Ellen, vc atua há mais de 25 anos na área da qualidade e segurança de alimentos. Como era a visão das empresas naquela época?
Ah havia muito machismo! Sabe que eu fui a primeira mulher a trabalhar na área ligada à fabricação na Nestlé? Não que a empresa fosse machista, mas muitos dos chefes na época eram. Meu tutor na faculdade, que deveria me ajudar a conseguir estágio me desincentivou, me dizendo “Ah, lá na Nestlé eles não aceitam mulher na área de fabricação!”. Mas eu era teimosa e perseverante, então fui até o RH da Nestlé e fiz uma ficha – foi a única empresa que procurei para pedir estágio. Passou-se um mês e nada! Mais um mês e nada! No terceiro mês me chamaram para uma entrevista – para o laboratório. Fui chamada e aceitei. Pensei – não é bem o que quero, mas tenho que ser paciente e no mínimo estar próxima ao que quero. No laboratório, seis meses depois, eu conheci o Mário Killner, meu ex-chefe a quem admiro muito e a quem sou muito grata. O Mário não era machista, acreditou em mim e me convidou a trabalha na área ligada à produção e desenvolvimento de produtos. Então lá estava eu – baixinha e com cara de criança em meio a muitos suíços, altos e muito exigentes! Eu tive que trabalhar o dobro para provar que mulher trabalhava como um homem. Hoje posso com orgulho dizer que provei isso e quebrei um certo tabu existente.
E do ponto de vista técnico?
No início qualidade era muito focada em análises do produto final. Mas lá pelos anos 80 eu fiz meu primeiro curso de APPCC/HACCP e tive a certeza que este era o caminho. E nisso a Nestlé foi campeã – não sei quando outras empresas adotaram o sistema, mas lá logo o sistema passou a ser adotado. Naquela época a gente não ia tão fundo na análise – por exemplo, não se achava que havia perigos significativos provenientes de embalagens. Pouco a pouco fomos aprofundando, aprofundando, descobrindo mais e mais. Depois de trabalhar 10 anos na Nestlé, quatro na Kibon e um ano no Inmetro, em 1992 eu fundei a Food Design e passei a oferecer curso de GMP e de HACCP. GMP fechava turma, mas HACCP era difícil…
E hoje, como é?
Hoje, após vários anos terem se passado, vejo que aumentou muito a profundidade dos estudo de HACCP. Nós na Food Design organizamos muitos seminários de HACCP, que no início tinham o objetivo de discutir a profundidade necessária, pois alguns clientes achavam que eu era detalhista demais. Eu e minha equipe passamos a nos preocupar em conhecer bem o processo produtivo das matérias primas. Descobrimos que uma boa justificativa, o entendimento de cada etapa do processo, muito estudo dos perigos microbiológicos e químicos para cada insumo e de cada processo produtivo eram fundamentais. Fomos percebendo também que sem um sistema de gestão que o sustente, o HACCP desaba! Também nos tacharam de detalhistas, até que a ISO 22000 veio a solicitar muito do que já vínhamos fazendo. Fomos salvos pela ISO 22000!
Mas uma coisa que involuiu foi a confusão feita por alguns que não entendem que não existe nenhuma árvore decisória que não dê margem à duplas interpretações. Há profissionais que querem uma árvore única e milagrosa, que não existe. Alguns passaram a “exigir” o tipo de árvore que conhecem – em geral árvore fundamentadas no exemplo do Codex Alimentarius. Fico com a impressão de que estes profissionais conhecem só esta, ou outras poucas. Eu conheço já bem uma centena delas…Uma colega – a Irene, um dia usou o termo “árvore confusória”. Acho que é isso mesmo! Confusória! Passei a incorporar o termo. Fico impressionada em saber quantas empresas já gastaram tempo e dinheiro fazendo e refazendo seu estudo, cada vez que recebem um auditor diferente…”Ah, o auditor criticou a árvore, dizem… Como coisa que a norma estabelecesse uma árvore… A ISO 22000 nem sequer cita árvore…Para não me alongar, sabe-se que o raciocínio de um bom especialista é soberano – está aqui citação do FDA a respeito:“ Although application of the CCP decision tree can be useful in determining if a particular step is a CCP for a previously identified hazard, it is merely a tool and not a mandatory element of HACCP. A CCP decision tree is not a substitute for expert knowledge“ www.fda.gov (o grifo é meu).
Por que essas mudanças aconteceram?
Devido à evolução e melhoria contínua da comunidade técnica e científica. Também devido aos vários casos de contaminação de alimentos desde a década passada, que repercutiram muito em todas as mídias. E na minha opinião, pela exigência de um nível de confiabilidade cada vez maior por parte do consumidor esclarecido, e das empresas líderes de mercado.
Você tem alguma crítica em relação à evolução do mercado?
A maior crítica que tenho é algo que é até paradoxal: embora o nível de confiabilidade exigido seja cada vez maior, e o sistema HACCP / sistema de gestão de segurança de alimentos necessite de alto nível de expertise, o mercado vem pressionado tanto o preço para baixo, há tantos concorrentes e tamanha “guerra de preços”, que o trabalho de consultoria e de auditoria vêm se comportando como um mercado de commodities, dificultando a manutenção de experts nesta atividade. Para ter um nível de ganho decente, um sênior tem de trabalhar noite adentro e deslocar-se horas e horas, sem que por vezes seja remunerado por este trabalho adicional. Para iniciantes é uma atividade glamourosa, por implicar em muitas viagens, mas que acaba cobrando um alto preço de sua vida pessoal. Assim o número de profissionais que acabam abandonando esta carreira tem sido muito elevado. Para eu não me preocupar sozinha, cito o texto que fiz no blog da Conferência GFSI deste ano: veja em http://www.diretodogfsi.blogspot.com.br/2012/02/conferencia-dia-2-sessoes-plenarias.html
Você é uma das brasileiras que mais frequenta ambientes internacionais e acompanha as tendências globais sobre segurança de alimentos. O Brasil está alinhado com o resto do mundo? O que podemos esperar do futuro?
Minha opinião é que o Brasil tem feito um bom papel, mas muito aquém do que seu potencial como produtor de alimentos. Temos a liderança do TC 34 da ISO para alimentos mas em muitas reuniões o número de participantes não passa de 10, ou 12…
Nossos representantes junto ao Codex têm feito um trabalho maravilhoso. Mas quando temos que discutir dados epidemiológicos, fico até chateada. Nossa captação destes dados é mais que sofrível nesta área.
Isto sem dizer que a norma de sustentabilidade para açúcar mais divulgada no mundo – a Bonsucro, foi feita por – pasmem- suíços! Este é o país que diz- se ser protagonista na área de agronegócio?!
Que conselhos você dá para quem deseja atuar na área?
Que continue acreditando e correndo atrás de suas crenças, e que tenha as atitudes que podem mudar este cenário: participação, colaboração e associação! Acredito que somente pela união é que podemos melhorar este cenário.
Parabéns pela iniciativa e obrigada pela oportunidade!
Ellen Lopes, PhD, Diretora Executiva da Food Design
Fernando
Entrevista bastante esclarecedora! É sempre bom ouvir as opiniões da Ellen sobre o desenvolvimento da Segurança de Alimentos no Brasil.
Gisela
Muito legal a entrevista da Ellen, para quem já atuava naquele tempo, faz voltar ao passado, creio que para os novos serve para reafirmar posições.