimentício.
O que não pode, infelizmente, é o mais comum entre aditivos e outros ingredientes de origem química: os lotes são testados um a um para averiguar a adequação à especificação. Apenas. Caso o lote esteja dentro das normas internacionais para alimentos – como FCC ou JECFA – então é vendido como grau alimentício.
E PODE ISSO, ARNALDO?
A regra é clara: não pode, não.
A Anvisa, que legisla sobre aditivos em alimentos no Brasil, na Portaria 540/97, diz que:
2.4 – O emprego de aditivos justifica-se por razões tecnológicas, sanitárias, nutricionais ou sensoriais, sempre que:
(…)
2.4.2 – Atenda às exigências de pureza estabelecidas pela FAO-OMS, ou pelo Food Chemical Codex.
Aí o colega vai lá no organismo que legisla sobre alimentos na FAO-OMS – que é o Codex Alimentarius – e pesquisa o que diz sobre o grau alimentício, no Codex Stan 192-1995 (tem 396 páginas, colega, boa leitura para as férias!):
3.4 Especificações para a Identidade e Pureza de Aditivos Alimentares.
Aditivos de alimentos usados de acordo com este Padrão devem ser de apropriado grau alimentício (…). Em termos de segurança, grau alimentício é alcançado pela conformidade dos aditivos às suas especificações como um todo (não meramente com critérios individuais) e através da sua produção, armazenagem, transporte, e manuseio de acordo com as BPF.
Ou seja: a empresa que quer produzir para indústria alimentícia TEM que adequar também a sua produção, armazenagem, transporte e manuseio para que o item seja considerado grau alimentício.
Não adianta separar lote. Análise de um único item da especificação TAMBÉM não garante que o item seja grau alimentício.
OK, MAS EU ANALISEI O MEU SAL E ELE ESTÁ DENTRO DA ESPECIFICAÇÃO GRAU ALIMENTÍCIO DO CODEX ALIMENTARIUS. VOCÊ ESTÁ DIZENDO QUE ELE NÃO É FOOD-GRADE?
Pode ser que sim, pode ser que não – meio caminho andado já que nas análises ele atendeu. Mas o colega lembra porque o HACCP foi criando, não? Análises de produto final não dão garantias suficientes de produto seguro.
Quer um exemplo clássico? Tente achar pelo de rato em análise de entrada. Vai fundo, colega, todo apoio!
Há várias dificuldades em detectar em análises de entrada o processo pelo qual o item passou – se por acaso ele foi coletado do chão, ou se o teto do armazém tem um furo que jorra água no meio do estoque seco, ou se há reprocesso de produto intermediário que não foi adequadamente armazenado. Este tipo de prática é uma loteria: pode ou não contaminar o lote específico – e como acontece com qualquer amostragem, a contaminação pode ou não aparecer na análise de entrada.
Ou seja: melhor prevenir do que remediar. Tem que controlar o processo, via as Boas Práticas de Fabricação de Alimentos.
POR FIM, SE É GRAU ALIMENTÍCIO, ENTÃO PODE COMER?
Será que se uma graxa é grau alimentício, dá para comer de colher, como fez o responsável pela manutenção numa auditoria (leia mais no post do Fernando aqui)?
Não, colega, não dá. Sabe por quê?
Grau alimentício meramente fala sobre o item ser adequado para o consumo humano – mas não fala em quantidade.
Exemplo fácil que todo mundo entende: o médico diz que você tem que tomar vinho todo dia. Um cálice ou um tonel inteiro?
Quantidade é tudo: no caso da graxa aí que o moço provou, a ideia é que ela não seja um COMPONENTE do alimento, e que apenas quantidades diminutas dela possam entrar em contato com ele.
Ou seja, se porventura você vier a comer um alimento com graxa, será em pequeníssima quantidade. A graxa será adequada para o consumo NAQUELA quantidade.
Ok, colega? Então, vai lá na sua especificação de entrada e dá uma olhada se consta “food grade” ou “grau alimentício”. Se não consta, boa hora para uma revisão, hein?
E você, colega da indústria química, parabéns se o seu processo já atende às Boas Práticas de Fabricação para ALIMENTOS. Se não atende, boa hora para começar a seguir este blog e se adequar.
Ana Prado
Muito interessante Cristina, parabéns pela matéria!
Cristina Leonhardt
Olá, Ana, muito obrigada!
O Brasil está no limite para se tornar uma superpotência dos alimentos industrializados e está na hora de fazer valer todo o seu peso. Exigir mais qualidade é só o começo!
Letícia Canabrava
Excelente matéria!
Cristina Leonhardt
Obrigada por comentar, Leticia!
Fazemos um esforço para aumentar o nível de segurança de alimentos no Brasil, e é muito bom saber que estamos num bom caminho.
Ingrid Mengue Klaus
Muito bacana, esta do sal é clássica, numa ocasião fui auditar um fornecedor de sal e me assustei muito com o processo, as análises de amostragem no recebimento dele sempre estavam ok, mas o processo affffffff em absolutamente nada atendia BPF, e o pior é a falta de opção de fornecedores adequados.
Cristina Leonhardt
Olá, Ingrid! Obrigada pelo seu comentários e que riqueza contida nele!
Pois é, uma das coisas que a indústria encara é a questão de não haver substituto. Há diversos casos em que as condições de BPF são bem aquém do que se espera – estou aqui pensando em charque/jerked beef, já conheceu o processo de algumas empresas?
Parece-me, contudo, que é um pouco de falta de pressão da própria indústria: claro, fazer auditoria e ir ver in loco como é o processo é caro e leva tempo, então muita gente acaba protelando este ponto.
Sal é um belo exemplo, porque é usado de cabo a rabo na indústria: do pequeno ao imenso empreendimento. O que faria então que as empresas de sal não se adequassem?
De um lado, há a questão de se a empresa fornecedora é ética e tem a intenção de seguir a lei mesmo sem a cobrança do mercado. Infelizmente, não são todas.
Do outro lado, há a empresa cliente – muitas vezes estes ingredientes não são os mais relevantes no seu portfólio, então a auditoria in loco vai ficando de escanteio.
De qualquer forma, o primeiro a dever se responsabilizar é o fornecedor – porque temos que partir do pressuposto de que uma empresa que queira jogar neste jogo de alimentos tenha integridade o suficiente para atender à legislação que lhe cabe, não é?
Ingrid Mengue Klaus
Não conheço o processo de produção do Charque Cristina, mas imagino o desafio que tem esta indústria em relação aos seus fornecedores de sal. E você está certíssima falta uma pressão maior por parte da indústria sim, que infelizmente não a faz justamente pela falta das auditorias in loco e todo custo envolvido, e nesse jogo de qualificação de fornecedores documental eles dizem o que a indústria quer e a mesma finge que acredita, até que resolva ir lá conferir.
Cristina L
Ingrid, tocou no meu ponto favorito: é muito jogo documental, num país que, infelizmente, ainda peca em fazer o que fala.
Até por isso, escrevi este post aqui: http://artywebdesigner.com.br/garantias-de-qualidade-para-brasileiro-ver/
Silvania Camilo
Boa tarde!
É o caso da Azodicarbonamida (ADA), aditivo utilizado na indústria alimentícia/panificação. Esse aditivo é utilizado em farinhas para conferir algumas qualidades à massa do pão, entretanto o seu uso é permitido até uma quantidade x, pré determinada. A ADA, também é utilizada na indústria de borracha e plásticos, para também conferir qualidades ao produto.
Isso realmente é muito intrigante mesmo.
Att.
Cristina L.
Oi, Silvânia!
Existem diversos aditivos que são usados em alimentos e TAMBÉM em outras aplicações: goma xantana (usada na extração de petróleo) é um outro exemplo!
Obrigada por comentar!
Maria
Olá Cristina, muito boa a sua matéria..Parabéns pelo conteúdo!
Tenho uma dúvida nesta linha de raciocínio, gostaria de saber se posso utilizar um aditivo de grau médico para a industria de alimentos?
Já te agradeço pelo retorno!
Cinthia Camargo
Gostaria de saber se o registro NSF me garante que a empresa produtora do lubrificante possui um processamento que atende às BPF’s?
Marcelo Garcia
Cinthia, iremos providenciar um post que responda à sua dúvida. Por hora relacionamos outros requisitos que uma empresa produtora de lubrificantes registrados na NSF tem que atender: http://foodsafetybrazil.org/lubrificantes-food-grade-por-que-eles-merecem-este-nome/
NMD
Olá Cristina, parabéns pela matéria!!
Gostaria de aproveitar a oportunidade e tirar uma dúvida: Solicitei a um fornecedor de suco, o LAUDO DE GRAU ALIMENTÍCIO do produto dele e ele me retornou com um documento com as informações de análise de metais pesados do produto e embalagem, análise de pesticidas e análise de micotoxinas. Isso é suficiente para atender a BRCv7??
Cristina L
Olá, NMD, tudo bem? Que bom que você gostou!
Olha é um bom caminho andado – o laudo comprova que ao menos a empresa sabe quais são alguns dos perigos relacionados ao seu produto e os controla de alguma forma.
Contudo, como falei acima, análises não são tudo, temos que ter evidências do processo.
Para evidenciar que o processo do fornecedor é grau alimentício, eu faria uma coisa bem simples: pediria a inclusão deste termo na sua especificação técnica de vendas. Além disso, incluiria este requisito na minha especificação de entrada desta matéria-prima e pediria que ele se comprometesse com esta especificação, por um termo de aceite (que pode ser eletrônico).
Dentro da documentação de homologação também é possível questioná-lo a respeito do processo produtivo, o que lhe dará evidências adicionais sobre o atendimento das regras de BPF.
Espero ter lhe ajudado e boa sorte com o seu fornecedor!
Rafael Thomé Gasparin
Parabéns Cristina, muito bom!
Meu dia-a-dia é buscando essa excelência na produção como defende. Obrigado por tratar de questões esclarecedoras.
Se puder desenvolver assunto sobre a sustentabilidade na fabricação seria bem elucidativo ter sua opinião.
Cristina Leonhardt
Olá, Rafael, bom dia!
Obrigada pelo comentário. Olha, não me meto no que eu não domino: se você quiser nos mandar um artigo, o blog ficará feliz em publicar o seu texto como convidado!
Mariana
Boa tarde, tudo bem?
Um cliente está nos solicitando o seguinte documento:
“laudo deve constar a informação de que o álcool etílico extra neutro atende aos parâmetros de análises do FCC”.
Você tem conhecimento de que analises seriam essas?
Li e reli o artigo do Blog (O que é grau alimentício – http://foodsafetybrazil.org/o-que-e-grau-alimenticio/) mas o cliente não aceita declaração de que o produto foi produzido de acordo com as BPF estabelecidas pelo órgão que regulamenta a produção de álcool potável (MAPA).
Muito obrigada!!
Abraços!!!
Cristina Leonhardt
Oi, Mariana, tudo bem?
Pois é, pela lei brasileira, atender ao MAPA seria o suficiente. Contudo, no mercado internacional, as indústrias tendem a optar por seguir as recomendações do FCC – o Food Chemical Codex que eu cito brevemente aí. O FCC estipula o que são as BPF + especificações de qualidade e segurança de alimentos + métodos de análise a serem realizados.
A vantagem do FCC em relação a legislações nacionais é que ele é atualizado com uma frequência maior, e harmoniza as especificações de produtos internacionalmente. Somados às suas especificações, os ingredientes também devem atender às legislações nacionais, quando existentes.
Para ter acesso às especificações e análises recomendadas pelo FCC, você precisa pagar: http://www.usp.org/pt/ingredientes-alimenticios/food-chemicals-codex-fcc
Anchura Achá
Olá boa tarde
No que diz respeito ao material que entra em contacto com alimento (embalagens) também pode se falar em “Food Grade”? esta designação applica-se também nas embalagens?
Muito obrigada
Natália
Cristina você teria alguma informação do porque que nos Estados Unidos os alimentos (Dietary Supplement)com Propileno glicol é considerado Alcohol-free?
Pois ate onde eu sei ele é um tipo de álcool.
Caroline Jutel
Olá Cristina
Gostaria de saber se podemos utilizar grau farmacêutico na indústria alimentícia?
marcelo
falta especificar a quantidade que pode ser consumido, mas excelente matéria. 🙂
Jefferson Brito
Cristina Leonhardt, bom dia,
Como faço para comprovar, em uma auditoria, que o produto é de grau alimentício? Uma declaração do fornecedor dizendo que o produto é de grau alimentício ou precisa de algum documento específico? O registro ou notificação na Anvisa serve como documento comprobatório de grau alimentício?