Materiais de contato com alimentos: histórias e “causos” – Parte 1: O livro da vovó

4 min leitura

Materiais de contato com alimentos soam como tema “emergente” embora não seja assim tão novo na história da humanidade. Pessoas já morreram ou adoeceram por exposição aguda ou crônica a substâncias que migram para bebidas e alimentos, motivando a publicação de regulamentos específicos. Falar um pouco sobre histórias relacionadas, “causos” e erros será a motivação da série de posts sobre o tema.

Inicio a jornada contando minha prosaica experiência ao ler o livro de receitas que minha finada avó paterna me deu (após minhas súplicas) em 2019.  Trata-se da 46ª edição do  “Dona Benta – Comer Bem, da Cia Editora Nacional de São Paulo, de 1955. Fora um presente muito estimado dado pelo meu avô, e certamente na época um luxo que uma devota esposa prendada recebia do seu provedor esposo. Hoje é uma relíquia.

O primeiro conteúdo que ele apresenta é uma série de “Conselhos úteis” dedicados a materiais de contato com alimentos, no caso, utensílios culinários.

Consegui com uma amiga a edição número 76 de 2004 (a penúltima) e me ocorreu compará-la lado a lado com meu exemplar vintage. Vale a pena ler na íntegra pois ficam claras as preocupações com higiene e segurança. Destaco e comento:

Sobre o cobre

“As panelas de metal exigem cuidados especiais, principalmente as de cobre quando não são estanhadas interiormente. O perigo do uso das panelas de cobre é o azinhavre – veneno dos mais violentos” (versão de 1955). Embora a recomendação tenha seguido vigente meio século depois, este último adjetivo, “veneno dos mais violentos” foi substituído pelo suave “potencialmente venenoso” na versão mais recente.

Abrindo parênteses sobre este perigo, o que chamam de azinhavre é o Cu2(OH)2CO3(s – diidroxicarbonato de cobre-II – a forma oxidada), a “ferrugem” dos utensílios feitos com ligas metálicas que contêm cobre, como por exemplo o latão ou o bronze. Mas esta não é a única substância contendo cobre na fórmula que representa risco à saúde.

O elemento químico cobre, até certa concentração, é essencial ao organismo, porém deletério quando acima dos limites aceitáveis nos alimentos. É considerado contaminante inorgânico, sendo regulamentado pela IN n° 88/2021.  Em relação à legislação de material de contato, a RDC Nº 498/2021 define que:

3.1.6. Cobre, latão ou bronze revestidos integralmente por uma camada de ouro, prata, níquel ou estanho tecnicamente puros. Se permite o uso de equipamentos de cobre sem revestimento para elaboração de alimentos particulares a nível industrial e/ou artesanal a critério da autoridade sanitária competente sempre que se demonstre sua função tecnológica de uso.” 

2.8. Os materiais metálicos não devem conter mais de 1% (m/m) de impurezas constituídas por chumbo, arsênio, cádmio, mercúrio, antimônio e cobre, considerados em conjunto. O limite individual de arsênio, mercúrio e chumbo não deve ser maior do que 0,01% (m/m).

Por se ligar à enzimas e bloquear ou catalisar reações bioquímicas, o cobre é associado a doenças degenerativas do sistema nervoso. Ainda que o assunto seja controverso no meio científico, já se correlaciona com  Parkinson e Alzheimer. Assim, realmente o livro da vovó mandou bem neste alerta.

Continuando os conselhos, o cobre continuou com espaço para as atenções:

“Os tachos de cobre… nunca se deve deixar esfriar neles qualquer doce ou alimento”. O curioso é o enfoque no resfriamento, dado que a migração ocorre em maior velocidade a altas temperaturas, então infiro que a “base científica” da recomendação tenha sido reduzir o tempo de contato com alimentos necessário até reduzir-se a temperatura naturalmente, porém é um procedimento de eficácia limitada.

E finalmente, esta última recomendação foi a mais assustadora, pois me fez pensar quantas pessoas não tenham sido vitimadas pela adoção desta “tecnologia” para dar uma cor a mais nos alimentos dado que parece haver uma implícita história de sintomas agudos:

“Deve-se evitar colocar ácidos e líquidos salgados, gordurosos e oleosos em vasilhas de cobre. Estas geralmente são empregadas para dar cor a conservas…. De facto, ficam assim com uma linda cor verde…Essa coloração é devida à acção de sais de cobre. Embora mínimas as quantidades destes sais, é preciso ter cuidado e moderação no uso de tais legumes. Nem todos os estômagos tem a resistência suficiente para suportá-los por muito tempo“.

 

E o chumbo

E por fim: “Convém evitar de todo, na economia doméstica, utensílios de chumbo. Os sais de chumbo combinam-se facilmente com o limão ou o vinagre, formando oxiácidos de chumbo, que é veneno”.  Já na versão de 2004, quando o uso de tal metal já tinha sido banido do dia a dia, foi feita somente a menção de se evitar o chumbo das panelas de barro. Sobre este perigo nos materiais de contato com alimentos, vamos falar num próximo post.

Outra curiosidade é que a possibilidade do uso do aço inox somente é citada na versão mais recente, ficando de escanteio o alumínio, antes sugerido para aplicações como raladores. Seguindo a mesma linha de não ser recurso disponível na época, os materiais plásticos para contato com alimentos emergem como importantes em tábuas e potes para armazenamento.

E você, sabia que o livro da vovó já trazia conselhos para proteger a saúde das famílias em relação a perigos químicos originários de material de contato? Acha que os livros de culinária devem continuar educando a respeito?

4 thoughts on

Materiais de contato com alimentos: histórias e “causos” – Parte 1: O livro da vovó

  • Isabel

    Oi Juliana como vai? Espero que muito bem!!!

    Olha só, ainda temos esses livros lá em casa! uau, quantas receitas minha avó e mãe reproduziram dele!!!
    Entendo que havendo a possibilidade é muito importante informar , alertar, ensinar às pessoas sobre os perigos que rondam as cozinhas, as praticas corretas de manipulação de embalagens, alimentos, utensílios e tudo que possa evitar as temíveis DTA. Aqui no SAC em contato direto com os Consumidores percebemos nos diálogos com eles que há um longo caminho a percorrer , portanto sou totalmente a favor que livros e revistas de receitas, programas de TV e outros meios que divulguem praticas de alimentação encontrem formas simpáticas e simples de abrir caminho para essa abordagem que salva vidas e evita doenças. As industrias de alimentos deveriam se esforçar mais em suas embalagens, sites e redes sociais neste sentido … um abraço !!!

    • Juliane Dias

      Oi Isabel, obrigada pelo comentário. Concordo com você e desejo ardentemente que os consumidores cultivem o hábito de ler rótulos, manuais de instruções, livros, etc. Estes costumes tem sido cada vez menos frequentes, aparentemente algo geracional ou relacionados com novas rotinas e meios de comunicação.

  • Livia Grimeli

    Oi Juliane, achei interessante, eu ainda não conheço O livro da vovó. O conhecimento empírico sem dúvida poder ser muito bem aproveitado.
    Materiais de contato com alimentos é um tema de grande importância para seguranca dos alimentos. Trabalho com sistema de qualidade em uma empresa aqui na Noruega, e no último ano, foquei bastante no assunto, especialmente em embalagens plásticas para aquecimento. Ficou evidente que muitos profissionais envolvidos na producão e fornecimento de embalagens desconhecem os perigos da migração de substâncias.
    A falta de conhecimento desse assunto pode resultar em graves consequências.

    • Juliane Dias

      Oi Livia, obrigada pelo seu comentário aí vindo da Noruega. Se tiver alguma informação e quiser escrever um texto aqui para nós com seus aprendizados sobre estes e outros assuntos, temos uma seção que é “Food Safety pelo Mundo”. Nossos leitores tem recebido muito bem esses olhares diversificados.
      Quanto ao livro, o nome é Receitas da Dona Benta.
      Juliane

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