Semanas atrás foi divulgado na mídia um comunicado de recall que, entre outras coisas, dizia:
“Por extrema cautela, a XXX está procedendo com o recolhimento voluntário e preventivo de todos os lotes de seus produtos (…), devido a um desvio da qualidade em seu processo de fabricação. O desvio detectou potencial presença e traços de alguns alérgenos, tais como: ovo, cereais (cevada, aveia, centeio e trigo), leite, nuts (amêndoas, castanha do Brasil, castanhas, castanha de caju, avelãs, macadâmia, nozes, noz-pecã, pinoli e pistache), amendoim, soja, glúten e látex natural, advertências essas que não constavam nos rótulos das embalagens dos produtos”.
Preciso dizer que li e reli várias vezes o comunicado e fiquei intrigada com algumas palavras: preventivo? Desvio da qualidade? Alguns alérgenos? A sensação que tive foi que a empresa quis dar o tom de uma falha pontual, mas o que aconteceu foi uma ENORME falha sistêmica em seus processos.
Lembrei-me imediatamente de um professor que costuma dizer: “o Brasil é o único país onde as empresas escolhem que legislação querem cumprir”. E tive absoluta certeza disso.
Se pararmos para pensar que a RDC 26, da ANVISA, foi publicada em 2015 e estamos em 2021, este tipo de situação é inadmissível – afinal, as empresas já tiveram tempo de sobra para estudarem, entenderem e adequarem seus rótulos. Quando a empresa em questão anuncia “alguns alérgenos” e coloca em seguida praticamente a lista de TODOS os alérgenos, com exceção de peixes e crustáceos, isso não são “alguns”, isso não é um simples “desvio”.
Para piorar um pouco mais a situação, a empresa em questão é fabricante de ingredientes – ou seja, todos os produtos que ela menciona em seu comunicado são ingredientes que serão utilizados por outras indústrias de alimentos para a fabricação de produtos finais aos consumidores. Isso significa que muitos produtos podem ter sido fabricados a partir destes ingredientes e comercializados sem a declaração de alergênicos. Uma tremenda irresponsabilidade que coloca em risco vidas humanas… porque alergênico MATA.
A indústria precisa entender que a rotulagem obrigatória de alergênicos não é um capricho da Anvisa. A declaração obrigatória visa preservar vidas humanas frente a inúmeros estudos que já foram e são conduzidos neste campo. Perco as contas de quantas vezes eu já presenciei, em auditorias, a área técnica me perguntando: “nós precisamos mesmo declarar esse alergênico? A área comercial e/ou a área de marketing acham que perderemos mercado se o fizermos”.
Não é uma escolha – e algumas áreas da indústria ainda não entenderam este fato. Tentam burlar de qualquer forma a legislação, conduzem validações sem fundamentos… e por aí vai.
Em razão disso, o Food Safety Brazil resolveu criar uma semana temática sobre alergênicos. Ao longo da próxima semana, vocês terão a oportunidade de ler artigos sobre este tema, trazendo o ponto de vista de diversos colunistas.
Quanto à empresa do início deste artigo, que detectou esse “desvio” de qualidade, ficam algumas perguntas sem respostas:
O que foi que aconteceu?
Repentinamente surgiu a consciência do tema?
Um novo gerente da qualidade foi contratado e trouxe à luz essa questão?
Passaram por uma auditoria de cliente e foram reprovados?
Morreu o dono que não permitia rotular?
Qual o seu palpite?
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Michel Fernandes
Talvez as perguntas 3, 4 e 5 podem ter sido as principais razões para essa mudança de consciência. E o mais preocupante é que alguns fabricantes nacionais de ingredientes não tem responsabilidade com o cliente, produto final e o consumidor o foco é vender.