Assuntos regulatórios nas indústrias de alimentos: entrevista com a colunista Talita Andrade

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O time de colunistas do Food Safety Brazil é formado por profissionais voluntários e de referência na área de segurança de alimentos. Para que os leitores conheçam um pouco da  história de cada um deles, fizemos uma série de posts dedicados a entrevistá-los. Hoje vamos conhecer Talita Andrade, engenheira de alimentos e MBA em Marketing pela UNICAMP. Atualmente é aluna de mestrado do Departamento de Ciência de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UNICAMP. Desde 2005 atua na indústria de alimentos, tendo trabalhado em grandes empresas nacionais e multinacionais. Atua há quase 15 anos na área de Assuntos Regulatórios, e desde 2019 está na FrieslandCampina Ingredients como responsável pela área de Regulatórios na América Latina.

  • Talita, qual é o maior desafio para quem atua em Assuntos Regulatórios?

Resposta: Um dos maiores desafios é se manter atualizado, não somente em relação a novas legislações publicadas, mas principalmente em relação ao que está em discussão nas agendas dos órgãos e na pauta das associações de indústria. A área de Regulatórios deve ser os olhos e os ouvidos da empresa, com foco em mitigar riscos, trazer oportunidades de inovação e melhoria contínua, além de manter a empresa em conformidade com a legislação sanitária vigente.

Outro grande desafio é consolidar o papel de Regulatórios na companhia e construir uma relação permanente com todas as áreas da empresa, especialmente com os times de Marketing, Inovação, Jurídico, Comunicação, Qualidade e P&D, de modo que todos os fóruns e projetos tenham um representante de Regulatórios. É fundamental que todo projeto tenha um parecer sob a ótica das normas sanitárias e com a antecedência necessária para realização de ajustes quando couber.

  • Você está há quase 15 anos atuando em Assuntos Regulatórios. Que discussões são coisa do passado e quais ainda estão presentes?

Resposta: No passado, havia discussões com foco essencialmente técnico. Com o passar do tempo, a ótica do consumidor ganhou força, e hoje a presença dos órgãos de defesa do consumidor e ONGs nas discussões regulatórias é muito grande. Alguns bons exemplos são a publicação da norma de rotulagem de alergênicos em 2015 e da norma de declaração da presença de lactose em 2017, a publicação da nova legislação de rotulagem nutricional em 2020 e a publicação da norma de cereais integrais em 2021. Isso é algo que veio para ficar e influencia bastante a agenda dos órgãos.

A ótica da saúde também sempre foi considerada nas discussões, mas isso tem se intensificado nos últimos anos. Temos vivido recentemente relevantes movimentos regulatórios gerados por novos conhecimentos científicos, tais como restrições do uso de bisfenol nas embalagens plásticas, proibição do emprego de gorduras trans na produção de alimentos e o mais recente banimento do corante dióxido de titânio. Com a tendência crescente da busca por alimentação saudável, é fato que novas discussões regulatórias como estas surgirão.

Além disso, no passado havia menor divulgação das pautas em discussão pelas autoridades sanitárias no Brasil. No entanto, nos últimos anos, algumas ações de âmbito federal visando dar maior transparência às ações das autoridades reguladoras tem proporcionado ao setor regulado maior visibilidade das Agendas Regulatórias, o que é excelente. Também é algo que veio para ficar. E ainda, nota-se que, apesar de não termos no Brasil processos de regulamentação rápidos, esse mecanismo de publicização e organização das agendas já tem dado maior celeridade ao rito de publicações de novas normas alimentares.

  • E você considera que essa divulgação das agendas do processo regulatório, além de evitar que as empresas sejam “pegas de surpresa”, também diminuirá os impactos para o setor produtivo?

Resposta: Algo que também é relativamente novo e deve se perpetuar é a organização do processo regulatório no Brasil, com destaque para a obrigatoriedade da realização da Análise de Impacto Regulatório (AIR). Essa inovação é sem dúvida uma ferramenta crucial para a construção de novas legislações, de modo a avaliar e ponderar os impactos do futuro regulamento para todos os stakeholders envolvidos, ou seja, órgão regulador, setor produtivo e consumidor. Tal organização regulatória garante ainda a realização de etapas de participação social, como Consulta Pública e Audiência Pública, algo muito importante no processo regulatório, para contemplar o ponto de vista de todos os atores impactados pela norma. Outro destaque nessa organização regulatória é a previsão de realização da Análise do Resultado Regulatório (ARR), que visa avaliar os resultados obtidos após a publicação da norma e verificar se a mesma resolveu o problema regulatório e atendeu a necessidade pela qual foi criada, de modo a dar visibilidade ao órgão da necessidade de revisão e até mesmo de revogação. Sem dúvida, a AIR e a ARR geram um sistema regulatório mais equilibrado, construído com base em evidências científicas e em fatos reais do cotidiano da indústria. Isso não só resulta num impacto adequado das regulamentações, como também colabora para a solução do problema regulatório.

  • E o que parece ser o futuro das discussões regulatórias?

Resposta: Em relação ao futuro, não muito distante, está na pauta das autoridades sanitárias no Brasil a questão das novas tecnologias e inovação, por exemplo, carne de laboratório, produtos plant based, novos alimentos e novos ingredientes etc. Em outubro do ano passado, a ANVISA realizou oficinas técnicas sobre plant based para obter elementos para a identificação e a análise do problema regulatório, suas causas e consequências, e mapeamento dos agentes por ele afetados. O MAPA também está trabalhando neste tema, e em 2021 realizou a Tomada Pública de Subsídios sobre a regulação dos produtos plant based. A discussão de novos alimentos também está sendo trabalhada pela Agência na revisão das Resoluções 16, 17, 18 e 19/1999, prevista na Agenda Regulatória 2021-2023. Um dos tópicos em debate é o conceito de novo alimento e a definição de histórico de consumo, além dos requisitos para avaliação de segurança e comprovação da eficácia de claims. É inevitável pensar que as discussões do futuro estarão focadas no avanço tecnológico e inovação.

Algo bastante recente e que provavelmente vai se tornar pilar constante do processo regulatório no Brasil é o aproveitamento de análise realizada por Autoridade Reguladora Estrangeira Equivalente para regularização de produtos sujeitos à ANVISA. O tema foi tratado na Consulta Pública 1039/21 e tem forte relação com as discussões regulatórias das aprovações das vacinas no cenário da pandemia do novo coronavírus. Tendo em vista esse racional da CP, em novembro de 2021, a Gerência Geral de Alimentos da ANVISA disponibilizou quatro novos processos de avaliação de segurança e eficácia de novos ingredientes de alimentos, que permitem uma análise simplificada para alguns casos específicos, entre eles a avaliação de novos alimentos a partir do aproveitamento de análise realizada por autoridades regulatórias estrangeiras. Esse é um grande avanço que proporciona celeridade às inovações da indústria de alimentos. Vivemos recentemente essa experiência na empresa, e conseguimos aprovação da ANVISA em tempo recorde!

  • Está ficando mais simples ou mais complexo atuar em Assuntos Regulatórios?

Resposta: Na minha opinião, se por um lado o processo regulatório no Brasil está cada vez mais organizado com os órgãos provendo ao setor regulado ferramentas que facilitam o acesso aos regulamentos, o entendimento das normas, o acompanhamento e a participações nas agendas, por outro lado é crescente nas empresas a demanda para a área de Regulatórios frente ao avanço da tecnologia e da inovação, o que torna mais complexo atuar na área.

A modernização da indústria de alimentos em termos de matérias-primas, novos ingredientes e processos, somada às tendências de consumo que requerem saudabilidade, praticidade e conveniência, exigem do profissional da área maior domínio das normas, atualização diária, relacionamento contínuo com órgãos e associações e forte atuação na Agenda Regulatória. Tudo isso visando manter a operação da empresa em conformidade com a legislação vigente e garantir a continuidade do negócio, bem como viabilizar as oportunidades em lançamentos disruptivos e novos.

  • Talita, pensando no seu tempo, há uma programação prévia para atualizações (por exemplo uma hora por dia, 1x na semana)? Considerando que temos várias novas publicações, normas revogadas, qual a sua ferramenta preferida para se atualizar?

Resposta: Em relação à legislação nacional, diariamente leio os informativos do Diário Oficial da União (DOU) compilados pelas associações das quais a empresa é membro e pela consultoria que nos dá suporte. Essa é minha ferramenta favorita, porque é prática e rápida, além da publicação já vir acompanhada de análises e comentários.

Além disso, uma vez ao mês reviso as publicações por meio de um compilado mensal com todas as novas normas alimentares no Brasil. Em relação ao cenário internacional, recebo mensalmente um compilado de um banco de legislação contratado pelo global na Holanda. A movimentação no MERCOSUL e no Codex Alimentarius eu acompanho via associação com a frequência de acordo com a agenda dessas discussões. Além disso, visito constantemente os sites do MAPA e da ANVISA, e também acompanho estes órgãos e stakeholders pelo Linkedin. Por último, também fico atenta aos eventos e feiras que geralmente incluem workshops e palestras sobre temas regulatórios, além de webinars, que aumentaram grandemente durante a pandemia.

  • Talita, o que você sugere para pequenas empresas se manterem atualizadas e cumpridoras dos seus deveres, já que por tudo que citou há uma complexidade para gerenciar?

Resposta: Geralmente as pequenas empresas não têm um departamento de Assuntos Regulatórios, mas algumas áreas como Pesquisa e Desenvolvimento, Qualidade e Jurídico, são responsáveis por atividades como a avaliação de fórmulas, análise de viabilidade de projetos, registro de produtos, elaboração de rotulagem, análise da comunicação de produtos, defesa de notificações etc. Ou seja, a área funciona de forma desmembrada. Esse não é o modelo ideal. Nestes casos, para um adequado gerenciamento, é muito relevante investir em treinamentos para ter ao menos um profissional especialista em legislação com domínio do tema e visão do todo. Há também a possibilidade de contratação de consultoria, que pode ser responsável por todas as atividades ou para dar suporte pontualmente em casos mais complexos.

Também, por não ter uma área dedicada somente a Assuntos Regulatórios, é mais desafiador organizar um sistema de acompanhamento das novas publicações. Existe a opção, por exemplo, da aquisição de acesso a bancos de legislação que são providos de ferramentas de busca por categorias de produtos e temas, além de alertas de monitoramento do Diário Oficial personalizados. Outra opção novamente são as consultorias, que oferecem serviços como envio de e-mail mensalmente com o compilado das legislações publicadas e acompanhadas da análise dos impactos.

Para a saúde da empresa é muito importante ter um processo de follow-up das publicações. Em caso de não ter essa possibilidade de investir em ferramentas ou consultoria, como já citei, a empresa precisa de um especialista. Ao longo dos últimos anos, os sites dos órgãos como MAPA, ANVISA e INMETRO receberam grandes melhorias, como organização das bibliotecas de normas por categorias de produtos, publicação de documentos de “Perguntas e Respostas” e ferramentas de busca. Um profissional treinado pode conseguir um bom resultado usando esses recursos gratuitos. No site da ANVISA, por exemplo, todos os documentos de Perguntas e Respostas estão reunidos em uma única ferramenta, e todas as normas da Agência estão reunidas na Biblioteca de Alimentos. Já na Biblioteca do MAPA, as normas estão organizadas por categorias e temas.

  • E como uma empresa pequena pode participar das Agendas Regulatórias que você comentou?

Resposta: Sem uma área de Assuntos Regulatórios estruturada, também é mais difícil desenvolver estrategicamente as relações externas, tal como a filiação em associações de classe, que além de canal para atualização sobre novos regulamentos, é a principal porta para atuação nas discussões das Agendas Regulatórias e para maior proximidade com os órgãos. Tal acompanhamento e participação nos movimentos e fóruns regulatórios é de extrema relevância para mitigar riscos, reduzir impactos e aproveitar oportunidades de inovação ou até mesmo de redução de custos. As associações de maior porte podem ter um custo maior de anuidade, no entanto existem associações específicas que representam as pequenas indústrias e até mesmo os produtores artesanais. Eu recomendo fortemente que as empresas avaliem essa estratégia e dentro do possível ingressem nas associações de suas respectivas categorias.

Caso seja inviável investir na filiação em associações, como mencionei, os sites dos órgãos hoje em dia estão bastante organizados, e um profissional treinado consegue navegar e obter informações sobre status de cada tema das Agendas Regulatórias e também consegue enviar posicionamento da empresa nas Consultas Públicas. Por exemplo: as Consultas Públicas do MAPA estão organizadas no SISMAN – Sistema de Monitoramento de Atos Normativos. Já as Consultas Públicas da ANVISA estão disponíveis na página da Agência.

De novo, esse não é o modelo completo e ideal, mas já é uma forma mínima para estar ciente das discussões em andamento.

  • Para encerrar, quais os posts que você mais gostou de escrever e quais tiveram maior repercussão?

Resposta: Meus temas favoritos são rotulagem e aditivos alimentares. Então tenho um “carinho especial” pelos seguintes textos: “Rotulagem de alimentos para fins industriais: como elaborar?”, “Adoçantes são seguros? Uma abordagem sob a ótica de Food Safety e Regulatory Affairs”, “Alegações na rotulagem de alimentos: o que pode e o que não pode?” e “Dúvida de leitor: quais as normas do INMETRO para rótulos de alimentos?”.

Entre os de maior repercussão, escrevi o texto “Produção e Comercialização de alimentos artesanais – saiba por onde começar para regularizar seu negócio”, que foi o quinto post mais lido em 2021 no Food Safety Brazil.

Se você deseja conhecer outros textos da Talita Andrade sobre legislação de alimentos, clique aqui.

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