O impacto dos Vibrios spp.  sobre a segurança microbiológica de pescados

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Segundo a ONU, o consumo mundial de pescados cresceu em média 3,1% ao ano entre 1961 e 2017. Esta média é duas vezes maior do que o crescimento populacional, que foi de aproximadamente 1,6% no mesmo período, e também foi superior ao crescimento do consumo de todas as outras fontes de proteína animal (incluindo carne, leite e derivados).  O consumo per capita de pescado cresceu de 9,0 kg, em 1961, para 20,5 kg em 2018 [1].

Esses dados internacionais também refletem a realidade do Brasil. O aumento da produção tem reduzido custos e favorecido o consumo de peixes e frutos do mar pelos brasileiros. Fatores como o aumento da renda, a emancipação feminina, a urbanização e a redução do tamanho das famílias, alteraram os hábitos de consumo de peixes entre os brasileiros [2].

Recentemente a EMBRAPA realizou uma pesquisa acerca do mercado de peixes e da piscicultura no Brasil para conhecer melhor os hábitos dos consumidores deste segmento em cinco capitais brasileiras: Brasília, Curitiba, Manaus, Recife e São Paulo. Este estudo revelou a preferência dos consumidores pelo produto fresco, em filé ou em cortes [3].

Outro fator que influenciou o consumo de pescado nas últimas décadas foi a popularização da gastronomia oriental, em particular da culinária japonesa. Embora a cultura nipônica tenha chegado ao Brasil com a vinda de imigrantes no início do século XX, a popularidade da sua culinária só cresceu expressivamente entre os brasileiros a partir da década de 1990, com destaque para as preparações à base de pescado cru (principalmente sushi e sashimi). Em 2013 a cidade de São Paulo contava com 600 restaurantes especializados em culinária japonesa, contra 500 churrascarias. Em 2017, o estado de São Paulo já contava com aproximadamente 3.000 restaurantes desta categoria. Atualmente, a gastronomia asiática, considerando-se restaurantes e fast food, tem um faturamento médio de R$19 bilhões por ano no Brasil [4].

O aumento do consumo destes alimentos está diretamente relacionado com a procura por opções mais saudáveis, uma vez que eles oferecem benefícios adicionais à saúde por serem ricos em nutrientes como ômega 3, selênio e iodo. Apesar disso, é importante ressaltar que os alimentos de origem marinha, como pescado e mariscos, não estão livres da contaminação por micro-organismos. Diversas bactérias patogênicas podem ser veiculadas por esse grupo de alimentos tais quais Salmonella spp., Listeria monocytogenes, Staphylococcus aureus e Vibrio spp. [2, 5, 6].

As bactérias do gênero Vibrio são bastonetes Gram-negativos, mesófilos, anaeróbios facultativos e, geralmente, móveis. Estes micro-organismos estão distribuídos em diversas regiões de clima tropical e temperado em todo o mundo. Eles são abundantes em ecossistemas aquáticos, podendo ser encontrados na sua forma livre em ambientes estuarinos, água costeira ou ainda de sedimentos. Estas bactérias também podem ser encontradas em associação com zooplâncton, fitoplâncton, ou ainda com algas, peixes e crustáceos, de onde são isoladas com frequência [7].

As principais espécies patogênicas para o homem são Vibrio cholerae, Vibrio parahaemolyticus e Vibrio vulnificus, podendo estar presentes na água, em pescados, crustáceos e moluscos crus ou parcialmente cozidos. O consumo tanto de água como de alimentos contaminados por estas bactérias pode ocasionar infecções que variam desde uma simples gastroenterite até casos de septicemia [5].

V. cholerae é conhecido desde o final do século XIX, quando foi isolado pelo médico alemão Robert Koch. O cólera pode ser veiculado tanto por água como por alimentos contaminados e seu principal fator de virulência é a toxina colérica que facilita sua colonização no intestino. O período de incubação da cólera varia entre 18 horas a 5 dias. A maior parte das infecções causadas pelo vibrião colérico varia entre assintomáticas e o aparecimento de sintomas moderados, que incluem vômitos, cãimbras e diarreia aquosa. Os casos mais graves de cólera são caracterizados por um quadro de intensa diarreia secretória: até 1 litro de fezes pode ser eliminado por hora, a ponto de assumirem um aspecto de água de arroz, causando uma profunda desidratação. À medida que a diarreia se torna mais intensa, instalam-se rápida perda de peso, cãimbras musculares, estado comatoso e até mesmo morte [7, 8].

As espécies V. parahaemolyticus e V. vulnificus também se destacam pela prevalência entre os patógenos veiculados por alimentos de origem marinha [7].

Infecções por V. parahaemolyticus resultam principalmente em uma forma branda de diarreia, acompanhada de cólica abdominal e náuseas. Secundariamente, pode produzir infecções em feridas. O aparecimento dos sintomas após o consumo de alimentos contaminados varia de 4 a 96 horas e eles persistem por 3 ou 4 dias, sendo esta doença normalmente autolimitada. Em raras ocasiões, a infecção pode resultar em septicemia podendo tornar-se fatal, caos estes mais comuns entre indivíduos que possuem doenças pré-existentes [9].

Cepas patogênicas geralmente produzem uma hemolisina termoestável direta (TDH) e/ou uma hemolisina relacionada ao TDH (TRH), tendo sido associadas a diversos surtos, epidemias e pandemias [9].

A espécie mais virulenta deste grupo microbiano é V. vulnificus. Os principais sintomas por sua infecção são similares aos já descritos anteriormente, incluindo dor abdominal, náuseas e febre. Adicionalmente, este micro-organismo pode causar lesões na derme em decorrência de necrose no tecido epitelial, que resultam em um quadro de fascite necrosante, podendo evoluir para septicemia [10].

Embora as bactérias do gênero Vibrio sejam facilmente destruídas pelo cozimento, elas são importantes fatores de risco para o homem, como agentes de doenças transmitidas especialmente por alimentos de origem marinha consumidos crus [5].

A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Centro de Controle de Doenças dos EUA (CDC) reúnem dados epidemiológicos globais destes patógenos. Entretanto, poucos países têm se dedicado a sistemas de vigilância para Vibrio spp. [7].

Nos EUA a incidência anual de vibrioses triplicou de 0,09 casos por 100.000 habitantes, em 1996, para 0,29 casos por 100.000 habitantes em 2010 [7]. Em países asiáticos, incluindo China, Índia e Japão, V. parahaemolyticus tem sido frequentemente associado à causa de doenças bacterianas transmitidas por alimentos [11].

Em 2006, V. parahaemolyticus foi isolado na estação experimental de cultivo de mexilhões do Rio de Janeiro, tanto em espécimes naturais quanto pré-cozidas [12].

Pela antiga norma brasileira de padrões microbiológicos, a presença de V. parahaemoliticus deveria ser pesquisada em alimentos prontos para consumo à base de pescados e similares crus. Nos últimos anos alguns trabalhos têm demonstrado a presença destas bactérias em pescado em diferentes regiões do Brasil [14,15, 16,17, 18].  Já a IN 60/2019, da Anvisa [19], nova legislação em vigor desde 26/12/2020, não prevê mais esta obrigatoriedade. Entretanto, uma vez que o consumo de alimentos crus contaminados por Vibrio spp. pode representar um risco à saúde do consumidor, a sua presença, tanto em pescado como em mariscos cus, deve ser monitorada.

Autoras: Flávia Myllena da Silva Martins, Victória Gabrielle Pires Martins, Janaína dos Santos Nascimento e Hilana Ceotto Vigoder

Referências

[1] Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO/ONU).  State of The World Fisheries and Aquaculture (Sofia),  2020.

[2] BAPTISTA, R.C., RODRIGUES, H. & SANT’ANA, A.S. Consumption, knowledge, and food safety practices of Brazilian seafood consumers. Food Research International, 132: 109084, 2020.

[3] Filho, M.X.P., Flores, R.M.V., Rocha, H.S., SILVA, H.J.T., SONODA, D.Y., CARVALHO, V.B., OLIVEIRA, L. & RODRIGUES, F.L.M., O mercado de peixes da piscicultura no Brasil: estudo do segmento de supermercados. Boletim de Pesquisa e Desenvolvimento / Embrapa Pesca e Aquicultura 25, 38p, 2020.

[4] QUEIROZ, M., 2019. <http://www.portalnews.com.br/_conteudo/2019/08/variedades/107745-comida-japonesa-faz- sucesso-entre-os-brasileiros.html>. Acesso em:  14 de setembro de 2020.

[5] Ali, A., Parisi, A., Conversano, M.C., Iannacci, A., D’Emilio, F., Mercurio, V. & Normanno, G. Food-Borne Bacteria Associated with Seafoods: A Brief Review. Journal of Food Quality and Hazards Control 7: 4-10, 2020.

[6] STEIN, J. 2016. A importância da microbiologia na cadeia de pescado e seus impactos na segurança de alimentos: entrevistamos Dr. Edivaldo Sampaio, Universidade Federal do Mato Grosso. https://foodsafetybrazil.org/importancia-da-microbiologia-na-cadeia-de-pescado-e-seus-impactos-seguranca-de-alimentos-entrevista-dr-edivaldo-sampaio-universidade-federal-do-mato-grosso/

[7] Baker-Austin, C., Oliver, J.D., Alam, M., Ali, A., Matthew K. Waldor, M.K., Qadri, F.  & Martinez-Urtaza, J. Vibrio spp. infections. Nature Reviews Disease Primers, 4: 8, 2018.

[8] Macedo, A.T., Santos, J.C.B., Coelho, R.R., Firmo, W.C.A. & Marcio Anderson Sousa Nunes, M.A.S. Intoxicações por Clostridium botulinum, Vibrio cholerae e Salmonella Typhi no Brasil entre os anos de 2001 e 2014. Revista Ceuma Perspectivas, 30, 2017.

[9] Li, L., Meng, H., Gu, D., Li, Y. & Jia, M. Molecular mechanisms of Vibrio parahaemolyticus pathogenesis. Microbiological Research, 222:  43–51, 2019.

[10] Heng, S.-P., Letchumanan, V.,  Deng, C.-Y., Mutalib, N.-S.A., Khan, T.M., Chuah, L.-H., Chan, K.-G., Goh, B.-H., Pusparajah, P. & Lee, L.-H. Vibrio vulnificus: An Environmental Clinical Burden. Frontiers in Microbiology, 8:997, 2017.

[11] BINTIS, T. Foodborne pathogens. AIMS Microbiology, 3 (3): 529-563, 2017.

[12] BOUZAS, D.  2021. Risco potencial para a segurança de alimentos: Vibrio parahaemolyticus isolado de mexilhões no Rio de Janeiro.
https://foodsafetybrazil.org/risco-potencial-para-seguranca-de-alimentos-vibrio-parahaemolyticus-isolado-de-mexilhoes-no-rio-de-janeiro/

[13] BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Resolução da diretoria colegiada- RDC nº 12 de 02de janeiro de 2001. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/documents/33880/2568070/RDC_12_2001.pdf/15ffddf6-3767-4527-bfac-740a0400829b>. Acesso em: 15 de jul. 2020.

[14] Batista, B.G., Júnior, S.A.S., Aquino, A.R.C. & Argenta, R. First isolation oF Vibrio Vulnificus causing sepsis in santa catarina, Brazil. Clinical Biomedical Research, 36(3): 165-167, 2016.

[15] Gomes, B.C., Franco, B.D.G.M.& Martinis, E.C.P. Microbiological Food Safety Issues in Brazil: Bacterial Pathogens. Foodborne Pathogens and Disease, 10 (3): 197, 2013.

[16] Oliva, M.S., Bronzato, G.F., SoareS, L.C.,  Annes Pereira, I.A.,  Pribul, B.R., Souza, M.A., Coelho, S.M.O., Coelho, I.S.C. Rodrigues, D.P. & Souza, M.M.S. Detection of virulence and antibiotic resistance genes in environmental strains of Vibrio spp. from mussels along the coast of Rio de Janeiro State, Brazil. African Journal of Microbiology Research, 10(24): 906-913, 2016.

[17] Rosa, J.V. Käefer, K., Conceição, N.V., Conceição, R.C.S. & Timm, C.D. Formação de biofilme por Vibrio parahaemolyticus isolados de pescados. Pesquisa Veterinária Brasileira, 37(4): 339-345, 2017.

[18] Silva, I.P., Sousa, O.V., Saraiva, M.A.F. & Evangelista-Barreto, N.S. Vibrio cholerae non-O1 in bivalve mollusks harvesting area in Bahia, Brazil. African Journal of Microbiology Research, 10(26): 1005-1010,2016.

[19] BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Instrução Normativa – IN nº 60 de 23 DE DEZEMBRO DE 2019. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2019/IN_60_2019_COMP.pdf>. Acesso em: 15 de jul. 2020.

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