Rotulagem Nutricional: ferramenta relevante, sim, única solução, não!

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Rotulagem Nutricional é um dos temas mais relevantes na Agenda Regulatória de Alimentos do Brasil, MERCOSUL, Codex Alimentarius e de diversos países no mundo. E, claro, o tema também já foi discutido no Blog Food Safety Brazil aqui e aqui!

A norma atual de rotulagem nutricional da Anvisa foi publicada em 2003, e as discussões de saúde e políticas públicas avançaram muito nestes dezesseis anos, especialmente frente ao crescimento global da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis. Segundo a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) 2017, do Ministério da Saúde, quase um em cada cinco brasileiros (18,9%) são obesos e mais da metade da população das capitais brasileiras (54,0%) estão com excesso de peso. No cenário internacional, os números não são diferentes. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS-WHO), um em cada oito adultos em todo o planeta é obeso. A projeção para 2025 é de que cerca de 2,3 bilhões de indivíduos estejam com excesso de peso, sendo mais de 700 milhões com obesidade.

Frente a esta realidade, dentre outras iniciativas, a OMS abriu uma chamada para envio de dados científicos sobre a eficácia das políticas de rotulagem nutricional. O prazo para participação encerrou no mês de abril. O objetivo da WHO é desenvolver diretrizes para apoiar os países na implementação de medidas políticas que promovam dietas saudáveis e boa nutrição. Tais medidas políticas fazem parte de compromissos globais da Organização como o Plano de Ação Global para a Prevenção e Controle de Doenças Crônicas Não-Transmissíveis DCNTs (2013). Além disso, em 2016 a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou a Década de Ação sobre Nutrição (2016-2025), atribuindo papel relevante a nutrição na Agenda 2030 que trata dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Década da Nutrição tem como meta não só a erradicação da fome e a prevenção de todas as formas de desnutrição, como deficiência de micronutrientes, mas também, a redução do crescimento da obesidade e sobrepeso, e do aumento das doenças como diabetes, câncer, hipertensão. E o que políticas de rotulagem nutricional têm a ver com dietas mais saudáveis ou redução da obesidade e DCNTs?

A rotulagem nutricional consiste em ferramenta importante para que os consumidores façam suas escolhas com facilidade e autonomia e de forma consciente, segundo suas necessidades e preferências. O rótulo é fonte de informação para o consumidor tanto no momento da compra, como no lar para as escolhas diárias e contabilização da dieta (se necessária ou por opção do indivíduo). No Brasil, a rotulagem nutricional é mandatória para todos os alimentos embalados na ausência do consumidor, e ela dá acesso ao conteúdo de calorias, sódio, carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas e minerais, valores estes já declarados por porção recomendada para consumo. Esta é a relação que rotulagem nutricional tem com dieta adequada e saudável: papel informativo que dá ao consumidor visibilidade do que e quanto está consumindo. Rotulagem nutricional é instrumento para educação e consumo responsável. O rótulo por si só não endereça a questão da obesidade e DCNTs, que tem causas multifatoriais, e pode ter relação com fatores genéticos, estilo de vida, prática de atividade física, alimentação, etc.

A chamada de dados aberta pela OMS é extremamente relevante. Com base nas evidências científicas apresentadas serão desenvolvidas as diretrizes que nortearão a revisão regulatória dos modelos de rotulagem nutricional atualmente adotados pelos países. É fundamental avaliar com base em ciência robusta o que está dando certo e o que precisa ser melhorado, sob o ponto de vista da compreensão do consumidor e do resultado efetivo em saúde. Também é importante considerar as diferentes realidades e culturas de cada país. Qual parcela da população costuma ler os rótulos dos alimentos e bebidas? Quantos leem a informação nutricional? E dos que leem, quantos a compreendem? E dos que compreendem, quantos utilizam a informação para suas escolhas alimentares? Se utilizam, estas escolhas se refletem em indicadores de saúde positivos ou redução das taxas de obesidade e DCNTs?

No Brasil, segundo a pesquisa “A Mesa dos Brasileiros: Transformações, Confirmações e Contradições”, de abrangência nacional, realizada pela FIESP/CIESP em 2017 com 3.000 consumidores, somente 53% dos brasileiros lê os rótulos dos alimentos e bebidas, e apenas 23% lê com regularidade. Também o estudo mostra que a informação mais lida é a data de validade (70%), seguida de sódio (19%), gorduras (14%), tabela nutricional (12%) e calorias (11%). E ainda, 64% dos entrevistados afirmaram que as informações dos rótulos são difíceis de entender. Estes números evidenciam que, para a rotulagem nutricional exercer sua função de ferramenta para uma alimentação saudável e balanceada existem duas frentes de ação em políticas públicas: i. educação e ii. revisão da norma de rotulagem nutricional.

Em relação a educação, a EAN (Educação Alimentar e Nutricional) é primordial para que o consumidor adquira conhecimento sobre alimentação e saúde, compreenda a rotulagem nutricional e esteja apto para uso da informação em suas escolhas alimentares com liberdade e responsabilidade. A população precisa não só de conscientização sobre a importância do hábito de leitura dos rótulos dos alimentos, como também conteúdo que a capacite para interpretar e utilizar a informação nutricional. No Brasil, a Lei nº 13.666/2018 incluiu a EAN nos currículos escolares do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas. A medida é importante, e certamente contribuirá para a mudança dos hábitos alimentares das crianças e adolescentes.

No tocante a revisão regulatória, tal iniciativa deve ter o papel de complemento do processo de educação, uma vez que os consumidores brasileiros relatam dificuldade no entendimento das informações dispostas nos rótulos no padrão atual. A ANVISA desde 2014 está realizando um robusto trabalho de revisão do regulamento de rotulagem nutricional RDC nº 360/2003, e o tema é prioridade da Agenda Regulatória 2017-2020. Em 2018 foi realizada a Tomada Pública de Subsídios TPS, cujo relatório está disponível aqui. Segundo a Anvisa, foram recebidas 33 mil contribuições de 3.579 participantes, que foram consolidadas e serão utilizadas na Consulta Pública, prevista para o último trimestre de 2019. Os consumidores representam 63% do total de participantes da TPS, e os números mostram que para 88% dos contribuintes, a rotulagem nutricional não ajuda a identificar facilmente o valor nutricional do alimento, e ainda, 91% entendem que a forma de apresentação das informações nutricionais precisa de alteração.

A discussão inclui a atualização das regras para a atual tabela nutricional e a adoção da rotulagem nutricional frontal (FOPL Front of Pack Labelling), uma estratégia que vem sendo executada por diversos países no mundo para facilitar a compreensão do consumidor. FOPL é uma informação nutricional suplementar, e segundo o Guidelines on Nutrition Labelling CAC/GL 2-1985 do Codex Alimentarius, este tipo de informação visa aumentar o entendimento do consumidor sobre o valor nutricional do alimento e auxiliar na interpretação da declaração de nutrientes (tabela nutricional). Segundo o Guidelines, a informação suplementar é opcional e não substitui a declaração de nutrientes, exceto em caso de populações específicas, por exemplo, com alto índice de analfabetismo. Importante enfatizar que o Codex Alimentarius recomenda que a informação nutricional suplementar seja acompanhada por programas de educação dos consumidores para ampliar o entendimento e uso da informação. É fundamental considerar que a referência do Codex Alimentarius, órgão da FAO/OMS que tem como objetivo proteger a saúde dos consumidores, preconiza ações de educação sobre rotulagem. Isto é o indicador de que a rotulagem nutricional frontal somente proporcionará opções alimentares mais equilibradas se a população receber orientação e souber utilizar a ferramenta.

A FOPL consiste na declaração “diferenciada” dos valores de nutrientes cujo consumo em excesso está relacionado a obesidade e DCNTs, tais como açúcar, sódio e gorduras. Esta informação contribuirá para que o consumidor avalie suas escolhas, e pratique o balanceamento da dieta. E como já destacado neste artigo, é nisto que se encontra a relação entre rotulagem nutricional e políticas públicas que visam dietas mais saudáveis e o combate a obesidade e DCNTs. Esta medida não será suficiente para sanar o problema de saúde pública, que está muito além de dieta e de discussão regulatória de rotulagem.

Para comprovar este racional não é necessário muito debate, basta avaliar alguns fatos e números:

Primeiro. Obesidade e DCNTs apresentam causas multifatoriais, e não somente a alimentação. A prática de atividade física, por exemplo, é reconhecida pela OMS como estratégia importante para prevenção e tratamento de sobrepeso, obesidade e DCNTS. O GLOBAL ACTION PLAN ON PHYSICAL ACTIVITY 2018-2030 da WHO incentiva os países a desenvolverem políticas públicas que tornem as sociedades mais ativas a fim de melhorar os índices globais de saúde. O combate efetivo da obesidade e DCNTs deve abranger todas as possíveis causas do problema. É visão míope acreditar que um novo modelo de rotulagem nutricional será o protagonista da solução.

Segundo. A rotulagem nutricional se aplica apenas aos alimentos industrializados, e qual a contribuição destes alimentos no consumo de açúcar e sódio, por exemplo? Segundo estudos realizados com dados da última POF Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE (2008-2009), apenas 19,2% do açúcar consumido pelo brasileiro é proveniente da adição em alimentos industrializados, enquanto o açúcar adicionado em preparações nos lares, bares e restaurantes corresponde a 56,3% do consumo. Números semelhantes são encontrados para o sódio; alimentos industrializados contribuem com apenas 23,8% do consumo total. Ou seja, o consumo excessivo de nutrientes relacionados a problemas de saúde é majoritariamente proveniente das preparações culinárias, como o açúcar do cafezinho, o pudim caramelizado do domingo, a feijoada do sábado, o “costelão” na brasa, o sal da salada ou da pipoca no cinema, e assim por diante. Logo, a nova rotulagem nutricional terá seu papel a desempenhar, mas não será o grande herói da história.

Terceiro. Indicadores de saúde como a Vigitel/MS mostram que entre 2007 e 2017, enquanto o consumo de refrigerantes e bebidas adoçadas caiu 52,8%, o sobrepeso cresceu 56% e a obesidade aumentou 110% na faixa etária de 18 a 24 anos (60% de aumento em todas as faixas etárias). Ou seja, um dos alimentos mais “vilanizados” no debate da rotulagem nutricional sofreu enorme queda de consumo, enquanto a problemática de saúde pública aumentou! Portanto, considerar que um novo modelo de rótulo diminuirá as taxas de obesidade e sobrepeso é um enorme equívoco.

Enfim, a epidemia mundial de obesidade e DCNTs é reconhecidamente uma pauta urgente em saúde pública, a qual exige diversos esforços para sua solução. A discussão de rotulagem nutricional tem sim sua relevância nas discussões de políticas públicas, contudo, tão somente como instrumento para que o consumidor faça suas escolhas alimentares de modo simples e informativo. Entretanto, a adoção de um modelo de rotulagem nutricional frontal não resolverá as questões de saúde, uma vez que a alimentação é apenas uma dentre as diversas causas do problema. Além disso, a nova rotulagem não será efetiva sem a realização de programas educativos que melhorem o conhecimento do consumidor sobre alimentação e possibilitem a compreensão das informações nutricionais.

A Agenda da Revisão da Rotulagem Nutricional na Anvisa prevê que até agosto de 2019, aconteçam três reuniões técnicas para discussão de temas relevantes como abrangência da norma, base e forma de declaração, perfil nutricional, claims, modelo de rotulagem frontal, entre outros. Não deixe de acompanhar a Agenda e participe da Consulta Pública!

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