Entenda por que o contexto da organização é mais estratégico do que parece
Quando falamos sobre certificações de segurança de alimentos, como a FSSC 22000, SQF etc. é comum que os olhos se voltem diretamente para as Boas Práticas, controle de perigos ou programas de pré-requisitos. No entanto, um dos pontos mais estratégicos e muitas vezes subestimado está logo no início da norma: a análise do contexto da organização.
Esse requisito é essencial para que a empresa construa um Sistema de Gestão de Segurança dos Alimentos (SGSA) que seja sólido, eficiente e conectado à realidade da operação e do mercado. Em outras palavras: sem entender onde sua empresa está inserida, é impossível gerenciá-la com eficácia.
Se a cultura da segurança dos alimentos não está conectada ao seu negócio, algo está fora do lugar
O que é o “Contexto da Organização”?
Segundo a ISO 22000:2018, a empresa deve:
- Identificar fatores externos e internos relevantes para seu propósito e que impactam a capacidade de alcançar os resultados esperados do SGSA.
- Entender as necessidades e expectativas de partes interessadas (clientes, órgãos reguladores, funcionários, fornecedores etc.).
- Monitorar e revisar essas informações periodicamente.
Isso inclui desde mudanças regulatórias até desafios operacionais e culturais. O objetivo é permitir que a empresa tome decisões baseadas em riscos e oportunidades reais, mantendo o sistema sempre ajustado à sua realidade.
Uma análise superficial pode gerar um sistema de gestão que:
- Trata problemas genéricos, não os reais.
- Não responde adequadamente a mudanças no mercado.
- Ignora partes interessadas que influenciam diretamente a segurança dos alimentos.
- Gera ações desconectadas da estratégia de negócio.
Já uma análise robusta permite:
- Antecipar riscos e preparar planos de ação eficazes
- Aproveitar oportunidades e inovar com segurança
- Tomar decisões estratégicas baseadas em dados reais
- Alinhar toda a organização com a cultura de segurança dos alimentos
Como fazer uma análise inteligente e não apenas burocrática?
Conecte a análise ao negócio
Não trate o tema como uma tarefa isolada. Relacione o contexto ao propósito, aos produtos e ao posicionamento da sua empresa. Um contexto mal definido leva a decisões erradas no controle de perigos, programas pré-requisitos e até gestão de crises.
Exemplo: Uma empresa que exporta para a Europa deve incluir legislações internacionais (como o Regulamento CE 178/2002) no contexto, mesmo que isso não esteja explícito nos requisitos locais.
Integre com a cultura de segurança dos alimentos
A cultura influencia diretamente o sucesso do SGSA. Uma análise inteligente considera:
- Grau de maturidade cultural
- Comportamento da liderança
- Clareza na comunicação sobre riscos
- Envolvimento da equipe em práticas preventivas
- A comunicação interna entre setores
- O engajamento da equipe na rotina de controles
- O histórico de falhas e como elas são tratadas
Identifique riscos e oportunidades reais
Transforme a análise de contexto em decisões estratégicas:
Situação Identificada | Risco Potencial | Oportunidade Potencial |
Alta rotatividade de pessoal | Falhas na execução de controles | Redesenhar processo de onboarding |
Nova legislação sobre alergênicos | Risco de não conformidade | Investir em diferenciação de produtos |
Demanda por alimentos plant-based | Perda de mercado se não inovar | Lançar nova linha funcional |
Documente e atualize
Não basta fazer uma vez e esquecer. A ISO exige monitoramento e revisão contínua. Utilize:
- Reuniões estratégicas periódicas
- Indicadores (turnover, reclamações, recall, tempo de resposta)
- Relatórios de auditorias e inspeções
Ferramentas práticas para entender o contexto da sua organização
I. Análise SWOT (Forças, Fraquezas, Oportunidades e Ameaças)
Ajuda a mapear fatores internos (pontos fortes e fracos) e externos (ameaças e oportunidades).
Exemplo prático:
- Força: equipe qualificada em APPCC
- Fraqueza: alta rotatividade de operadores
- Oportunidade: novo mercado consumidor com foco em produtos naturais
- Ameaça: novas exigências regulatórias internacionais
II. Análise PESTEL
Permite explorar o ambiente externo com mais profundidade:
- Político (legislação, estabilidade)
- Econômico (inflação, poder de compra)
- Social (mudanças nos hábitos de consumo)
- Tecnológico (automação, rastreabilidade digital)
- Ecológico (sustentabilidade, uso da água)
- Legal (novas normas e regulamentações)
III. Matriz de Partes Interessadas
Identifica quem impacta — e é impactado — pelo sistema de gestão. Exemplos:
Parte Interessada | Interesse/Expectativa |
Clientes | Alimentos seguros, confiáveis |
Órgãos reguladores | Conformidade legal |
Fornecedores | Parcerias estáveis |
Funcionários | Ambiente seguro e capacitação |
Comunidade | Sustentabilidade e responsabilidade social |

Como aplicar na prática?
Aqui vai um passo a passo direto para colocar esse requisito em ação:
- Monte um time multidisciplinar (qualidade, produção, manutenção, compras, RH)
- Reúna dados concretos (auditorias, indicadores, reclamações, tendências de mercado)
- Utilize ferramentas como SWOT, PESTEL e Matriz de Partes Interessadas
- Documente tudo com clareza. Pode ser em planilhas, relatórios visuais ou mapas mentais
- Atualize a análise sempre que houver mudanças internas ou externas significativas
A análise do Contexto da Organização vai muito além de um requisito normativo. Ela é a base para construir um sistema de gestão realista, forte e sustentável. Ignorar esse ponto é como montar um quebra-cabeça sem olhar a imagem da caixa: você até pode montar algo, mas dificilmente será o que realmente precisa.
Para quem atua na indústria de alimentos, entender o contexto organizacional é entender o negócio como um todo, com suas vulnerabilidades e potencial de crescimento. E é justamente esse entendimento que fortalece a confiança do consumidor, a reputação da marca e a competitividade no mercado.
Referências para análises:
ABIA – Associação Brasileira da Indústria de Alimentos: publica relatórios de tendências, panorama econômico e dados de exportação/importação. Útil para identificar ameaças e oportunidades externas.
Euromonitor International / NielsenIQ / Mintel – Fornecem análises de consumo, comportamento do consumidor e tendências em alimentos. São fontes de inteligência de mercado.
SEBRAE – Inteligência Setorial: Alimentos e Bebidas – Oferece estudos sobre o setor no Brasil com foco em micro e pequenas empresas. Excelente para identificar fraquezas e oportunidades.
IBGE – Pesquisa Industrial Anual e Pesquisa da Indústria de Transformação – Trazem dados econômicos e de produção para a indústria alimentícia brasileira.
SENAI / FIESP / EMBRAPA Alimentos – Publicam análises e diagnósticos sobre produtividade, inovação e sustentabilidade no setor de alimentos.
ANVISA (Brasil) / FDA (EUA) / EFSA (Europa) – Suas publicações, guias e alertas fornecem dados para o mapeamento de ameaças regulatórias e sanitárias.
MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Publica normas e diretrizes para determinados setores de alimentos. Pode influenciar diretamente o contexto legal e regulatório.
UNIDO – United Nations Industrial Development Organization – Projetos sobre segurança de alimentos e desenvolvimento industrial sustentável. Aborda questões externas como comércio internacional, cadeia logística e regulação ambiental.
ISO/TR 22398:2013 – Guidelines for exercises and testing for continuity and contingency plans – Útil na análise de ameaças que impactam a continuidade dos negócios, como desastres naturais ou falhas em fornecedores.
Food Safety Management: A Practical Guide for the Food Industry – Yasmine Motarjemi – Oferece uma abordagem prática sobre ferramentas de análise estratégica em segurança de alimentos.
Gestão da Segurança de Alimentos – Mario Sergio Telles – Livro nacional com exemplos aplicados à indústria brasileira, incluindo ferramentas de análise de riscos e contexto organizacional.
Ana Silvia Mattos Gonçalves é engenheira de alimentos, coordenadora de Segurança de Alimentos e Qualidade e especialista em assuntos regulatórios e qualificação de fornecedores.