Neste artigo trago uma entrevista abordando tendências sobre microrganismos deteriorantes com minha querida amiga, a Profa. Dra. Karen Signori Pereira, da UFRJ.
FSB – Além dos deteriorantes de alimentos clássicos, quais são os gêneros emergentes de microrganismos deteriorantes?
Karen: Acredito que haja, na verdade, uma emergência em compartilhamento de conhecimento, os grupos de deteriorantes são velhos conhecidos; o que temos, em alguns casos, são novas espécies descritas dentro destes grupos.
Quando olhamos para deteriorantes, temos microrganismos fastidiosos, bactérias láticas e acéticas (por exemplo), complexos metabolicamente, que têm demandas metabólicas diferentes e dificilmente vão aparecer em um ensaio de contagem total de bactérias aeróbias (também conhecido como mesófilos, totais, aeróbios) em meio Plate Count Agar (PCA). É muito importante divulgar que estes microrganismos existem, são problemáticos e como analisá-los, pois os meios clássicos não vão trazer as respostas específicas.
Com o advento de novos alimentos, como bebidas não alcoólicas com mix de diversos ingredientes, adição de frutas em cervejas, alimentos plant-based e análogos, temos composições muito variadas, por exemplo, com inserção de grãos, sementes, extratos e chás, que podem conter microrganismos esporulados. Já as análises não estão mudando e se adaptando para detecção desta possível microbiota.
Outro ponto importante nesta questão de deteriorantes é a tendência para o desenvolvimento de alimentos sem conservantes e produtos clean label. Quando são feitas alterações na formulação ou quando da concepção de um produto, vemos muito apego à legislação (cujo objetivo é segurança do produto e não estabilidade dele) e pouca discussão sobre microrganismos deteriorantes.
É preciso entender que antioxidantes, acidulantes e conservantes são muito importantes para produtos derivados de frutas e cereais, e que se retirados da formulação para reduzir o número de ingredientes (para claims de clean label), podemos aumentar muito os riscos de estufamento/explosão. Saiba mais em Detecção de deteriorantes em produtos termo processados de alta e baixa acidez.
Análises de risco específicas, levantamentos bibliográficos para novas matérias-primas e o foco em microrganismos deteriorantes são fundamentais, para evitar, inclusive, riscos para a saúde pública. O P&D deve sempre envolver o time de micro nos projetos! Juntar os responsáveis da área de regulatórios e marketing também é fundamental para atender as necessidades dos clientes, demandas de clean label e segurança do consumidor final.
FSB – Você poderia citar exemplos destes grupos?
Karen: Leveduras resistentes a conservantes, as chamadas PRY (Preservative Resistente Yeast), como algumas espécies do gênero Zygosacaromyces, são pouco abordadas e analisadas. São leveduras capazes de metabolizar conservantes muito usados na indústria, como ácido benzóico e ascórbico, e essenciais para estabilidade de produtos como refrescos, refrigerantes e molhos, por exemplo. A análise deste grupo de leveduras requer protocolos e meios de cultura específicos, não sendo uma análise convencional de “bolores e leveduras”.
Um grupo de bactérias muito importante na deterioração de bebidas, mas ainda pouco discutido, é o das bactérias acéticas. Dentro deste grupo, novos gêneros e de nomes mais diferentes tem aparecido com mais frequência: o genêro Asaia e o gênero Komagataeibacter já foram descritos e relatados como problemas em algumas bebidas.
O uso de métodos moleculares de sequenciamento possibilita a correta identificação de microrganismos isolados a partir de análises convencionais, e daí o surgimento de dados sobre a ocorrência de “novos” deteriorantes. Entretanto, quando levamos ao laboratório um produto deteriorado precisamos ter em mente que aquela deterioração é resultado da atividade metabólica de um microrganismo, mas que no produto podem existir outros microrganismos que não se desenvolveram devido à pressão seletiva do ambiente, mas que quando cultivamos em placa eles tem a possibilidade de se desenvolver. Deste modo, análises de metagenômica, quantificando proporcionalmente DNA microbiano em matrizes deterioradas, tem sido fundamentais para elucidar corretamente casos de contaminação.
Novas metodologias de identificação como Maldi-Toff têm, em sua maioria, base de dados clínicos e funcionam bem para bactérias patogênicas e alguns fungos filamentosos e leveduras, mas para bactérias láticas, acéticas e outros microrganismos, a base de dados não é muito extensa, não sendo possível fazer uma identificação com precisão.
FSB – Existe alguma tendência de a indústria começar a analisar estes microrganismos?
Karen: Eu acho que sim. O impacto de um deteriorante em uma sociedade midiática é muito maior e mais óbvio para a população do que patógenos, pois suas alterações são visíveis, alteram sabor, cor, geram estufamento e podem levar à explosão de embalagens.
Estes relatos e imagens caem na mídia social e impactam diretamente as marcas, obtendo muito engajamento. Os famosos “haters” das indústrias de alimentos processados acabam usando como material para criticar e questionar a qualidade da indústria de alimentos.
No Brasil, recentemente, pode-se citar problemas com ovos de Páscoa, brownies e panetones que já foram objeto de recalls por presença de bolores e muita divulgação nas mídias sociais, levando a uma maior preocupação por parte das indústrias.
FSB – Em quais matrizes de alimentos existe mais impacto de deteriorantes?
Karen: Bebidas não alcoólicas, molhos para salada, pães, produtos análogos às proteínas animais. Não se conhece muito bem, ainda, a ecologia microbiana que pode existir nestas matrizes.
FSB – Em sua opinião, como o consumidor enxerga a relação entre produtos deteriorados x segurança de alimentos?
Karen: O consumidor tende a ser parcial. Geralmente ele trata deteriorações com certa naturalidade: para pães contaminados por “mofo”, por exemplo, costuma-se retirar a parte visual e seguir com o consumo.
Já para molhos de tomate termicamente processados e sucos de frutas, os relatos são mais dramáticos e sensacionalistas, associando a massa amorfa do fungo filamentoso que se desenvolveu, no produto, a girinos, fetos, ratos…os relatos na internet são criativos!
FSB – Qual o impacto para marcas, após identificada contaminação em alimentos, por microrganismos não patogênicos?
Karen: A imagem sempre fica impactada, existem muitos consumidores de memória curta, mas o impacto é muito relevante. Outro problema é a possibilidade de serem feitos prints de casos em mídias sociais e que podem ser resgatados em outras situações e retirados do contexto, perpetuando o dano da situação.
O impacto de um recall de produto (custo, logística, impacto para imagem da empresa) devido a um problema por deterioração microbiana é tão ruim quanto o de um recall por motivo de contaminação por patógenos, salvo, claro, o custo de vidas, incomensurável e o dano para a saúde pública.
A notícia da dor do outro dói menos nas pessoas, por exemplo, quando há óbito ou adoecimento devido a uma doença de origem alimentar. No entanto, o impacto de encontrar um produto adulterado sensibiliza mais e gera mais memória, por ser visual e por dar a sensação de não atendimento de uma expectativa de qualidade. É como se a questão dos patógenos fosse mais abstrata.
É claro que a preocupação prioritária deverá sempre estar nos patógenos, porém o dano para a marca com problemas por deteriorantes é muito grande e deve ser mais bem avaliado nas indústrias.
Esta entrevista me deixou curiosa e apreensiva com o futuro de tantos novos produtos no mercado!
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