Sobrevivente de botulismo conta sua história de superação e sequelas

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Dois dedos do pé direito. Durante três meses estas foram as únicas partes do corpo da sobrevivente de botulismo,  Doralice Goes,  que se movimentavam sutilmente e com muito esforço, e permitiam a comunicação dela por “alfabeto” entre os médicos e sua irmã, precisando de horas para formar uma frase.

A conquista seguinte, após 3 meses, foi abrir os olhos. Sobrevivente que superou muitas adversidades, ela contraiu botulismo em 23 de janeiro de 2022 e passou 10 meses em uma UTI.

Mesmo sem poder movimentar um músculo, ela podia ouvir tudo que acontecia ao seu redor, e tinha as sensações táteis todas preservadas no leito, como dores, frio, coceira, dormências… sem poder falar ou reagir. Sentia o toque das pessoas. Também passou pelo desespero de ouvir médicos e especialistas ao seu redor não saberem o que ela tinha e até julgando que estava inconsciente.

Por nove meses ela respirou por traqueostomia e enfrentou as muitas complicações de um corpo imóvel. Até evacuar era um desafio, requerendo injeções dolorosas de neostigmina nas pernas por seis dias seguidos para estímulo dos movimentos peristálticos.

Ela teve infecção hospitalar por bactéria resistente, KPC, Klebsiella Pneumoniae Carbapenemas, ficando completamente isolada. O quarto passou a ser identificado com uma faixa vermelha no piso e então se tornou uma “barreira sanitária”, pois todos da equipe médica e os visitantes tinham que se paramentar e desparamentar para estar em contato com a paciente. Durante os dois primeiros meses ela passou por  nove plasmaferese (pois este é o tratamento para Síndrome de Guillian Barré) e quatro transfusões de sangue. A conduta médica só mudou quando saiu o laudo confirmando a presença de toxina botulínica.

Aos sete meses de internação, houve uma tentativa de liberá-la dos respiradores, o que foi uma decisão precoce, pois teve três dias de vômitos, alucinações e insônia por acidose ácida e foi intubada novamente.

As dores das cãibras, que eram resposta à retomada de movimentos, não passavam com o uso de morfina. A sonda GTT que a alimentava chegou a vazar internamente, causando uma infecção que parou seus rins.  Foram dois meses e meio de hemodiálise.

Ainda adquiriu Covid-19 e realizou drenagem nos pulmões.

Hoje, aos 46 anos, ela tem catarata e precisa operá-la, cirurgia não coberta pelo seu plano de saúde. Não se sabe se esta foi causada pelo longo período de uso de corticóides ou por conta do botulismo.

Em um segundo hospital, com sessões de fisioterapia diárias ela foi recobrando os movimentos, a começar pelo pescoço. Durante a UTI a paralisia foi classificada como aguda de quatro membros. Atualmente tem os membros inferiores afetados por uma lesão axonal crônica, que a leva a uma condição de PNE para voltar a dirigir.

Para se colocar em pé novamente foram necessários nove meses como ilustra a imagem deste post, acima.

Doralice em sessão de hemodiálise

Perdas além da saúde física

No último eletroneuromiograma foi evidenciado que ela ainda possui neuropatia axonal crônica. Isso significa que perdeu neurônios e teve que fazer novas conexões. Na prática ela está “conquistando” a tetraparesia, ou seja, apesar da fraqueza, dores e formigamentos por todo o corpo, retoma, com esforço, a capacidade dos movimentos.

Afastada de seu trabalho como servidora pública e técnica do TJDFT, a vida de Dora é se reabilitar, e realizar palestras motivacionais e de conscientização sobre botulismo. Sua rotina intensa inclui fisioterapia motora e pulmonar, clínica da dor com fisiatra (que inclui agulhamento seco, máquinas de choque, analgesia, laser, dentre outros), atendimentos para liberação miofascial, canoagem e natação adaptada, além de Pilates.  Tem acompanhamento psicológico semanal. Por conta de seu quadro, diariamente toma uma lista de medicamentos. Visualizando o longo prazo, a advogada optou por não requerer aposentadoria por invalidez e usufruir do direito de afastamento.

Doralice deve mais de R$ 400.000,00 ao plano de saúde, por coparticipação. Também um boleto que ficou em aberto no período de internação, da ordem de dois mil reais iniciais, “cresceu” e está em mais de R$ 38 mil, sem negociação com o banco. Há dias em que não tem recursos para pegar o Uber ou renovar o plano de uma das suas atividades de reabilitação. As dívidas só crescem, pois boa parte das atividades são particulares.

O site de vendas online que possuía não está mais ativo.

O processo judicial para reparações perante o fabricante, como sabemos, é lento e custoso. Então ela abriu uma vaquinha virtual para recuperar estas e outras despesas.

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/prejuizos-do-botulismo-alimentar

Tratar do tema do desgaste emocional é uma tarefa bastante limitada aqui nesta publicação, devido à sua abrangência e complexidade.

Diagnóstico difícil

Entre o horário de consumo do alimento contaminado e os primeiros sintomas foram aproximadamente 36 horas. Começou com cansaço extremo após um treino da academia.  Foi trabalhar sentindo as mãos e pés formigando. No meio da tarde as colegas de trabalho de Dora perceberam que a servidora estava falando “com a língua enrolada” a ponto de não ser compreendida e ela então foi dirigindo, sozinha, ao hospital. Ao chegar lá, notou que não conseguia mais caminhar normalmente e foi se escorando nos carros do estacionamento até a porta. O caso foi tratado como AVC e ela prontamente encaminhada para uma tomografia. Durante o exame, teve crise de vômito e parada respiratória, sendo intubada e iniciando a paralisia total.

Confusos, os médicos começaram a trabalhar hipóteses como AVC de tronco, ou uma expressão grave da Síndrome de Guillian Barré, associada com dengue e chicungunha. Também cogitaram reação vacinal. Por ser uma doença rara e ter sintomas comuns a outras enfermidades, os médicos se atêm em um primeiro momento a doenças mais prevalentes, o que dificulta o diagnóstico e ação rápida.

Foi só no segundo dia de internação, que um jovem neurologista, ao avaliar suas pupilas dilatadas e ao perceber que estava consciente, fechou o diagnóstico de botulismo. Como Dora mora na Capital Federal, o soro, que é armazenado no Centro de Vigilância Epidemiológica, chegou a tempo de impedir a parada cardíaca.

Ela conhece mais sobreviventes, que também relatam que ao chegar ao hospital não tiveram o diagnóstico inicial correto. Em um caso, um jovem foi diagnosticado com sinusite e solicitado que retornasse para casa, parando de respirar ainda no caminho, mas houve tempo de ser socorrido. Em outro, os sintomas foram associados ao consumo de drogas.

Nesta imagem está a caixinha cinza com o soro antibotulínico que salvou a vida de Dora

Quer saber mais detalhes sobre o caso? A série continua aqui: Molho pesto artesanal causou tetraplegia por botulismo em Brasília 

Aqui abordamos a contaminação, o processo investigativo e o alimento implicado.

Para contratar a Doralice para ministrar palestras em empresas, escreva para palestrabotulismo@gmail.com

Todas as imagens deste post foram enviadas e autorizadas por Doralice Goes.

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