Estamos lá, na nossa tão tranquila vida de técnicos em alimentos.
Um dia, acordamos com a missão de implantar um sistema de segurança alimentar na fábrica em que trabalhamos.
Aqueles agraciados por trabalharem nas indústrias de suco de frutas, ovos, carnes ou laticínios podem começar com o sem número de estudos de caso, planos HACCP modelo e artigos científicos que se debruçaram sobre suas respectivas áreas.
Os pobres mortais, como eu, que trabalham em indústrias de ingredientes e aditivos, sofrem. Onde encontrar referências para os perigos das NOSSAS matérias-primas? Quem já ouviu falar de um modelo de plano HACCP para a indústria de peróxido de dibenzoíla aí levanta a mão!
Só que mesmo quem trabalha no mercado B2C precisa definir os perigos das suas matérias-primas. Que às vezes são o nitrito de sódio, a goma xantana e o dióxido de silício. Onde buscar informações?
A primeira porta de entrada são as duas compilações mais importantes para aditivos: o compêndio de especificações de aditivos alimentares do JECFA (comitê do Codex Alimentarius para avaliação de aditivos alimentares) e o FCC (compêndio da Farmacopéia americana para os padrões de qualidade e pureza de ingredientes alimentícios). A consulta às monografias do JECFA é gratuita, enquanto que o FCC está disponível através de assinaturas online ou em forma física. O FCC cobre ingredientes em geral, além de aditivos, e tende a ser uma referência um pouco menos rigorosa do que o JECFA – pelo menos na questão dos metais pesados. Na nossa experiência, o FCC parece ser o padrão adotado pela maioria dos fornecedores (o que não impede que o fornecedor atenda também ao JECFA). É importante, contudo, separar nestas especificações o que são parâmetros de qualidade do que são parâmetros de segurança alimentar.
Há perigos que dependem do processamento específico da matéria-prima, e devem ser tratados em todas elas, como fragmentos físicos e alergênicos. Para fragmentos, os níveis aceitáveis estão no momento em discussão na Consulta Pública nº 11 (Anvisa, mar/2011, já fechada), mas enquanto não é publicada, é normalmente aceita a recomendação do FDA da sessão 555.425 (Foods – Adulteration Involving Hard or Sharp Foreign Objects). A questão de alergênicos também está sendo tratada no âmbito Mercosul, então não temos ainda uma lista nacional a ser considerada (à parte do glúten e da tartrazina, que é não considerada um alergênico). Pode-se, no momento, usar a lista do Codex Alimentarius, da União Européia ou dos Estados Unidos. A lista do Codex Alimentarius está sendo usada no desenvolvimento da legislação nacional.
No mesmo caso estão os metais pesados – para aditivos o JECFA e/ou o FCC são boas fontes de consulta, porém para ingredientes há a Portaria nº 685 (Anvisa, ago/1998), que ainda está em vigor, e a sua tentativa de upgrade, ainda não oficializada, Consulta Pública nº 101 (Anvisa, out/2010, fechada). Para micotoxinas, especialmente em especiarias e outros alimentos de origem vegetal e animal de baixa umidade, foi recentemente publicada a Portaria nº 7 (Anvisa, fev/2011). Ainda temos a Resolução RDC nº 12 (Anvisa, jan/2001) para os quesitos microbiológicos (que pede ausência de Salmonella spp. até para fosfatos…).
Para aromatizantes obtidos por extração, a Resolução RDC nº 2 (Anvisa, jan/2007) estabelece limites máximos residuais dos solventes. Ainda nesta categoria, para aromas de fumaça a União Européia traz limites para hidrocarbonetos aromáticos policíclicos através da Regulação EC 2065/2003.
Enzimas possuem alguns parâmetros de segurança listados nas Especificações Gerais e Considerações para Preparações Enzimáticas pelo JECFA.
Especiarias, vegetais desidratados, proteínas vegetais e tudo o mais que seja fruto do maravilhoso mundo da agricultura deve atender aos limites de agrotóxicos permitidos para cada cultura. E não conter nada do que não é permitido. E como saber o que é permitido no Brasil? Entre em monografia por monografia de agrotóxico (atualmente são 491, thank you very much) e bom proveito! O Codex Alimentarius fez um favorzinho ao listar em 2011 os LMRs para especiarias, que normalmente não estão previstas na legislação nacional.
E não nos esqueçamos dos contaminantes que vão pintando no mundo dos ingredientes conforme a criatividade humana cresce: melamina em proteínas lácteas, Sudan Red em páprica, dioxina em ingredientes processados… Uma forma de encontrar esses perigos associados aos ingredientes (e não listados acima) é fazer uma busca num banco de dados científicos, como o Science Direct, Wiley, Pub Med ou Scielo, pelo nome do ingrediente e perigo (ou hazard).
Fácil, não?
Ah, e quando o aditivo é um conservante – e portanto tem ação direta sobre a segurança alimentar do produto a ser consumido? Isso é assunto para uma outra conversa!
Nathalia Gouveia Federico
Excelente post! Realmente só quem trabalha na área para entender a colcha de retalhos que é fazer a análise de perigos para aditivos… e perceber o quanto a legislação brasileira é deficiente nesse quesito.
Cristina Leonhardt
Oi, Nathalia! A legislação brasileira deixa meio implícito (não tão claramente) que se pode usar o JECFA ou o FCC. Esta semana mesmo, discutindo com a Anvisa sobre a consulta pública sobre metais pesados (que nem sequer menciona aditivos), me foi informado que podemos usar os limites de um desses dois compêndios (apesar de isso não estar descrito em lugar nenhum). A legislação brasileira é engraçada: quer ser positiva e prever cada caso, porém, na absoluta impossibilidade disso, deixa muito para a interpretação do vivente…
Arlete Santos
Muito boa sua apresentação! A nossa realidade é essa mesmo: um país que pretende ser regulador de tudo, só pode confundir mais do que ajudar. Precisamos aprender com os países que desenvolveram uma cultura da orientação e da responsabilidade para termos melhores empresas e melhores consumidores sem a intensa interferência do governo.
Gostei muito da sua colocação “…separar nestas especificações o que são parâmetros de qualidade do que são parâmetros de segurança alimentar.” Muitos técnicos não lembram disso e justificam a tecnologia química somente pela ótica do resultado obtido no produto.
Marcela Duarte
Cris!!! Amei teu artigo, espero que me ajude, abraço!