Escândalo da carne de cavalo: seis anos depois – Parte 1/2

4 min leitura

Seis anos depois, a Justiça Francesa condenou os culpados pelo escândalo da carne de cavalo, o maior caso de fraude alimentar ocorrido em 2013 no continente europeu.

Quatro pessoas foram condenadas por responsabilidade direta no processo que culminou em prejuízos de centenas de milhões de euros.

Mas como é que a história começou?

Há dois pontos a serem interligados.

Em 2008, o governo romeno, pretendendo atender a uma legislação da União Europeia, proibiu a utilização de tração animal (por cavalos) em suas cidades e rodovias, o que gerou uma situação grave com o abandono de muitos animais, muitos debilitados e à beira da morte, principalmente por conta do baixo poder aquisitivo das famílias que, de uma hora para outra, se viram privadas de um meio tradicional de transporte e de fonte de renda e que não tinham como manter os animais por conta do custo com alimentação e medicamentos.

Três anos depois, em 2011  (dois anos antes do surgimento do escândalo, em 2013), a Comunidade Europeia proibiu a comercialização de cavalos para abate, provenientes da Romênia, em uma tentativa de evitar a propagação da “anemia infecciosa equina”, doença que se tornou endêmica naquele país.

A proibição levou os agricultores romenos a começar a exportar carne de cavalos já abatidos.

Apenas nesse ano (2011), mais de 6.779 toneladas dessa carne foram transportadas congeladas ou refrigeradas para países como França, Bélgica, Itália e Bulgária para processamento.

A venda de carcaças torna muito mais provável que sua carne seja vendida para processamento em refeições prontas, em vez de ser vendida como cortes desossados e, portanto, pode ser usada em vez de carne bovina na produção de alimentos de conveniência.

Para um agricultor romeno em dificuldades, a venda de um cavalo a um matadouro pode dar um impulso bem-vindo, porém, a mais de 2.000 quilômetros de distância, a descoberta dessa carne em produtos alimentícios congelados em supermercados britânicos provocou a maior crise alimentar em mais de uma década. Algumas perguntas começaram a gerar incômodo: como a carne de cavalo entrou na complexa e moderna cadeia de suprimentos de alimentos? Como essa carne viajou milhares de quilômetros pela Europa para abate, processamento e embalagem antes de acabar nas casas dos consumidores britânicos?

No caso da carne de cavalo descoberta em várias marcas, o primeiro elo da cadeia foi encontrado no interior rural da Romênia. Lá, os cavalos eram usados para puxar carros e arar. Estimativas recentes colocavam o número de cavalos usados para fins agrícolas na Romênia em até 760.000 animais.

Tradicionalmente, quando um agricultor não necessitava mais de um cavalo, ele seria vendido para exportação para países onde o cavalo fosse aceito como uma alternativa à carne de vaca, carneiro ou porco.

Mais de 10.000 cavalos por ano foram exportados da Romênia desta forma. A maioria acabou na Itália, onde os consumidores preferem a carne do animal recém-abatido.

A carne de cavalo encontrada em refeições congeladas na Grã-Bretanha foi enviada por meio rodoviário da Romênia para a fábrica de processamento de carnes Spanghero em Castelnaudary, no sudoeste da França. Lá foi processada em partes, aparentemente rotulada como carne comum, e enviada para processamento em refeições prontas e congeladas pela fabricante francesa de alimentos Comigel.

A sede da Spanghero possuía um sistema de alta segurança, como pede a indústria global de alimentos. Era cercada por câmeras de vigilância e cercas, com guardas em cada ponto de entrada e saída. Os 350 funcionários que trabalhavam lá eram rigorosamente monitorados à medida que entravam e saíam da unidade. Havia regras de BPF e uso de uniformes para os trabalhadores, veículos especializados para transporte adequado, armazéns limpos e refrigerados.

Nada disso foi suficiente para impedir a ação criminosa.

A Spanghero, fundada em 1970 por Claude e Laurent Spanghero, ex-jogadores de rúgbi da França, já estava no centro de um grande problema de saúde quando, em 2011, foi forçada a destruir 12 toneladas de carne bovina picada depois de ser descoberta contaminação com E. coli.

A empresa possuía seu próprio abatedouro e precisou fechá-lo por conta da crise gerada pela globalização e pelo grande volume de carne importada, especialmente do Leste Europeu, que aumentou a competitividade e fez a margem cair subitamente.

O esquema, criado provavelmente em 2012, levou a carne de cavalo para a indústria de produção de lasanhas congeladas, espaguete à bolonhesa e outros pratos à venda em supermercados em 15 países.

Exames de DNA nesses produtos levaram as autoridades francesas a uma investigação em busca de evidências de fraude contra uma das empresas sobre a suposta falta de rotulagem da carne.

Como sempre, os donos e executivos das empresas negaram saber de qualquer tipo de fraude.

Os burocratas do governo francês, por sua vez, vieram com os tradicionais discursos:

“É “inaceitável” que a carne de cavalo seja aprovada como carne bovina!”.

“O que está escrito em um rótulo deve estar de acordo com o que está no produto!”.

A investigação concluiu que açougueiros romenos e comerciantes holandeses e cipriotas criaram uma cadeia de fornecimento que resultou em carne de cavalo sendo rotulada como carne de vaca ou de porco antes de ser incluída em produtos congelados.

A Tesco, gigante britânica do varejo, identificou em amostras de produtos de marca própria, mais de 60% de DNA de cavalo.

Na Romênia profundamente rural, os cavalos eram vendidos por famílias ou indivíduos a matadouros, e cada animal tinha quatro tipos de documentos obrigatórios antes de sua carne ser exportada.

As autoridades romenas disseram que verificaram a papelada que mostra que eles não estavam rotulando indevidamente a carne antes de ser enviada para fora do país para intermediários.

Ou seja, ninguém teve culpa!

Vejam como as coisas são!

Uma simples mudança na legislação de um país (uso de cavalos para determinadas atividades) e outra sobre controle de contaminação endêmica, impactaram profundamente marcas consideradas confiáveis e referências em qualidade.

O impacto teve reflexos profundos em um continente inteiro.

E nós, do outro lado do mundo, ganhamos normas mais restritas e duras para cumprir.

Justo para nós aqui do Brasil onde tudo anda bem, não é mesmo?

Quero deixar um agradecimento à Juliana Grazini, da Verakis, pelo envio da pauta.

No próximo texto conto como anda a história, agora no campo das punições, seus reflexos na legislação e lições que aprendemos e das quais não podemos nos esquecer no dia-a-dia.

Até lá!

 

Referências:

https://www.lemonde.fr/societe/article/2019/04/16/scandale-de-la-viande-de-cheval-six-mois-ferme-pour-l-ex-directeur-de-l-entreprise-spanghero_5451022_3224.html

https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1578965/Horses-left-to-starve-after-Romania-bans-carts.html

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