O mundo dos esportes em 2016 foi marcado por diversos acontecimentos e um deles foram os Jogos Olímpicos do Rio. A cerimônia de abertura foi elogiada pela crítica mundial, conquistamos a tão sonhada medalha de ouro no futebol de Neymar, e fomos ouro também no vôlei de Bernardinho, enfim houve momentos de alegria. Todavia, algo em que fiquei pensando, como profissional da Segurança de Alimentos, foi: “Como foi todo o preparo, manipulação e cuidados gerais com a alimentação dos atletas e pessoas envolvidas dentro da Vila Olímpica”?
Em busca de respostas, o blog resolveu entrevistar o profissional Geidemar Ferreira Oliveira, que atuou como Responsável por Food Safety na Vila dos Atletas e fez parte do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos do Rio 2016.
- Como você entrou para o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016? E o que o motivou?
A motivação foi poder fazer parte do maior evento esportivo e da maior operação de produção de alimentos do mundo. Entrei para o Comitê após entrevista para entendimento do conhecimento na área dos alimentos. O foco foi Food Safety e operacional. Meu currículo foi entregue à Gerencia Geral da área de alimentos e bebidas e após a entrevista eu fui contratado. Havia da minha parte, o interesse em trabalhar com grandes volumes de produção, o que só aconteceria na Vila dos Atletas. Houve uma primeira entrevista com o coordenador operacional do setor e uma segunda com a gerência de alimentos e bebidas da Vila dos Atletas.
- Qual foi seu cargo dentro do comitê e quais eram suas atribuições e responsabilidades?
Temos que dividir o projeto em duas partes, o planejamento e a execução:
Planejamento:
Na fase de planejamento da operação, atuava como Especialista em Alimentos e Bebidas. Durante esta fase foi projetada toda a operação de A&B dentro da Vila dos Atletas e demais instalações. Um ano antes do evento, começamos as reuniões para definição da operação junto ao Caterer, a quem estaríamos terceirizando a operação dentro da Vila dos Atletas. Foram definidas estratégias e tomadas ações na área de recursos humanos, suply chain, tecnologia da informação, sustentabilidade, infraestrutura, equipamentos, saúde do trabalhador, programação da produção e qualidade, sempre com o foco na segurança dos alimentos.
Um tópico que merece ser comentado é a contratação dos equipamentos para a Vila dos Atletas. Boa parte dos equipamentos vieram de navio, de várias partes do mundo, via uma empresa britânica. A definição dos modelos a serem utilizados e a sua quantidade foram itens discutidos exaustivamente. Vale lembrar que, por se tratar de um evento extremamente dinâmico, não existia um quantitativo de refeições real.
Um ponto importante a ser considerado, em relação aos equipamentos, é a redução de custos proporcionada pela equipe ao Comitê, sem deixar de atender à demanda necessária.
O mais gratificante nesta fase do projeto foi ter participado de todas as fases, da elaboração das plantas baixas dos locais de produção de alimentos na Vila dos Atletas, até a completa execução do projeto olímpico.
Várias reuniões e adequações foram feitas no intuito de garantir a segurança dos alimentos e atender à legislação vigente no Brasil. Temos que salientar que havia muitos estrangeiros no projeto e também uma equipe multidisciplinar sem conhecimento específico na produção de alimentos ou da legislação nacional.
Foi interessante também participar da elaboração e revisão da documentação de Food Safety que foi utilizada em todas as operações de alimentos e bebidas nos Jogos. Uma das ações mais relevantes foi a participação na elaboração do checklist de Food Safety que foi utilizado em todos os locais de produção e distribuição de alimentos vinculados ao Comitê Rio 2016. Este documento foi a base para a criação de um software fundamental para o monitoramento e tomada de decisões durante as operações. Este checklist foi criado tendo como referência a Norma NBR 15635 da ABNT (Boas Práticas para Serviços de Alimentação). Esta foi uma importante contribuição visto ter participado da revisão desta Norma em 2015.
Outra parte interessante nesta fase foi a participação na elaboração da matriz de KPI’s do projeto. Durante esta fase de planejamento, pude participar também da elaboração do leiaute estrutural das cozinhas-containers utilizadas em diversas instalações, bem como na seleção dos equipamentos a serem utilizados nestes locais.
A análise das estruturas físicas existentes referentes à cadeia de produção dos alimentos nos estádios de futebol também fez parte do escopo.
A maior lição aprendida nesta fase foi a gestão de mudanças. Tudo no Comitê era muito dinâmico e tínhamos que assimilar e reagir na mesma velocidade.
Operação:
A operação de alimentos e bebidas da Vila dos Atletas foi a primeira a começar e a última a terminar dentre todas as instalações. Foram três meses chegando a servir 75.000 refeições/dia no pico da operação. O horário de funcionamento era 24h/dia, sete dias por semana.
Servíamos toda a força de trabalho, terceirizados que contrataram o serviço, todos os atletas, comissão técnica e árbitros.
Nesta fase, atuei como Gerente Adjunto Serviços de Alimentação, sendo responsável por Food Safety e manutenção da estrutura predial e equipamentos.
Havia dois pontos de produção de alimentos, o Main Dining e o Casual Dining. O primeiro era uma tenda de 24.500 m2, a segunda maior do mundo. Era dividido em armazenamento, pré-preparo, produção e dois restaurantes. Este era o principal restaurante de toda a operação olímpica. Vale informar que pela primeira vez nos Jogos ,não foi utilizada fritura neste estabelecimento. O Casual Dining tinha um ar de piquenique e o principal era o churrasco. Foi um sucesso e só ganhou elogios.
Para entender minha rotina durante o evento, é necessário entender como estava estruturada a equipe do Comitê Rio 2016 e a empresa contratada. Pelo comitê, eu gerenciava uma equipe de sete monitores. Eles foram responsáveis por realizarem rondas divididas em 3 turnos e fomentar o software desenvolvido para o gerenciamento de qualidade. Fui responsável por orientar e supervisionar a empresa contratada que contava com uma equipe de mais de 40 profissionais para monitoramento de Food Safety. O foco era aproximar o máximo possível o que havia sido planejado à produção real. Existia um alinhamento diário com a gerência e direção de produção da terceirizada.
Diariamente eram levantadas não conformidades e compiladas no software de gestão da qualidade. Estas eram divididas entre críticas e não críticas. A principal função que eu tinha na operação era sanar estas não conformidades e atuar com a melhoria contínua.
Os monitores haviam sido orientados a realizar a correção in loco, o que foi engrandecedor para a operação e para a crescimento profissional destes profissionais. On line, utilizando aplicativos de comunicação, compilávamos todas as não conformidades encontradas. Isto foi de grande valia porque era possível agir sempre que necessário, em tempo real, mesmo quando não estava na Vila.
Fazíamos a comunicação das não conformidades ao caterer no momento da detecção, sendo que cada turno era responsável por esta ação. As decisões eram tomadas em conjunto entre monitores e equipe da qualidade da terceirizada. Caso se tratasse de um risco maior ou uma não conformidade não resolvida, cabia a mim e à responsável por Food Safety da terceirizada darmos a solução ou minimizar ao máximo o risco.
Minha rotina era chegar na Vila, analisar e propor soluções para as não conformidades críticas que ainda não haviam sido sanadas e posteriormente as não críticas. Tínhamos também indicadores de recorrência, o que também ganhava prioridade.
Após esta etapa, realizava uma ronda por toda a operação com o objetivo de verificar a efetividade das ações realizadas e visualizar novas não conformidades. Nesta fase, também realizava e reforçava o treinamento da equipe de funcionários da terceirizada.
Fazia parte da ronda a avaliação da matéria prima em estoque ou sendo recebida, todo o pré-preparo, preparo, armazenamento e distribuição. Vale ressaltar que não existia uma ordem certa para esta ronda, o que regia eram as não conformidades relatadas e principalmente estar junto dos monitores para resolução em tempo real. Claro que apareciam algumas situações em que o fogo precisava ser apagado imediatamente e estes casos tinham total prioridade. O foco desta ronda servia também para avaliação da estrutura e equipamentos, avaliar e solicitar o apoio da manutenção.
O controle de pragas mereceu uma atenção especial pela localização do estabelecimento. Os três turnos estavam atentos e todo desvio desta natureza foi prontamente tratado. Não chegamos a ter incidentes maiores.
O controle da qualidade da água também fazia parte da rotina diária.
Contamos durante todo o evento com a parceria da Vigilância Sanitária, sendo fundamental para balizar toda a operação. Recebíamos visitas, no mínimo, semanalmente e realizávamos o alinhamento das medidas necessárias com a direção da empresa contratada.
Nesta fase do projeto, o mais interessante foi ter que tomar várias decisões em um curto espaço de tempo, repetindo isto diariamente. A operação pedia isto devido a sua complexidade e particularidades.
O tamanho da operação pode ser exemplificado pelos números no dia de pico da produção:
- 2,5 toneladas de carne;
- 2,0 toneladas de frango;
- 1,0 tonelada de peixe;
- 2000 pizzas;
- 4,0 toneladas de frutas;
- 3,0 toneladas de legumes.
- Quais os maiores desafios em Food Safety (Segurança de Alimentos) encontrados?
A própria operação já era um desafio na visão de Food Safety, pelo volume a ser movimentado, produzido e controlado.
No início da operação tivemos falhas graves na cadeia de suprimentos, fugindo completamente à operação planejada. Foram várias adequações até alcançarmos um patamar satisfatório. Uma aula de gestão de mudanças.
Um ponto que merece ser destacado é o treinamento do manipulador. A equipe era composta de aproximadamente 2.000 funcionários. Muitos foram contratados pouco tempo antes do evento, às vezes com pouca ou nenhuma experiência em produção de alimentos e precisávamos treiná-los. Além do número de colaboradores, o pouco tempo hábil para esta formação era sempre uma barreira para a operação. Foi uma tarefa árdua, mas muito compensadora, ver o resultado alcançado. Foi um prazer colaborar com a terceirizada nesta realização.
O número de preparações distintas e o correto monitoramento do binômio tempo e temperatura estiveram no radar durante todo o evento. Foi um trabalho árduo e efetuado com sucesso pela equipe de qualidade. O grande conceito utilizado aqui foi a gestão de riscos.
A estrutura temporária montada para o evento também foi um grande desafio, visto termos que definir o leiaute antes da própria operação em si. Foi uma constante adequação. Um exemplo foi termos planejado a compra de frutas devidamente higienizadas, o que não ocorreu na totalidade e nos obrigou a uma readequação da linha de produção durante o evento.
A própria estrutura física também apresentou problemas, como era de se esperar em uma construção com tamanhas dimensões. A distribuição da rede elétrica e rede hidráulica são exemplos de pontos que sofreram ações de correção durante o evento. Houve também uma necessidade de reforço do piso na área de estoque de produtos secos para suportar o peso dos produtos movimentados.
O correto funcionamento dos equipamentos, suas manutenções preventivas e corretivas foram também um entrave em algumas situações. Estávamos em uma operação que não parava e alguns equipamentos necessitavam de maior atenção, como os balcões de distribuição fria. Em algumas situações específicas, tivemos de reduzir o nível de serviço para atuar com a segurança necessária para a qualidade dos alimentos.
Fazia parte do meu escopo de trabalho atuar intermediando interesses das empresas terceirizadas que atuavam diretamente junto à área de alimentos e bebidas, e as diferentes áreas funcionais dentro do Comitê Rio 2016 (similar aos setores dentro de uma empresa). A gestão de conflitos e a capacidade de negociação foram grandes desafios a serem superados para garantir um alimento seguro.
Outro ponto que merece especial destaque é o desgaste de toda a equipe com a evolução do evento. Todo mundo se doou para alcançar o objetivo de entregar os Jogos da melhor maneira possível. Jornadas longas faziam parte dos profissionais envolvidos, seja da terceirizada responsável pela produção ou do próprio Comitê Rio 2016 responsável pela supervisão, correção e orientação. Dez a doze horas diárias eram o normal. Na fase de implantação, cheguei a trabalhar por 36h para colocar em prática o que havíamos planejado. Todo mundo já sabia que não seria diferente e fomos até o final.
- Poderia revelar-nos se os resultados do trabalho foram satisfatórios? Houve algum caso de DTA (Doença Transmitida por Alimento) dentro da Vila Olímpica?
Com o final do evento ficou a sensação de dever cumprido. O desafio era enorme, a missão era garantir a qualidade e segurança dos alimentos em uma operação de tamanha dimensão. Foi o único evento em que trabalhei na minha vida, e logo o maior de todos. Já havia trabalhado em grandes operações em indústria de alimentos e cozinha industrial, produzindo grandes volumes, mas nada parecido aos Jogos Olímpicos. Foi um prazer ter ajudado o Brasil a fazer bonito e arrancar elogios de profissionais das mais diversas áreas e diferentes países.
Felizmente não tivemos na Vila nenhum caso de DTA ou surto alimentar. Este fato é orgulho para toda a equipe envolvida em todas as etapas da cadeia. Os perigos eram iminentes, mas as precauções e ações tomadas se mostraram eficientes para alcançar o objetivo proposto.
- Que lição de vida e profissional você tirou após participar dos Jogos Olímpicos do Rio 2016?
As lições aprendidas são várias e de diferentes causas.
Profissionalmente fica a satisfação de ter feito parte deste megaevento e ter tido a oportunidade de aprender muito com uma equipe multiprofissional e com pessoas de várias partes do mundo. A troca de experiências fazia parte do dia a dia. Saí muito melhor do que entrei, em se tratando de gestão de pessoas, mudanças, de riscos, conflitos e em técnicas de negociação. A capacidade de tomada de decisão em tempo real foi também um grande aprendizado que pude lapidar neste projeto.
Pessoalmente, foi uma lição de vida. Além das amizades construídas, foi muito interessante ver tanta gente com hábitos tão diferentes, oriundos dos mais diversos países com culturas completamente diferentes se darem tão bem e com o verdadeiro espírito olímpico.
Para ilustrar a lição de vida, fica um fato ocorrido em um dos nossos restaurantes:
Uma atleta biamputada dos braços chegou para almoçar, tirou o tênis com a boca, arrumou os cabelos com o pé, prendendo-o atrás da orelha e almoçou tranquilamente. Foi impressionante vê-la pegando o talher com o pé. Voltou a calçar o tênis e, para a surpresa de todos, ao invés de levantar e ir embora começou a empurrar a cadeira de rodas de uma compatriota rampa acima com o seu tronco.
Podemos sempre ser pessoas melhores do que somos, esta é a principal lição que ficou.
Atuação junto a Indústria de Alimentos, Cozinhas Industriais e Indústria Farmacêutica. Farmacêutico Bioquímico Industrial pela Universidade Federal de Ouro Preto. Especialista em Controle da Qualidade e Toxicologia dos Alimentos pela Universidade de Lisboa. Licenciado em Ciências Farmacêuticas pela Universidade de Lisboa. Auditor em Sistemas de Qualidade pela Sociedade Brasileira de Análises Clínicas. MBA Gestão Empresarial pela FGV. Membro da Comissão de Segurança dos Alimentos da ABNT. Trabalho utilizando as ferramentas da qualidade e a gestão de pessoas para alcançar os objetivos da empresa de acordo com o seu planejamento estratégico. Natureza objetiva e assertiva para o fechamento de negócios, positivo, arrojado, ativo, competitivo e persistente.
Ana Paula Loch
Muito bacana a entrevista! Isso é quase surreal!
Mariana Alves
Está de parabéns pela entrevista!