Cada povo tem sua própria cultura, e dela fazem parte os hábitos alimentares e paradigmas que constroem as regras morais sobre o que é certo e digno ou errado e repugnante de se usar como comida, não é mesmo?
Para citar um exemplo pitoresco, numa recente viagem com minha filha de 7 anos, estávamos numa casa tradicional no Peru onde ela viu um monte de porquinhos-da-índia correndo pelo chão, e claro, foi logo pegando um bem fofinho. Este animal lá é chamado de cuy, criam e comem como fazemos com as galinhas. Com jeito contei isso a minha filha, que ficou bem triste ao saber que o animalzinho em suas mãos em breve seria uma refeição.
Há muitos outros exemplos interessantes associados à cultura e religião. Judeus e muçulmanos não comem carne de porco, uma vez que estes animais, apesar de terem o casco bipartido, não são ruminantes, e por isso, tanto o Talmude quando o Alcorão proíbem seu consumo, considerando-os animais imundos. Analogamente, hindus não comem carne, quanto mais de vaca, que consideram sagradas.
Por outro lado há quem considere cães um ótimo alimento, em países como China, Indonésia, Coréia, partes do México, Filipinas, Polinésia e Taiwan. Já eu vejo a pequena Yorkshire que vive em minha casa como uma filha e não como um almoço.
Franceses comem caracóis, que em seu idioma se chama “escargot“, um nome chique para um prato sofisticado e caro. Também comem “foie gras”, que nada mais é do que um “fígado gordo” de ganso ou pato que foi forçosamente alimentado à exaustão, o que levou à hipertrofia lipídica do órgão. Ambos pratos tão admirados na culinária francesa parecem para mim, que não sou tão sofisticado, tão exóticos quanto comer carne de cachorro.
Já os vegetarianos adotam um regime alimentar baseado no consumo de alimentos de origem vegetal, não se alimentando de nenhum tipo de animal, optando alguns por comerem laticínios e ou ovos, outros não.
Regionalmente aqui no Brasil também temos questões assim. Tenho alguns amigos que adoram comer caranguejo, para mim ele sequer parece um alimento; já outros amam uma boa buchada de bode, eu prefiro só olhar.
Num exemplo doméstico, estes tabus se estendem também a que parte comer ou não de um animal. Por exemplo: minha mãe gosta de comer a sambiqueira e o pé da galinha, meu pai adora uma rabada ou um mocotó de boi, já eu não incluo estes pedaços na minha dieta.
Enfim, acredito que já deu para exemplificar que em termos de hábitos alimentares, povos e culturas são bastante ecléticos.
Particularmente, não recrimino a comida de cada povo, afinal cada cultura passou por caminhos, dificuldades, circunstâncias que moldaram seus hábitos alimentares. Porém, um problema surge quando aquilo que uma determinada cultura come coloca em risco os povos de outras culturas.
Quando aquilo que você escolhe comer não coloca em risco apenas a sua saúde, mas também a de outros, isso não é um problema exclusivamente seu, mas de todos.
O Brasil é um grande exportador de proteínas de animais como vacas, frangos e porcos. Mas para isso, há uma série de cuidados relacionados com a criação destes animais, que incluem todos os cuidados com a ração, tratos sanitários dos plantéis, monitoramento constante para prevenir doenças, vacinação, auditorias internacionais em food safety. Inclusive, se necessário, medidas extremas como o descarte de plantéis inteiros podem ser adotadas caso alguma doença que coloque a saúde das pessoas ou plantéis internacionais em risco seja identificada.
Depois temos todos os cuidados durante o abate, evisceramento e corte destes animais, incluindo rigorosas regras de BPF, o uso de medidas para prevenir riscos baseadas em Planos de HACCP, adoção de modelos de gestão baseados em normas internacionais como a FSSC 22000 ou a BRC com todos os requisitos relacionados, etc.
A adoção de todas estas medidas que fortalecem a sanidade na criação e produção de proteína animal permite a obtenção de produtos seguros, não apenas quanto à saúde do plantéis, mas também para garantir a inocuidade à saúde dos consumidores.
Tudo isso monitorado e registrado numa cadeia de custódia apta à rastreabilidade desde a criação dos animais até o destino de cada animal abatido, permitindo atender a protocolos internacionais de segurança dos alimentos.
E quando se abatem animais coletados na natureza, que muitas vezes são reservatórios de vírus, bactérias e parasitas em mercados sem condições higiênicas controladas, sendo abatidos e esfolados no chão destes locais, criando poças de sangue com restos de fezes e vísceras de animais?
Neste caso aumentamos significativamente a probabilidade de risco, inclusive da introdução de novas doenças ao homem, especialmente vírus, cujas mutações podem vir a permitir uma rota animal-homem, e depois homem-homem, o que é perigoso, causando epidemias, uma vez que as populações não possuem anticorpos para novos vírus.
Estamos em plena pandemia de COVID-19, cujos efeitos são mortes pelo mundo todo, especialmente idosos e imunossuprimidos. Na China, o epicentro do problema, mas onde esta epidemia já está em declínio, já começam a reabrir seus chamados “wet markets”.
Os mercados úmidos são locais onde se vende carne viva, peixe, produtos diversos e muitos outros animais coletados na natureza como cobras, morcegos, ratos, macacos, pangolins, gatos, cães, e tudo aquilo que poderia estar num zoológico, mas que nestes lugares são abatidos sem os devidos cuidados sanitários como já relatado.
Há um abismo em termos de cuidados sanitários entre o que se faz num frigorífico destinado a abater e processar proteínas atendendo aos critérios internacionais para exportação como tantos que temos no Brasil e os mercados úmidos que encontramos especialmente em países asiáticos.
Lembre-se de que alguns dos primeiros casos da epidemia que estamos vivenciando agora foram reportados após os infectados terem estado num destes mercados em Wuhan, a região chinesa onde começou o surto do novo coronavírus.
O comércio de carne desses animais, além de contribuir para a destruição de habitats, faz com que os seres humanos tenham um contato cada vez mais estreito com os vírus que eles carregam e que podem se espalhar rapidamente em nosso mundo ultraconectado pela globalização.
Como exemplo, a cidade de Wuhan é um centro produtor de moda que por isso tem intercâmbio permanente com Milão, de onde a COVID-19 se espalhou pela Lombardia e depois para toda a Europa e o mundo.
Estima-se que existem mais de 1,7 milhões de vírus não descobertos na vida selvagem e quase metade deles pode ser prejudicial aos seres humanos, ou seja, muitos novos vírus ainda podem ser introduzidos e causar todo este caos novamente.
A rota de entrada destes novos vírus pode ser via alimentação, no entanto, elementos patogênicos podem ser transmitidos aos seres humanos durante a captura dos animais, transporte ou abate, principalmente se forem realizados em condições sanitárias precárias ou sem equipamento de proteção como ocorrem nestes citados mercados úmidos. O problema é que é muito difícil interromper uma atividade com 5000 anos de tradição cultural, ao menos para os cidadãos que já tem arraigados estes hábitos alimentares.
Talvez a China precise realizar um grande esforço no sentido de ao menos mudar estes hábitos para as novas gerações, que francamente, poderiam começar por substituir estas fontes de proteínas exóticas pelas vacas, porcos e aves brasileiras, criados dentro de condições sanitárias adequadas, portanto, seguros aos chineses, e também, ao resto do mundo.
Mas não é só na Ásia que existe o hábito tradicional de se alimentar de animais selvagens que podem significar risco à saúde humana.
Aqui no Brasil, por exemplo, em algumas regiões ainda se caça para consumo alguns animais selvagens, como o tatu, e há pesquisas que indicam que algumas espécies são potenciais reservatórios de doenças, entre elas a hanseníase, a leishmaniose e a doença de Chagas.
Há também pesquisas que indicam que o tatu-galinha pode carregar a paracoccidiodomicose (PCM) ou blastomicose sul-americana, causada por um fungo, e esta doença pode ser passada a humanos, pela inalação de partículas infectadas que atingem os pulmões e causam infecção, o que pode ocorrer na captura e ou manejo deste animal.
Felizmente aqui a caça e comercialização destas espécies selvagens é inibida, não temos os tais wet markets como na China, onde estes animais são comercializados livremente, e isso ajuda a inibir um pouco este tipo de consumo. Ainda assim, é um tema que precisa ser trabalhando para levar esclarecimento a quem se arrisca a consumir estes animais.
Por fim, diante da epidemia que estamos presenciando, certamente o mundo precisará, via OMS ou que organização for, rever seus protocolos internacionais de segurança para prevenir, reduzir ou controlar a entrada de novos vírus que possam afetar a espécie humana, o que inclui certamente encontrar a causa ou causas raízes deste tipo de problema.
Lembrando que são casos reincidentes, afinal recentemente tivemos a H5N1 (gripe aviária) em 2004 e a H1N1 (gripe suína) em 2009, e agora estamos com a COVID-19 fazendo vítimas e paralisando toda a economia mundial em 2020.
Fica evidente que um bom lugar para começar a tratativa do problema certamente são os mercados úmidos.
Temos de debater este assunto muito seriamente, pois esta pandemia deixou a sensação de que em termos de segurança à saúde pública, nossos esforços em food safety estão arranhando um tema que pode ter uma profundidade muito maior, justamente relacionada aos hábitos alimentares de alguns, mas que colocam a todos em risco, mesmo quem não se alimenta de animais exóticos.
Este é um texto autoral e não reflete necessariamente a opinião da Associação Food Safety Brazil.
PLINIO GUSTAVO SCHETTERT
Muito informátiva e alusiva da situação atual do corona vírus e sua origem do uso de animais selvagens para o consumo e a total falta de controle do uso destes animais e o pontecial perigo ao consumo
Marco Túlio Bertolino
Exato Plinio, pois enquanto algumas cadeias de abastecimento são tão controladas, outras não tem controle algum, daí surgem os riscos.
Marilia Campos
Muito bom texto! Me trouxe à memória algumas lembranças recentes também.
Em 2015 quando estive no nordeste brasileiro fiquei horrorizada com o que vi no mercado público de Recife. Pensei “temos leis que são para o Brasil inteiro e não são aplicadas aqui!” Tirei muitas fotos e fiz vídeo sob o tom de deboche dos vendedores “tá fazendo o que moça? Vamos aparecer no Globo Rural?” Como trabalhei 13 anos na inspeção de alimentos de origem animal, óbvio que não consegui comprar nada, apenas alguns artesanatos.
Nem aqui as regras são para todos, imagina mundo a fora!
Imagina fazer uma mudança de escala global, cultural e profunda dessas. Nem no nosso país, onde as regras deveriam ser para todos, conseguimos fazer. Muitas vezes fala mais alto o coitadismo, o vitimismo do produtor, em detrimento à saúde pública. Senti na pele isso na minha cidade, assim como fui penalizada como profissional por tentar fazer o correto dentra da nossa realidade municipal (isso são outras lembranças recentes hehhehe – fecha parêntese!).
Acho que precisaremos de mais uns 2000 anos para mudar a realidade nessa escala coletiva. Até lá, vamos continuar levando soco no estômago a cada novo vírus, a cada pandemia. A curto prazo, temos apenas a oportunidade de mudar a nossa realidade individual.
Obrigada pela reflexão! 🙌
Marco Túlio Bertolino
Este é o ponto, perfeito comentário.
Betania Enoque Vasconcelos Coelho
Professor excelente!!!
Dá gosto de ler e nos mostra uma visão mais crítica sobre o assunto.
Muito obrigada por compartilhar seu conhecimento conosco.
Marco Túlio Bertolino
Muito obrigado Betania.
Carolina Oliveira
Ótimo artigo, e muito elucidativo. Precisamos estar cientes de que não é atoa que essas doenças aparecem.
Marco Túlio Bertolino
Meu receio é que poucas ações reais estão sendo realizadas para evitar reincidências.
Robson L M da Silva
Bem embasado o texto. Parabéns
Tema complexo porque envolve disponibilidade de alimentos, comércio ilegal (incluindo quem compra ou “experimenta”), complacência de governo, corrupção, etc
Isto em todo o mundo, como você falou.
Infelizmente estamos só tratando os efeitos e não a causa.
Marco Túlio Bertolino
Este é o ponto, se não agirmos na causa, em breve a NC se repete.
Jeronimo
Excelente artigo sobre o tema. Assino embaixo: você pode comer o que quiser, desde que não coloque a saúde dos outros em risco. É necessário percepção e visão crítica para entender as diferentes culturas e ao mesmo tempo não se deixar contaminar por coisas que não estão na nossa cultura. Parabéns, Marco!
Marco Túlio Bertolino
Infelizmente os wet markets são uma realidade e não há indicação de ações para controle de riscos.
Edson J. Riesenberg
Excelente abordagem ! Conseguiu abranger várias situações em algumas palavras.
Importante para nós, leigos, no dia a dia.
Parabéns !
Fernando Ubarana
Excelente, Marco Túlio! Seu texto nos leva a refletir sobre aspectos da segurança de alimentos que usualmente não levamos em conta.
Marco Túlio Bertolino
Puxa Fernando, um comentário seu tem muito valor para mim, obrigado.
Silvia Maria Sanches Camoiço
Muito bom, Marco!!!
Abordagem clara e embasada!
Parabéns!!
Marco Túlio Bertolino
Obrigado Silvia.
Paulo Roberto Kroich Gomes
Parabéns Marco, gostei do texto, viajei contigo em minhas lembranças e pós me novamente a refletir sobre as condições alimentares de cada cultura no mundo e sua influência que acaba influenciando e muitas vezes manipulando a todos pelos hábitos alimentares de cada povo que sabemos não ser os melhores mas que se
se escondem atrás da cultura local, parabéns temos muito que evoluir
Marco Túlio Bertolino
O desafio é o bom senso entre manter hábitos alimentares e evitar riscos de pandemias em um mundo hiper conectado. Grande abraço.
Luiz Geraldo dos Reis
Parabéns Marco, excelente texto, claro e conciso sobre a relação entre hábitos alimentares e segurança alimentar nos dias atuais.
Marco Túlio Bertolino
Muito obrigado Luiz.
Ingrid Mengue Klaus
Parabéns! sempre enriquecedor ler seus textos.
Marco Túlio Bertolino
Oi Ingridy, muito obrigado por seu comentário.
Eduardo Salles
Me parece essencial o investimento em sistemas de rastreabilidade (desde o ovo, durante o processo de abate e industrialização, até o consumidor final) elevaria muito a segurança para a saúde dos consumidores.
Marco Túlio Bertolino
Sem dúvidas Eduardo, rastreabilidade é um pilar importantíssimo, somado a isto os princípios de BPF (Boas Práticas de Fabricação) são fundamentais, incluindo higiene pessoal, operacional, e claro, muito empenho em limpeza e sanitização.