Análises microbiológicas são fundamentais para verificarmos se programas de segurança dos alimentos são bem implementados e termos dados sobre controles implementados. Contudo, confiar cegamente e de forma isolada em análises microbiológicas de produto acabado pode ser uma furada. Quem pode dar este respaldo é a estatística, uma ciência bastante exata.
Probabilidade de detecção de um defeito
Para explicar onde está a fragilidade, vamos começar com noções básicas de estatística. Se você não faltou na primeira aula, deve se lembrar que o professor perguntou:
Qual a probabilidade de aleatoriamente se sortear uma bolinha em 100?
Essa é para ser fácil mesmo: 1%. Então se tenho 100 latas/sacos/pacotes ou qualquer unidade de um alimento e uma delas está contaminada, a chance de se detectar esta contaminação tomando-se uma única amostra é 1%. Tranquilo?
Vamos aumentar o problema. Se 1% do lote de um alimento estiver contaminado e este lote for de 10 mil pacotes de qualquer coisa (chocolate, pet food, especiarias, sorvetes) 100 destes pacotes estarão positivos. Se forem amostradas 100 pacotes deste lote, a chance do resultado sair positivo para o patógeno pesquisado, é de 1%. Se o plano de amostragem for super econômico e se tomar uma única embalagem, a chance de se encontrar o contaminante é cem vezes menor, ou seja, 0,01%. Já está quase ficando como ganhar na loteria, né?
Aceitação (aprovação) de um lote defeituoso
A estatística também fala de risco para o produtor, e risco para o consumidor.
No risco para o produtor, há a chance de se condenar um lote que não estaria contaminado, o que o levaria a perder dinheiro.
No risco para o consumidor, este acaba levando uma doença transmissível por alimentos de presente, já que a empresa julgou que o lote estava OK e foi liberado com patógeno.
Mas espera aí… se o consumidor adoecer ou morrer, é super risco para a imagem do produtor! Nesta hora a frieza da estatística tem que ser ponderada.
Para ficar mais profissional: vamos usar uma tabela de plano de amostragem da ICMSF, OK? É a aquele comitê de referência internacional de microbiologia.
Agora usando a tabela de duas classes, aquela que é para “tem ou não tem” patógenos, como é o caso de Salmonella e Listeria monocytogenes, vamos consultar qual seria o risco de se aprovar um lote que tenha contaminação. Se tal lote tiver 5% de defeito e forem tomadas cinco amostras, ainda assim a PROBABILIDADE DE MANDAR CONTAMINAÇÃO PARA O MERCADO É DE 77%. Ah, importante: perceba que a tabela começa com 3 amostras. Uma amostrinha nem conta! Nem se chama amostragem e esse é um critério que tem viés econômico e não científico.
De onde vem este número de defeituosos?
No exemplo apresentado, utilizei como base os valores de 1 e 5% de contaminação. Não é um chute e sim médias de valores de vários trabalhos acadêmicos.
Patógenos em alimentos confiscados em aeroportos: 5%
Meta de prevalência de Salmonella em galinhas poedeiras na CE: 2%
Salmonella na Itália em produtos de origem animal: 2,2%. Na mesma pesquisa Listeria monocytogenes está presente em 2,4% dos alimentos.
Listeria no Irã: 4%
Salmonella em carcaça de frango no Brasil: 3%
Listeria monocytogenes em queijos europeus: 3%
E para que servem essas análises de produto acabado então?
Passado o primeiro impacto de perplexidade e a vontade de perguntar por que então são feitas análises de produto acabado se estatisticamente não é “garantia” de segurança, vamos aos fatos:
– O resultado analítico negativo de uma amostragem significativa não prova que todo o processo de fabricação está sob controle. Ele prova que dentro daquela amostragem especificamente há o perigo de acordo com a capacidade de detecção do método (ex: ausência em 25 gramas).
– Laudos são evidências de conformidade (ou não conformidade) e seu significado deve ser interpretado com cautela.
– A não realização de análises de produto acabado deixa o fabricante de alimentos e seu cliente com a sensação de falta de controle. Contudo, como falarei em outro post, o recurso gasto em análises no produto final pode ser direcionado um plano que contemple matérias-primas, fases intermediárias do processo e monitoramento ambiental, que podem ser a causa da contaminação e esta ser prevenida. Isso é muito mais alinhado ao conceito de APPCC de não de se trabalhar na inspeção final onde não é mais possível tomar uma ação e sim monitorar o processo.
– Testes estatisticamente significativos requerem amostragem proporcional ao risco, isto é, relacionados ao público-alvo, tendência do patógeno se multiplicar no alimento ao longo da vida útil e severidade do perigo. É por isso que em processos de alto risco (ex: cárneos que podem ser consumidos mal passados o número de amostras, pode ser tão alto quando 60, como já contamos aqui). Uma amostra por lote não tem significado estatístico e caso seja positiva, todo o lote deve ser condenado.
E por falar em lote: este é mais um fator de variabilidade de resultados. Em teoria, ele é uma condição padronizada e homogênea, mas na prática não é bem assim, o que aumentam as nossas incertezas, sendo que isso será tratado em novo post.
Igor Ribeiro
O problema está em duas palavras citadas no texto: viés econômico! Sem contar o fator amostragem, muitas empresas têm um excelente plano de amostragem no papel!
Amanda
Muito bom post Ju! Parabéns pela abordagem sempre muito clara e fácil leitura! Grd bj!
Patricia
Excelente texto esse!!! Gostei mto e concordo em gênero e grau!!
Everton Santos
Ótimo texto! Penso também se a amostragem contempla as primeiras unidades, pois se a fonte de contaminação for uma superfície, elas podem arrastar consigo a contaminação, deixando “descontaminadas” as unidades atrás.
Juliane Dias
Pensando em alergênicos ou algum contaminante físico ou químicos, a lógica é esta mesma! Vou “limpando por arraste”, que é o flushing. Em microbiologia, se tivermos pontos onde o desenho não seja sanitário e permaneceu um foco de contaminação, pode haver desenvolvimento de biofilme ao longo das horas de processamento e esse se “descola” da superfície de forma imprevisível ao longo do processo. E quanto mais tempo com a linha rodando, maior a contaminação.