Ao longo da sua carreira, você já deve ter ouvido “verdades” do tipo:
- “Esse alimento é seco (ou desidratado) e a atividade de água é baixa, portanto não preciso me preocupar com perigos microbiológicos”;
- “Temos uma etapa de tratamento térmico onde todos os microrganismos são eliminados”, ou ainda,
- “Se não está na legislação, o perigo não existe”.
Eu já perdi as contas de quantas vezes as escutei e confesso que, em várias ocasiões, desisti de argumentar. Isso porque tais afirmações não podem ser tratadas como verdades absolutas e, se o fizermos, podemos incorrer em um tremendo engano! Não podemos simplesmente perpetuar essa percepção.
Algumas reflexões para nos ajudar:
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- O consumo de especiarias contaminadas com patógenos resultou em 14 surtos de doenças relatados de 1973 a 2010 em todo o mundo;
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- Em 2014-2015 na Suécia, 174 casos de intoxicação alimentar foram relatados devido à contaminação por Salmonella enteritidis de misturas de especiarias vegetais importadas;
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- Surtos causados por Bacillus cereus em pimenta e cúrcuma foram relatados na Dinamarca e na Finlândia em 2010 e 2011;
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- A pimenta branca e preta do Brasil foi colocada em detenção automática pelo CDC (FDA) desde 1986. A revisão dos dados da detenção em 2020 revelou que a contaminação da pimenta brasileira por Salmonella continua a ser um problema. O FDA tem uma avaliação de risco para patógenos em especiarias. Veja aqui;
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- Alemanha e Espanha relataram 6 casos de botulismo de origem alimentar associados ao consumo de peixe seco salgado em novembro-dezembro de 2016;
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- Em 2018, um trabalho publicado na revista Food Microbiology concluiu que o sal marinho contém muitos fungos com potencial para causar a deterioração dos alimentos, bem como alguns que podem ser micotoxigênicos. Veja aqui;
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- Alguns microrganismos, além de deteriorantes, também são patogênicos. Exemplos são Clostridium perfringens (causa comum de deterioração em carnes e aves) e Bacillus cereus (causa comum de deterioração de leite e creme);
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- B. cereus tem sido detectado em numerosas ervas desidratadas, especiarias, preparados para molhos, pudins, sopas, produtos de pastelaria e saladas;
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- O arroz (cru) pode conter esporos de Bacillus cereus, que não são destruídos pelo processo de cozimento;
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- Em produtos de panificação, esporos de Bacillus cereus podem sobreviver à etapa de forneamento – embora a temperatura do forno chegue a cerca de 200ºC, a temperatura no centro do produto não passa de 70ºC;
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- Fungos psicrotróficos, como Aspergillus e Penicillum, que além de deteriorantes são produtores de micotoxinas, já foram encontrados em nuggets de frango congelados (-5ºC), que passam por processo de fritura e cozimento industrial. A causa? A farinha usada para empanar os nuggets;
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- Estudos demonstram que o Geobacillus stearothermophilus, um microrganismo deteriorante, não apenas sobrevive mas pode se multiplicar durante as etapas de fermentação, torração e alcalinização do cacau. Veja aqui;
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- Legislação é apenas uma referência – o fato de um alimento não estar citado em alguma norma de padrão microbiológico, não significa que ele seja isento de perigos. Quando falamos da IN 60/2019 e dos padrões microbiológicos para alimentos prontos para o consumo, a própria ANVISA ressalta a importância de se considerar aspectos técnicos, legais, comerciais, operacionais, entre outros, de ingredientes, aditivos, matérias primas, insumos, pois cada processo pode interagir de forma diferente com o padrão microbiológico do alimento.
Portanto, quando insistimos nas questões do início deste texto e afirmamos que são sempre NA (não aplicável), estamos perpetuando mitos que foram construídos sem muito fundamento ou análise técnica mais abrangente – os exemplos acima mostram que nem sempre os NA são verdades! Um olhar mais apurado para a segurança de alimentos é essencial!
Isabel Silveira
Olá Virgínia, tudo bem?
Antes de tudo saiba que não sou da área, trabalho como gestora de SAC de indústria de alimentos e acompanho esse blog há anos com o maior entusiasmo! Seu texto é importante mesmo para leigos como eu. Levanta questões em geral desconhecidas e como consumidora traz muitas reflexões …Se nos casos citados de especiarias, sal, arroz… não estão livres de agentes contaminantes e perigosos à saúde faz sentido imaginar e perguntar se algumas doenças crônicas que muitos de nós apresentam, podem ter como consequência um ” envenenamento gradual” por exposição continua a esses agentes ? Sabe , as vezes dá um desânimo ! Em casa procuramos alimentos de boa procedência, aprendi muito sobre isso aqui no blog e na própria lida profissional, mudei a forma de ver a cozinha e seus inúmeros riscos e no entanto, os riscos parecem cada vez mais presentes em todos os alimentos, as especiarias que deveriam ser também remédio na medida certa podem na verdade ser fator de risco, o velho e bom arroz e sal juntos podem metaforicamente estarem prestes a explodir no nosso organismo!! Os alimentos não estão nos nutrindo, eles estão nos envenenando. E talvez sintomas gastrointestinais, neurológicos , dermatológicos…possam ter sua origem em inocentes pitadas de temperos do dia a dia frutos dos preparos mais bem intencionados. Um abraço e felicidades!