Análises microbiológicas por lote composto e cautela na interpretação de resultados

4 min leitura

Já expliquei no post Por que confiar cegamente em análises microbiológicas de produto acabado pode ser uma furada que estatisticamente é bem difícil detectar um defeito em produto acabado analisando um pequeno número de amostras. E mesmo quando o número de amostras é aumentado, ainda há um importante risco de aprovação de um lote que apresente contaminação. É por isso que deve haver cautela na interpretação de resultados de análises microbiológicas dos lotes compostos.

Análises microbiológicas geralmente são feitas por lote (ou lotes compostos) e os resultados devem ser  interpretados com cuidado uma vez que se considera que o lote é a representação de uma condição padronizada que é muito mais teórica do que prática.

Vamos à definição de lote segundo a ICMSF:

 Lote é o total de unidades de um produto produzido, manuseado ou armazenado em condições idênticas, dentro de um determinado período.

Do lote, se retira uma amostra/unidade amostral, que segundo a RDC 12/01, 3.7:

Porção ou embalagem individual que se analisará, tomado de forma totalmente aleatória de uma partida como parte da amostra geral.

Não existe legislação no Brasil que determine como o lote deve ser definido na fabricação de alimentos. Assim, fica a cargo do fabricante fazê-lo. Na prática, costuma ser determinado por um destes caminhos: 1) Pela receita/formulação, onde uma batelada recebe um código atribuído a uma mistura de ingredientes que deu origem ao todo 2) Por tempo. Intervalos de tempo como um turno ou um dia de fabricação determinam esta condição que delimitam o lote.

Variabilidade de resultados em um mesmo lote

Gostaria de abrir os olhos para um fator de variabilidade adicional na interpretação de resultados microbiológicos: o lote. Por questões práticas, ele não é tão homogêneo como as definições preconizam.

Imagine a situação em que um lote é definido por tempo, que seja um turno. Ao longo deste turno, várias bateladas ou receitas são pesadas por um operador de formulação. Porém, durante o turno vão acabando as matérias primas de um mesmo lote mãe e são abertas novas embalagens que podem até ser de um fornecedor diferente do que o que foi pesado há duas horas. Não estamos mais falando de um lote de condições idênticas. As matérias-primas mudaram!

 

 

 

 

 

 

 

No segundo caso, o de um lote atribuído por formulação, vamos supor que a mesma receita percorra trechos diferentes de uma linha de produção. Vamos a um caso fictício em que a causa da contaminação possa ser uma das mangueiras da recheadora ou a canaleta com um ponto de difícil limpeza por onde está passando a manteiga, como ilustrado abaixo. Pronto, esse lote também não está homogêneo! Imagine se for retirada uma amostra de um lado só da linha para análise.

 

A causa da contaminação se refletirá no resultado microbiológico da análise

Num exercício fictício imagine 3 causas possíveis para a contaminação de uma peça de carne assada pronta para consumo:

  • A carne foi contaminada pós cocção pelas mãos do manipulador ou alguma superfície do processo (bandeja ou esteira transportadora. A contaminação vai se apresentar espalhada pela superfície onde houve o contato.
  • A contaminação se deu por causa de um fatiador e os microrganismos se distribuirão ao longo da face cortada, sendo mais concentrada no início.
  • A cocção foi insuficiente, tendo sobrevivido patógenos no centro do produto.

Você consegue imaginar que a forma de tomada de amostra das peças desta carne pode contribuir para se encontrar ou não o contaminante e que este pode passar não detectável? Note que não é tão fácil assim ser “sorteado” e “tirar a sorte grande” de conseguir detectar o problema antes de chegar ao consumidor.

Amostragem de lote composto – quem está se enganando?

Agora vamos a uma situação observada em algumas empresas: a adoção de lotes compostos, ou “pool” de amostras, que fazem “render” os resultados. Se você não conhece, funciona assim: um fabricante produziu 10 lotes de um determinado produto, e para economizar em análises, ao invés de tomar uma amostra de cada um e realizar 10 análises, vai tomar uma amostra de cada lote, homogeneizá-las e realizar uma análise só. Não é uma ideia brilhante?

Lamento informar que com essa “técnica” a capacidade de detecção do patógeno foi reduzida em 90%! E sem contar que, se foi retirada uma única amostra do lote, por mais aleatória e bem-feita que seja, já não estamos falando de plano de amostragem representativo.

Esta situação parece ser muito econômica e funcionar bem até que…saia um positivo!!!

No caso do lote composto, como é que vamos rastrear a causa-raiz do problema? Qual dos dez lotes está comprometido? Qual o tamanho do bloqueio de lote ou recolhimento a ser feito? Está pensando agora em “compensar” a situação analisando os lotes em separados e caso não saia positivo, era só um susto?

Aguarde o post “Tive um positivo para Salmonela. Repito a análise e se der negativo, tudo bem?” para tratarmos desta questão!

Leia também:

https://foodsafetybrazil.org/analise-microbiologica-de-alimentos-importancia-do-plano-de-amostragem/

https://foodsafetybrazil.org/por-que-confiar-cegamente-em-analises-microbiologicas-de-produto-acabado-pode-ser-uma-furada

11 thoughts on

Análises microbiológicas por lote composto e cautela na interpretação de resultados

  • Angelina

    Existe alguma legislação que fale sobre a frequencia dessas análises?

    • Juliane Dias

      Olá Angelina, Não há frequência estabelecida por lei. O seu produto deve cumprir a qualquer momento com as especificações e cabe a empresa, com base em métodos técnicos e científicos adequados, determinar esta periodicidade. Juliane

  • Maria Juliana

    Extremamente esclarecedor! Obrigada por compartilhar seu conhecimento!

    • Juliane Dias

      Que bom, Ju! Aplique na prática. Bj.

  • Carlos

    Oi Juliane bom dia…
    Não consigo cadastrar meu e-mail, o sistema só aceita terminação com .br Meu email termina com .com…

    Da uma olhada pra nós… Obg

  • Talita Rosa Mansur

    Oi Juliane !

    Adorei o post.
    Vivi isso na prática e sinto muita dificuldade em explicar isso para o pessoal da área.

    Trabalhei por um tempo com positive release de caminhão de matéria prima. O caminhão só poderia descarregar depois da análise de micro.

    Imagina o que é uma amostra de 25g em um caminhão de 30.000 litros?

    Dor de cabeça na certa! Vira e mexe tinhamos problema dentro da fábrica.

    Espero que mais pessoas se conscientizem de que temos que garantir todos os programas de pré -requisitos, pois a análise microbiológica pode ser como procurar uma agulha no palheiro.

  • Everton Santos

    Parabéns, estou adorando o tema do assunto! Muitas empresas usam esse método Pool, e muitas delas liberam o lote quando após um resultado positivo é obtido um resultado negativo na segunda análise. Vai que a “sorte” de pegar a contaminação foi só na primeira vez … Nem para fazer um “Melhor de três” antes de liberar!

  • Everton Santos

    Já vi casos também que o equipamento é amostrado, o resultado é positivo e a maior atenção é em higienizar o equipamento e fazer uma nova amostragem para ter um registro de conformidade do que se preocupar com o produto que foi produzido nessas condições …

    • Juliane Dias

      Essa foi uma das motivações para escrever este post! E ainda valeria um tópico específico para equipamentos, Everton!

  • Rodrigo Alves Pereira

    Boa tarde Juliane.

    Tenho dificuldade em explicar a variação de resultados microbiológicos para o restante da equipe. Por exemplo: para aeróbios mesófilos temos resultados de 1.000 a 160.000 UFC/g, a equipe insiste em repetir análises até atingir o resultado esperado, o que entendo ser errado, gostaria de saber se há intenção em criar um post sobre essa interpretação de resultados para os não especializados nesse assunto.
    Obrigado.

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